terça-feira, 8 de outubro de 2013

Você não tem a menor importância - Joel Silveira









JOEL SILVEIRA



Você não tem a menor importância


-Você se julga uma pessoa importante?
-Mais ou menos.
-Quer saber se você é ou não é importante?
-Como assim?
-Eu lhe submeteria a um teste, fazendo algumas perguntinhas, que vocẽ responderia com honestidade. Topa?
-Por que não?
-Então, vamos lá. Mas volto a insistir: nada de mentirinhas.
-Pode começar.
-Lhe pergunto: você lutou na Batalha de Salamina ou nas Termópilas, ao lado dos gregos e contra os persas?
-Claro que não.
-Participou da Batalha de Actium, ao lado de Cleópatra e contra o imperialismo romano?
-Não fui convocado.
-Alguma vez bateu papo com Sócrates?
-Não seio grego.
-Passou uma elegante e afanosa noite com a Ninon de Lenclos? Ou com a Paulina Bonaparte?
-Quem sou eu!
-Foi guilhotinado em 1874, apenas por ser amigo de Saint-Just?
-Nunca fui amigo de Saint-Just.
-Foi ferido em Borodino, defendendo a Mãe Pátria?
-Não.
-Lutou em 1871 numa das barricadas da Comuna, em Paris?
-Não sou de briga.
-Esteve de fuzil na mão, em 1937 e 38, defendendo Madri contra os fascistas de Franco?
-Por que haveria?
-Lutou em Stalingrado?
-Com aquele frio?
-Foi espancado, torturado, separado dos seus e finalmente gazeificado em Dachau ou Treblinka?
-Você sabe que não.
-Participou do frustrado complô de 20 de julho de 1944 para matar Hitler?
-Só soube depois.
-E voltando um pouco no tempo, deu uma mãozinha a Stendhal quando ele escrevia Le Rouge et Le Noir?
-Claro que não.
-Mandou daqui do Brasil café para Balzac, para mantê-lo acordado nas manhãs e madrugadas em que trabalhava?
-Ele nunca me pediu.
-Passou todo um fim de semana com a Bela Otero?
-Quem me dera!
-Alguma vez tomou uma bebedeira com Michelangelo? Ou com Van Gogh e Gauguin? Ou com Verlaine e Rimbaud?
-Odeia porrista.
-Aguentou firme, sem abrir o bico, uma daquelas terríveis depressões de Beethoven?
-Deus me livre!
-Emprestou o lápis a Lincoln para que ele escrevesse o Discurso de Gettysburgh?
-Não uso lápis.
-Conhece todos os salões e salas do Louvre, do Hermitage e da Gallerie dagli Uffizi? Já viu todos os quadros e obras de arte que se encontram lá?
-Nem eu, nem ninguém.
-Foi você quem escreveu isto? -”Cheguei a casa, abri a porta devagarinho, subi pé ante pé, e meti-me no gabinete, ia dar seis horas. Tirei o veneno do bolso, fiquei em mangas de camisa, e escrevi ainda uma carta, a última, dirigida a Capitu. Nenhuma das outras era para ela, senti necessidade de lhe dizer uma palavra em que lhe ficasse o remorso da minha morte. Escrevi dois textos. O primeiro queime-o por ser longo e difuso. O segundo continha só o necessário, claro e breve. Não lhe lembrava o nosso passado, nem as lutas havidas, nem alegria alguma, falava-lhe só de Escobar e da necessidade de morrer”.
-Você está citando Machado. E não sou plagiário.
-E isto, é de sua autoria? - “A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pelo caíra-lhe em vários pontos, as costeletas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, coberta de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida”.
-Também já li e reli Graciliano.
-Teve oportunidade de encarar Stalin e lhe dizer, alto e bom som: “Camarada, a única diferença entre você e Hitler é de bigode”?
-Prezo muito meu pescoço.
-chegou alguma vez a aconselhar o nosso desatinado D. Pedro: “Majestade, moderação. Sifílis mata”?
-Não sou médico.
-Já esteve na Lua?
-Nem na Lua, nem em Xapecó.
-Bem, meu caro, fiquemos por aqui. E lamento lhe dizer que o saldo é bem negativo, ou seja, você tem a menor importância.
-Eu já desconfiava.



in Diário da Tarde, BH, 29.03.99


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