AFONSO
HENRIQUES NETO
FRAGMENTOS
DA ODE ABISSAL
então
o vórtice multicor de melodias,
asa
fulminada de amanhecer, arrastou o espaço
aventureiro
para o súbito abismo turbilhonante
a
engolir os sonhos, o tempo, a paisagem revoltada.
e
eram pesadelos imberbes, pedras impúberes,
uma
infância de caminhos rasgados por mão
de
uma feminilidade atordoada, cântico perfumado
na
deliciosa manhã a se liquefazer em sexo.
um
rosto de luz havia que nos devorava
e
inteiro nos devolvia ao precipício de aurora molhada
em
aguda prata de relâmpago a incendiar a hora
do
século tombar insone nas cidades de nossa alma.
esta
criança dulciamarga e esta sinfonia modulada
em
galáxias de azinhavre, tempo em toneladas
de
ossos e esperança embrulhadas pelo céu
de
uma vertigem moldada em vísceras radioativas,
sofriam
inconscientes as memórias esfaqueadas,
história
atirada para o lixo das imagens ocas,
virtuais
cadáveres sorrindo, usura, selvagens esgotos,
ritos
da boçalidade pelos céus da superfície.
ah
este óleo mortal escrito em máscara,
este
rosto que não se sustenta no vento
e
espia das altas vidraças os poemas baldios,
construção
da treva que se precipita.
chuva
negra e vento demiurgo a soprar da divindade
mais
profunda o nada entrevisto, visão
sem
retina, fibras nervosas de ausência,
traço
de raiva na relva escrita sem chão.
ou
certas pequenas impunidades, pássaro
de
galope vermelho tal um incêndio de música
no
quarto crescente de teu ventre sobre o mar,
mapas
e genes e fluxos das danações marinhas
e
os dentes daquele monstro tatuado de andorinhas
mas
esquecido por fim no armazém de imagens,
da
melodia trancada sob a pálpebra deserta,
duro
gosto de azul esquecido de apodrecer.
um
aroma de lua, certas minúcias de pele,
árduos
detalhes entre amanhecer e recuar
às
guerras de todo o século, corpo a ensinar
uma
resina terrível de verbos mortos, crânios dissipados,
canteiros
onde bichos cósmicos esfregam o focinho
nebuloso,
olhos gerando a cor acesa do real,
a
explosão de carnes, a moedura de sombras,
o
esmigalhar arcanjos em meio-dia fixo, náusea eterna.
a
ausência é tanto coração que antes sair pelas ruas
a
relampejar seios de água, som de flor, oh anjo
seco,
espelho incriado, não me arranques o rosto
ideal
de nenhuma primavera, não me prives
dos
invisíveis espelhos onde dorme o sentido
insone
do rosto no labirinto de outra língua,
o
cataclismo do século, pedra chamada alma,
clones
que os sentidos renegam mas amam desesperados.
preparar
a álgebra do absoluto e depor o copo vazio
sobre
a mesa. cavalos-marinhos ao fundo nadam
contra
a correnteza de sóis inversos para a semeadura.
a
terra murchou, fosforeceu, mil vezes milhões de olhos.
relampejaram
a natureza eviscerada em luz de rosto único.
preparar
o licor absoluto, deixar o pânico zumbir
dentro
das taças. Tocar o instante sem memória do corpo
no
obsceno tamborilar desta chuva de línguas envenenadas.
poema
do século, sais de ouro, fragmentos incendiários,
carlitos
dança um tango operístico-surrealista com beckett artaud
&
lênin & nijinski ou pessoa a telefonar para joyce conversando
dadá
hitler
mann lorca stalin, picasso a grafitar bigodes no duchamp
sorrindo
o coice
[…]
sim:
bodas da complexidade para o sarcasmo do mesmo,
todos
vimos as bordas escarlates da hecatombe
global,
os violinos gangrenados de chuva ácida
e
as torres de cristal soterradas pelos ciclones contaminados,
todos
vimos os épicos sem lua, a tragédia sem tema,
antiodes
carbonizadas no espasmo de sóis a vomitarem
secas
semeaduras na terra virótica, pele plastificada,
planeta
torturado até os confins do soco, estrelas
das
epidemias, todos sabemos de línguas tão amassadas
que
nenhum decifrador alcançaria, ventos carnívoros, matemáticos
do
silêncio, borboletas enrugadas, furacões infamantes,
pois
além de todos os demônios aqui estamos, aqui ainda
nos
deitamos à beira de um córrego de transparência
total,
vinho puro, lavoura do infinito, flutuação acima
da
urina dos anjos, para que a eterna criança ainda se incline,
lábios
à flor da música de um deus que arde e vai passando
(do
livro Eles devem ter visto o caos)(foi publicado em 1998)
IN:
41 Poetas do Rio. Moacyr Félix (org) RJ: Funarte, 1998.
mais
em:
na
coleção Ciranda da Poesia
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