sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Fragmentos da Ode Abissal - Afonso Henriques Neto









AFONSO HENRIQUES NETO


FRAGMENTOS DA ODE ABISSAL


então o vórtice multicor de melodias,
asa fulminada de amanhecer, arrastou o espaço
aventureiro para o súbito abismo turbilhonante
a engolir os sonhos, o tempo, a paisagem revoltada.

e eram pesadelos imberbes, pedras impúberes,
uma infância de caminhos rasgados por mão
de uma feminilidade atordoada, cântico perfumado
na deliciosa manhã a se liquefazer em sexo.

um rosto de luz havia que nos devorava
e inteiro nos devolvia ao precipício de aurora molhada
em aguda prata de relâmpago a incendiar a hora
do século tombar insone nas cidades de nossa alma.

esta criança dulciamarga e esta sinfonia modulada
em galáxias de azinhavre, tempo em toneladas
de ossos e esperança embrulhadas pelo céu
de uma vertigem moldada em vísceras radioativas,

sofriam inconscientes as memórias esfaqueadas,
história atirada para o lixo das imagens ocas,
virtuais cadáveres sorrindo, usura, selvagens esgotos,
ritos da boçalidade pelos céus da superfície.

ah este óleo mortal escrito em máscara,
este rosto que não se sustenta no vento
e espia das altas vidraças os poemas baldios,
construção da treva que se precipita.

chuva negra e vento demiurgo a soprar da divindade
mais profunda o nada entrevisto, visão
sem retina, fibras nervosas de ausência,
traço de raiva na relva escrita sem chão.

ou certas pequenas impunidades, pássaro
de galope vermelho tal um incêndio de música
no quarto crescente de teu ventre sobre o mar,
mapas e genes e fluxos das danações marinhas

e os dentes daquele monstro tatuado de andorinhas
mas esquecido por fim no armazém de imagens,
da melodia trancada sob a pálpebra deserta,
duro gosto de azul esquecido de apodrecer.

um aroma de lua, certas minúcias de pele,
árduos detalhes entre amanhecer e recuar
às guerras de todo o século, corpo a ensinar
uma resina terrível de verbos mortos, crânios dissipados,

canteiros onde bichos cósmicos esfregam o focinho
nebuloso, olhos gerando a cor acesa do real,
a explosão de carnes, a moedura de sombras,
o esmigalhar arcanjos em meio-dia fixo, náusea eterna.

a ausência é tanto coração que antes sair pelas ruas
a relampejar seios de água, som de flor, oh anjo
seco, espelho incriado, não me arranques o rosto
ideal de nenhuma primavera, não me prives

dos invisíveis espelhos onde dorme o sentido
insone do rosto no labirinto de outra língua,
o cataclismo do século, pedra chamada alma,
clones que os sentidos renegam mas amam desesperados.

preparar a álgebra do absoluto e depor o copo vazio
sobre a mesa. cavalos-marinhos ao fundo nadam
contra a correnteza de sóis inversos para a semeadura.
a terra murchou, fosforeceu, mil vezes milhões de olhos.

relampejaram a natureza eviscerada em luz de rosto único.
preparar o licor absoluto, deixar o pânico zumbir
dentro das taças. Tocar o instante sem memória do corpo
no obsceno tamborilar desta chuva de línguas envenenadas.

poema do século, sais de ouro, fragmentos incendiários,
carlitos dança um tango operístico-surrealista com beckett artaud
& lênin & nijinski ou pessoa a telefonar para joyce conversando dadá
hitler mann lorca stalin, picasso a grafitar bigodes no duchamp
sorrindo o coice

[…]

sim: bodas da complexidade para o sarcasmo do mesmo,
todos vimos as bordas escarlates da hecatombe
global, os violinos gangrenados de chuva ácida
e as torres de cristal soterradas pelos ciclones contaminados,

todos vimos os épicos sem lua, a tragédia sem tema,
antiodes carbonizadas no espasmo de sóis a vomitarem
secas semeaduras na terra virótica, pele plastificada,
planeta torturado até os confins do soco, estrelas

das epidemias, todos sabemos de línguas tão amassadas
que nenhum decifrador alcançaria, ventos carnívoros, matemáticos
do silêncio, borboletas enrugadas, furacões infamantes,
pois além de todos os demônios aqui estamos, aqui ainda

nos deitamos à beira de um córrego de transparência
total, vinho puro, lavoura do infinito, flutuação acima
da urina dos anjos, para que a eterna criança ainda se incline,
lábios à flor da música de um deus que arde e vai passando



(do livro Eles devem ter visto o caos)(foi publicado em 1998)


IN: 41 Poetas do Rio. Moacyr Félix (org) RJ: Funarte, 1998.




mais em:










na coleção Ciranda da Poesia


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