segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

sobre Ábaco - do poeta e arquiteto João Diniz




sobre “Ábaco” (BH, 2011)
do poeta e arquiteto João Diniz


Pilares lúdicos sustentam a arquitetura das palavras


Alguns poetas escrevem para relatar dramas, outros exploram modos de expressão, ainda outros escrevem para mudar o mundo, tecem epopeias. A poesia ora é vista como algo em si mesma, ora é útil como um veículo de esclarecimento, denúncia ou propaganda. A mensagem, assim, pode ser algo do poema ou o próprio poema. Os versos falam sobre um mundo lá fora, longe da página, ou lembram que são versos bailantes diante do leitor. Ou o mundo pode ser esquecido e, em seguida, substituído por outro mundo arquitetado em palavras.

Quando a Poesia não diz algo, ela diz sobre os próprios limites, a impossibilidade de dizer algo além do modo de dizer sobre o fazer poesia. A metalinguagem toma conta, os metapoemas proliferam, e nada é dito. Não importa o preço do arroz ou do feijão ou do café, importa as assonâncias. Para que criticar o governo se temos fartas metáforas e paranomásias? Então não se tem um discurso, pois não há exatamente uma mensagem, mas um jogo.

Percebem-se algumas figuras metafóricas e metonímicas, a mostrarem que o poeta conhece figuras de linguagem, que tem bom faro para peneirar vocábulos e criar dissonâncias, enfim, tem um ouvido bom para melodias. Pode usar todo o equipamento para expressar uma dor existencial ou o aumento do IPVA, mas preferirá lembrar que estamos diante de um poema. Destacam-se os movimentos lúdicos com sons e sentidos, com descrições meio cubistas, com sinestesias meio surrealistas, com muita paranomásia, com uso e abuso de trocadilhos, em sonoras conjunções e semânticas contradições.


Assim adentramos a construção de Ábaco, do poeta e arquiteto João Diniz, onde se destaca uma intricada exploração lúdico-sonora das palavras. Tal importância da sonoridade é evidente. Vide a banda PTERODATA que musicou, juntamente com o autor, algumas peças poéticas de Ábaco. Encontramos um mosaico de possibilidades de leitura, tal o lance de dados de Mallarmé, sempre jogados do sonoro para o semântico, do sentido para a estrutura, mas sem um discurso planejado, sem uma voz que totalize, um sujeito poético, um eu lírico que assine embaixo.

Sentimentos são abordados, visões de mundo, idem. O poeta sabe onde está e em que contexto, conhece suas técnicas e emoções. Mas a expressão importa mais do que o que se diz, a mensagem, o que se comunica, está na estratificação de versos em estrofes, em contrastes com a alvura da página. O que diferencia é como , o modo, de ocupa a folha em branco. Que recursos o poeta utiliza, de que maneira elaborada tecerá seu lirismo-estrutural. Pois os poemas, cada um deles, tem uma estrutura, um fundamento que sustenta as alas dos versos.

De modo que temos temos poemas constituídos pela argamassa da sonoridade, daí os trocadilhos, exemplos de paranomásia, palavra a atrair palavras por aparência ortográfica, ou sonora, não por sinonímia ou antonímia. O sentido não é a argamassa principal, mas uma sutil fiação dentro das paredes. Assim encontramos pares de vocábulos, entre os versos,tais como: afoga / afaga, reta / rota, fome / falso, belo / breve, vida / visto, catacrese / catequese, risco / rasgo, etc

Ou poemas que selecionam palavras por contradições, por antonímias (logo valorizando o sentido) em imagens opostas que se confrontam, se desdizem, se entregam a uma escolha (de cartas marcadas?), aqui eis alguns exemplos, futuro / aquém, sonho / despertar , medo / coragem, velho / infância, caminho / descanso, amor / ódio, calma / movimento, assim vai.

Também, por que não?, os poemas que exploram rimas, o que constitui a maioria, assim como encontramos rimas entre os modernistas (que, logo de início, desprezavam tal recurso nos parnasianos e simbolistas...), em diferentes combinações, comuns, raras, preciosas, tonais, p.ex., como se percebe nos pares: água / mágoa, Rio / frio, contido / sentido , idioma / sintoma, paralela / vela , despertar / explicar, etc Recurso bem explícito no poema opção (pp. 56-58) com o isto ou aquilo, em contraposições, a explorar rimas (-al, -ção, -ade, -eto, -ito, -ante, -ia, -esa, - eza, -ora, -édio, -inho, -ança, -ário, -or, -ino), “chegando à sua mão / a melhor opção”.

Tão consciente de seu trabalho de burilamento e acabamento, que o poeta arrisca se explicar, se justificar. Estamos em presença dos metapoemas, sim, aqueles de descarada metalinguagem, desnudando as vigas atrás das paredes, os filamentos nas luminárias. Assim em poesia (p. 12), onde o poeta questiona se alguém além dele entende do poético ali, “saberão da poesia?”, pois é do que se trata, uma expressão que exige atenção, ciente de que para poesia existir é preciso efeito – sobre quem lê, visto que “uma força: a poesia”, e que espera-se um esforço por parte da recepção para comungar numa interpretação. Mas se não houver? Então a poesia tem valor em si? Parece que sim, com o enfático: “mais vale a poesia”.

Mais desvelamentos encontramos no metapoema-mor truque (p. 16-18), onde o poeta exibe as ferramentas, e resolve falar da técnica, do construto, das vigas que sustentam o edifício,

tem segredo o verso?
Catacrese assonâncias
catequese dissonância

ferramentas que servem para quê? Aliás, mais prédio para quê? É algo comunicado além da própria comunicação? Não parece que algo NÃO é dito? Falta dizer exatamente o quê? O que mais precisa ser dito?

cabe notar agora
por mais que se falou
o principal ficou fora

pois algo deve ser dito! Ou o poeta fica a lembrar que é um poeta porque escreve um poema, e um poema é um poema pois é escrito por um poeta! Entramos no círculo vicioso do não-discurso (a menos que um não-discurso seja ainda um discurso, assim como uma não-escolha é a um tipo de escolha...),

o que faz um poeta?
Silêncio ou discurso
vida vista ou secreta

pois deve haver um motivo para a escrita, mas qual será? Do que se trata? De auto-afirmação? De desejo de compartilhar desassossegos? De encontrar ouvidos atentos a uma fala lírica? Consigo mesmo o poeta se posiciona em comigo (pp. 106-107),

escrevo porque não solo
existo porque não calo
protesto porque não vale
desejo porque não farto


É escrita enquanto rearranjo, mais do que expressão. Mais jogo do que discurso, longe está a poesia engajada. O poeta olha para si mesmo e a página em branco, é um ato amoroso de entrega, depois que os leitores – e críticos – se esforcem para entender (ou não). O metapoema eternidade (p. 122) explicita o “silêncio / folha em branco (…) à espera do / volume e traço (…) depois virão / críticos de plantão”, demonstra o mal-estar com a Recepção.

Enquanto 'crítico de plantão' lembro ao autor o importante papel alfinetatório da Crítica, que vem criar a polêmica e a discussão. Ou o poeta preferiria a apatia, a indiferença, o silêncio? Sem a Crítica, estaríamos ainda hoje no estilo barroco... Sem uma discussão sobre os limites da poesia estaríamos ainda no parnasianismo... Assim, sem dúvida, que o autor espera a Crítica – desde que não seja pedante. Entenda-se: desde que não tente ensinar o padre-nosso ao sacerdote.



Mas não apenas de metapoemas se ergue um arranha-céus, também temos os descritivos, que tentam sugerir, para que o leitor complete as entrelinhas e adentre as imagéticas. Assim, clarão (p. 44) ou casa (p. 52) ou sertão (p. 70) ou aquática (p. 71), que esperam um envolvimento da Recepção, pronta para colher seduções e ousar uma parceria com o texto. Os versos aqui são um traçado que sugerem um mapa – mas que desenha mesmo é o turista-leitor.

Ou esboços de possíveis enredos, assim em ela (p. 40) onde uma mulher sobrevive entre vicissitudes, entre a decadência e o sexo livre, até se encontrar no mundo. Ou em Sampa (p.77) recorte de uma experiência na metrópole da América do Sul, a multicultural São Paulo, espaço de encontros e desencontros, subculturas e solidão,


metro metrópole

polis política polida em pó
poluída, possuída portanto

Sampa atenta tonta

afago tráfego desaforo e fossa
afogada em finança fisco e fome


Ainda temos tentativas nestes poemas que falam de algo além da poesia. Tamanha é a varanda avantajada dos metapoemas que ensombrecem o restante de Ábaco, onde poderíamos encontrar poemas sobre o nosso mundo – não o mundo de papel da metalinguagem. Sampa é uma boa amostra de que o olhar do poeta sabe captar algo além do papel.

Outras cidades aparecem nas memórias cosmopolitas do poeta, assim viajamos por Rio de Janeiro, Varsóvia e Lisboa, mas é sobretudo enquanto construtos da memórias – e não cidades em concreto e asfalto – que tais metrópoles se destacam. Cidade, populações, monumentos é tudo misturado, amalgamado no texto que floresce das memórias (poema na p. 78), que reinventam as imagens,

memórias e invenções
acordam da urbana insônia
nos sonhos gerais
direções são tantas
revelações às pampas
na solidão amazônica

humanos de bronze
imagem e lembrança
numa saudade da vida
escalada pela criança
numa nova estátua
na inexistente tumba
de um ex fogo fátuo

o lugar de ligar
pode nunca parar
pobre curso sem cor
reinventa a margem
desatando a florestal dor
inverso da alva água
mágoa sem vertigem


É no lirismo do memorialista que encontramos o sujeito poético que pouco aparece nos metapoemas – que podem ser feitos até por programação eletrônica, convenhamos. Nos poemas sobre pessoas e viagens, podemos encontrar o poeta com suas considerações e emoções, além dos jogos de palavra. Não que seja a intenção autoral que faça a diferença, mas há uma voz autoral. Muitos poemas não tem voz, apenas arranjos de palavras.

Então, começamos a ver o poeta além do homo ludens, o homem por trás das letras, enquanto voz discursiva a indagar, com humor, se algo deve ser sério. A poética é séria? O poeta é sério? A escrita é séria? Em que medida somos sérios? Nós que não morremos por devoções nem ideologias, nós que só nos matamos por opção sexual e futebolística. É sinal de sabedoria apenas contemplar o mundo e dar boas risadas? De repente, a seriedade não apenas uma rima de simplicidade,


e o que seria?
Se tudo não fosse tão sério
se não houvesse mistério
nesse avesso do sorrir

amor é humor quando começa
cegas cócegas em sócio ego
chamego no ódio seco
carinho por um soco oco

apagando as rugas de um foco
a piada é a melhor espada

na linha da corda bamba
anda o sábio em ciranda
o tédio esse remédio engana
frágil alegria numa mão fria


É preciso que o poeta sobreviva ao jogo de palavras – não negamos que é sensacional, que produz efeito – e nos deixe mais marcas da voz memorialista, do ser em expressividades, com emoções que não sejam ocultadas por alguma rima preciosa. Assim como não nos interessa apenas o sentimento do autor, também pouco interessa arranjos de palavras sem um eu lírico. O instrumento frio e calculista do ábaco, com suas contas precisas, espera ser humanizado.

No poema assim (pp. 98-100), o eu lírico se esparrama entre lembranças e sugestões, a partir de fragmentos do vivido e restos do imaginado, tecendo referências aos seres da natureza e da cultura, os mundos das estrelas e das mitologias, das cenas bíblicas, tudo sem abandonar as explorações lúdicas com as palavras, marca estilística de um arquiteto de vocábulos, a brincar com significantes e significados,


lembrei-me do louva-deus
na ordem do vira-lata
à luz do assum-preto
só mirei e bem te vi

e no forno da fruta pão
busquei a dama da noite
mas achei a rosa louca
e rodamos num gira sol

tal mescla de ambiguidades e nonsense – há um forno para a fruta pão? Como girar num girassol ? - deixa antever um poeta bem-humorado – como já mostraram os trocadilhos ao longo dos poemas – que só se oculta por zelos lúdicos. Aqui ele ousa um lirismo solto, com toques metafísicos, fala de milagre, de destino, de identificação com o “mineral vegetal animal”,

cada ser tem o seu vulto
num líquido de água e sal
estrela do mar e do céu
seu destino está oculto

faltou à última ceia
crendo o milagre dos peixes
certeza do ser humano
lindo canto da sereia

seria ideal manter-se assim
mineral vegetal animal


É necessário aqui encerrar. O objetivo deste breve ensaio não é comentar poema por poema, nem resumir panoramicamente, nem esgotar a leitura de Ábaco, mas apontar o que chama mais a atenção, o que desperta o faro crítico de quem lê poemas todos os dias, num mundo de milhares de publicações, em papel e em formato digital. Uma miríade de textos, poemas, ensaios exigem nossa atenção, dia após dia, hora após hora, e somente com muita disciplina conseguimos adentrar um universo textual de cada vez. O que nos prende nas contas do ábaco são os desafios de tal arte de rearranjo linguístico, em técnicas de enumeração e sumarização assim estruturadas. Esperamos que os experimentos lúdicos-verbais do autor João Diniz possam continuar nos desafiando em novas arquiteturas de palavras. Mas que, além de palavras, tenhamos sua voz singular e humana.


Jan/13

Leonardo de Magalhaens





mais sobre João Diniz – autor e obra






Ábaco



sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

sobre Formas do nada - do poeta Paulo Henriques Britto



sobre Formas do nada (Cia das Letras, 2012)
do poeta Paulo Henriques Britto (RJ, 1951-)


Quando a poesia adentra o próprio labirinto


Em época em que tudo pode ser dito, com a ampla liberdade de expressão, com os midiáticos instrumentos de propagação de ideias, quando a linguagem pode carregar mil mensagens, acontece que nada mais é dito e a linguagem volta-se para si mesma. O enredo não é mais importante, mas os jogos de palavras, as contorções de fonemas e morfemas, as passagens secretas dentro do emaranhado de sílabas. Não é o que é dito que importa, mas como é dito.

Na prosa, o narrador não se preocupa com a história narrada, mas com o processo de narrar – por que narra? para quem narra? - e depois pensamos no que está sendo narrado. Na poesia, não importa mais o sentimento ou a comoção, mas um efeito sobre o leitor, um arranjo de desassossegos que um – muitas vezes ausente – sujeito lírico deixa num rastro de palavras. Hoje a poesia fala sobre o quê? Sobre algo além da poesia? Sobre a própria poesia? Sobre o fazer poesia? A poesia problematiza o que é poesia.

Uma denúncia da metalinguagem : a poesia fala de si mesma por ser incapaz de representar o mundo? algo além da fala poética? Afinal, seria mero simulacro, aquela mimèsis que os estruturalistas tanto debatem? Aqui em Formas do nada, sexta obra poética do autor/tradutor Paulo Henriques Britto, literato com três décadas de carreira, a poesia lembra o tempo todo que é poesia, que é composta de versos, de métrica, de pausas e sílabas curtas e longas, átonas ou tônicas, como explicita o poema inicialLorem ipsum,


Venham, diz ele,que eu lhes ofereço
sinéreses, cesuras, hemistíquios
e muito mais, e em troca lhes peço
sofríveis simulacros de sentido.


Pois, toda expressão volta-se sobre si mesma e sobre quem a enuncia, em motivo de desabafo que leve a algum consolo, que justifique ao mesmo a escrita, pálido refrigério para o poeta-fingidor que finge a dor realmente sentida, e ocultada atrás de palavras e palavras,

Tudo resulta apenas neste dístico:
Ninguém busca a dor, e sim seu oposto,
e todo consolo é metalinguístico.


Aqui não falta metalinguagem, com a qual estamos acostumados desde os modernistas, com ápice em João Cabral , para quem fazer poesia se assemelha ao singelo ato de catar feijão, a selecionar palavras tal qual peneiramos grãos,

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se
os grãos na água do alguidar
e
as palavras na folha de papel;
e
depois, joga-se fora o que boiar.
Certo,
toda palavra boiará no papel,
água
congelada, por chumbo seu verbo:
pois
para catar esse feijão, soprar nele,
e
jogar fora o leve e oco, palha e eco. 


No mais, Lorem ipsum é um termo usado, em tipografia, para designar um certo texto padronizado (em latim) para preencher um dado espaço na diagramação, antes do texto a ser realmente impresso. Funciona como um texto-teste, que não requer atenção sobre si mesmo, mas sobre a disposição na página. É um texto que serve como parâmetro, não significação (a menos para quem seja versado na idioma de Horatius e Virgilius).


Além da própria fala, além do dizer-se sobre o estar-a-dizer, o poeta tem alguma crença na originalidade? Imagina algum estilo próprio no estilo da época? Como ser subversivo contra a subversão? Afinal, é bacana ser marginal, é aceitável ser beatnik, é comercializável ser desbocado. A subversão está diariamente nas prateleiras. O diferente agora é ser 'careta', formalista. Cansados de prosa espontânea? Ou de escrita automática? Então vamos ler os neo-parnasianos, os neo-formalistas.


Originalidade não tem vez
neste mundo, nem tempo, nem lugar.
O que você fizer não muda coisa
alguma. Perda de tempo dizer

o que quer que você tenha a dizer.

(Circular)

Afinal, numa época de liberdade de expressão, quando se pode dizer qualquer coisa, acabamos por dizer banalidades, acabamos por viver expressão, e nada realmente importante é dito. Ou tudo foi dito e estamos apenas a repetir. O próprio fazer poesia é analisado sob a lupa do poeta, que quer legitimar (ou não?) sua escrita


Escrever, mas não pode ter vontade:
escrever por determinação.
Não que ainda haja necessidade
(se é que houve) de autoexpressão,

(Oficina)

É de se perguntar por que o poeta escreve? Para si mesmo? Para para os leitores voyeuristas? Para os que consomem a dor fingida do poeta? O poeta não quer mudar o mundodesejaria mudar o seu próprio mundo? Desabafar sofreres e resgatar lembranças? Nada demais, para um labor inofensivo,


uma ocupação inofensiva:
quem cai na teia sequer se arranha.
(E a maioria dela se esquiva.)


aqui um trocadilho a demonstrar o lado lúdico aranha / arranha, onde 'arranha' invade pela proximidade fonética o campo semântico de teia / aranha / esquivar da teia de aranha.

Estes arranjos (e desarranjos) da linguagem que cria o clima poético, são temas de labutas em versos, como diagnosticamos em Oficina (I – V, pp. 13-17 ), onde meio ao senso de auto-crítica , confabulação metapoética , são explicitados os limites da expressão poética a partir do antilírico: “música que brota / onde a palavra era pra ser mais bruta” ( III , p. 15) e “Por dispor destas palavras. / Não outras.” para finalizar pessimista, “Nem mesmo destas, no final / das contas. A coisa vai mal.” (V , p. 17)

Em Poética prática ( p. 18 ) temos metafísica mesclada com metalinguagem, em certa referência ao poeta francês Mallarmé, o autor de Lance de Dados não Abolirá o Acaso, célebre com palavras semeadas sobre páginas em ousadas diagramações, que aqui parece um paradigma para a questão do significado do poema, ou se pode ser um belo nonsense, uma emaranhada sugestão que diz de si mesma, “Anda inconveniente a tal da poesia, / a significar? / Nada como um bom significante vazio / para abolir o azar.”

Também em Limiar (na p. 22) temos mais questionamentos, semelhantes a Poética Prática, onde igualmente a voz no poema fala das dúvidas de um outro - ou de si mesmo ? - que se presentificam (além de motivação), quiçá numa promessa de transcendência (se possível, mística? espiritual?), “Uma geografia de dúvidas / lhe percorria todo o firmamento: / serão serafins?

Se o poema diz algo além do poema é por que diz algo sobre o poeta? Afinal, alguém escreveu. Mas este alguémo autoré acessível? Que intenções ele pretendia ao encher laudas com palavras? uma possível biografia literária? Que tormentos ou traumas de infância levaram o indivíduo ao ponto de ousar adentrar o inferno-paradiso da poesia?

Lembranças pouco nítidas, provavel-
mente falsas. Imagens que se ordenam
segundo uma lógica indecifrável,
talvez inexistente. Mãos que acenam

uma porta entreabertanão, fechada -
uma criança que não reconheço:
ou seja, muito pouco mais que nada.
É tudo que me resta do começo

disso que agora pensa, fala e sente
que pode ser denominado 'eu'.
Claro que houve um instante crucial

em que esses cacos mal e porcamente
colaram-se. E pronto: deu no que deu.
é alguma coisa. Menos mal.


Quem é o 'eu' que é mencionado no terceto? Quem pode dizer este 'eu'? Em que grau este 'eu' é o autor Paulo Henriques Britto? Em que nível é possivelmente reconstituir este autor a partir do 'eu' que se apresenta manifesto, ao qual denominamos 'sujeito lírico'? Esta Biographia literaria ( I – VIII, pp. 29-36 ), pleno metapoema, um eu a se questionar nos limites da poética - eis o sujeito? - onde o eu não confia na memória tão fugidia, Corpo antes inteiro / tão tangível concreto // quase fictício agora, / névoa sem cor nem cheiro / onde nem mais memória.” , sem controle sobre o próprio destino e a própria voz, “Nada disso foi do jeito que eu quis.” (VII )

Em alguns momentos a confissão do poeta torna-se prosaica, cotidiana.Claro que houve um instante crucial // em que esses cacos mal e porcamente / colaram-se. E pronto: deu no que deu. muito de prosaico e cotidiano nestes versosdesde Manuel Bandeira e Mário Quintana, passando pelos 'poetas marginais' - nos acostumamos ao prosaico no líricoe em outros versos de outros poemas em Formas do nada que rompem ritmoalém de lirismoem prol da acessibilidade (ou comunicabilidade) enquanto em outros momentos o poeta é até hermético.


Em panorama, a questão da identidade tão trabalhada desde Emily Dickinson, Whitman, Fernando Pessoa, Sá-Carneiro, Aníbal Machado, Clarice Lispector, dentre outros, não pode faltar na poética da modernidade pós-moderna. Ainda em Biographia literaria, VII, que adentra questões existenciais (ou existencialistas, a maneira sartreana, do 'fazer algo do que fizeram de nós'),


Nada disso foi do jeito que eu quis.
Se fosse como eu quis, não haveria
de ser tão sofrido, tão infeliz.
Mas euo eu que soueu não seria.

Assim, não me lamento. Até me sinto
como quem tem não o que foi pedido,
e sim o que, guiado pelo instinto,
não pelo querer, teria querido.

O que de mais duro a vida me deu
-que dura mais quanto mais me custou
dele me acostar, e torná-lo meu -

o que não escolhi, mas me escolheu,
é o que , ao fim e ao cabo, mais eu sou.
Não é o eu que eu me quis. Mas sou eu.



As técnicas de despersonalizaçãonão apenas aquelas de Pessoa e Clariceevidenciam o quanto somos vários dentro de uma mesma máscaracomo o 'lobo da estepe' Harry Haller no romance de Hermann Hessee o quanto o poeta é um fingidor, que finge e sente ao mesmo tempo, que esforça-se para ser outro, para entender e absorver o outro,

Não ser quem não se é é coisa trabalhosa
Exige a disciplina austera e rigorosa

de que, achando pouco simplesmente ser,
requer o luxo adicional de parecer.

As essências enganam, e o eu é tão escasso
que que ocupar com alguma coisa tanto espaço,


(Ecce homo , p. 38)

em questionares sobre uma arte do fingimento, do poeta enquanto fingidor (ainda em Pessoa), sobre o que dizer sobre o que calar diante do mundo que a escrita não pode reproduzir sequer representar,

Fingir não é nada difícil
quando a própria realidade
é, de todas as hipóteses,
a que é mais indesejada.

(Canção)


Esta dinâmica da auto-observação propicia textos de ironia ao estilo poesia pensamento, assim em Seis sonetos soturnos ( I – VI , pp. 44-49 ), na forma de clássicos sonetos camonianos e ingleses, mas ao estilo Drummond de Andrade, Alexei Bueno, Marco Lucchesi, numa poética enquanto pensar erudito voltado sobre si mesmo, sobre os limites do dizer, “Nada de novo. A única surpresa / é constatar que mesmo o desespero, [...] termina se tornando simplesmente / uma espécie de enfeite sobre a mesa,” (IV , p. 47), pois a autoconsciência não significa exatamente saber-como-resolver. Sofremos e temos a ciência disso. Mas como deixar o sofrimento?

É quando o poeta se permite uma exteriorização de emoções, com atmosferas barrocas, assim em Tríptico com hotel e sirene ( pp. 19-21 ) numa descrição, quando a escrita delineia o cotidiano , o ser na cidade , desde o título, com evocações imagéticas, vejamos aí o tríptico, termo derivado das artes plásticas, onde designa uma pintura em três seções, geralmente dobráveis, com imagens sacras, devocionais. Sobretudo, imagens.

Esta é a hora inaugural da noite.
Toda a energia esbaldada do dia
Agora se recolhe compungida
Por trás de persianas. Seis e oito.


Ao observar-se, e observar sua geração, o poeta se desencanta, com o sonho que acabou. Em Pós ( pp. 72-73) , depois de tudo, lembrando do tempo de infância, quando se tinha esperança de que a nova geração poderia mudar o mundo – e foi o mundo que mudou a nova geração, então desiludida, conformada. É o fim da utopia, da utopias em geral, é o sofrido “the dream is over”,

Talvez porque sonhássemos errado,

talvez porque, enquanto alguns se davam
ao luxo de sonhar, outros, insones,
imunes, implacáveis, se entregavam
à tarefa prosaica de dar nomes

Sem antes os sonhar, [...]


pois, na verdade, o mundo não muda, sem solução, “Não, a coisa não tem jeito. / Nem nunca teve, aliás. Desde o início.

É o que leva ao tom niilista, de desistir de lutar, de qualquer luta, exceto as cotidianas para garantir a sobrevivência num mundo de explorações. Temos em Madrigal ( p.70 ) uma cantiga triste e amarga , “Desista: não vai dar certo.” ,“Desista, enquanto é tempo.” e “Desista, que a vida é incerta.” Um niilismo irônico assim: “ou insista. Dá no mesmo.” De um jeito ou de outro somos perdedores num sistema onde uma minoria lucra, ao dominar a mão-de-obra da maioria, que vive alienada. Numa ordem onde apenas se alternam os gerentes.

Desilusão que é alegorizada numa (digamos) parábola, ou Lenda ( pp. 67-69 ) uma peça de poesia narrativa, tecida em tercetos,uma lendasem moral da história, num inferno burocrático onde os funcionários são as vítimas do sacrifício ritual, depois de assinarem e expedirem as ordens de extermínio, como exímios cumpridores das regras e trâmites, num pesadelo kafkaniano,

Os formulários foram todos preenchidos
em sete vias, todas elas registradas.
As testemunhas rubricaram cada página.

Ninguém podia imaginar as consequências.

[]

Algo de estranho se processa após os trâmites cotidianos, algo irrompe a causalidade e faz surgir o inesperado, a sentença de morte, como consequência de seguir fielmente os ordenamentos, leis criadas tal uma rede que aprisiona,

[...]
Antes das nove tocavam os telefones.
Inicialmente eram consultas, vagas dúvidas;

depois, reclamações, protestos veementes;
por fim, imprecações, insultos, ameaças.
E uma pedrada na vidraça foi o símbolo

mais que concreto do que havia de ocorrer.

[...]

onde sentimos que o destino é certo e cruel, não pode ser questionado, mas aceito, como um sacrifício inclemente, nos capturaram com a maior facilidade / e nos levaram à pirâmide mais próxima. / o altar, o fogo, a faca, o sacerdote e o público / estavam todos prontos para o sacrifício.Mas do que se trata? pirâmide ? sacerdote? Estamos no império maia? Nas ruínas dos templos astecas? Que estranha civilização sacrifica sua burocracia? Será o totalitarismo soviético?

Diante do cataclismo que se aproxima, seja um fim do mundo maia, um terror nuclear, um ataque terrorista, o lance é aproveitar o dia, como queria o latino Horatius, em sua célebre ode I, 11, o tema do carpe diem, aproveita o dia,

Tentar prever o que o futuro te reserva
não leva a nada. Mãe de santo, mapa astral
e livro de autoajuda é tudo a mesma merda.
O melhor é aceitar o que de bom ou mau
aconteceu. O verão agora inicia
pode ser só mais um, ou pode ser o último...
vá saber. Toma o teu chope, aproveita o dia,
e quanto ao amanhã, o que vier é lucro.




pois segundo Instant replay ( p. 71 ) o viver é o aqui-agora, enquanto somos lançados ao futuro, ansiosos com o dia de amanhã, com o novo anunciado fim do mundo,A nostalgia pior / é a do instante presente - / sentir que se vive o agora / mas não o suficiente.

Viver assim diante do espetáculo do mundo, tal qual um poeta latino, um Ricardo Reis de olhar clássico diante dos turbilhões do existir,Até onde a vista alcança / é real todo o visível. [...] O logro é absoluto. / Melhor relaxar os músculos / e aproveitar o espetáculo” ( IV , p. 27, Cinco sonetos frívolos), ou verter desassossegos nos leitores, compartilhar o fel. Assim nas Três peças dispépticas ( pp. 56-59 ) quando uma voz fala de modo nada gentil com o receptor leitor, pobres de nós!, num exemplo da dissonância (ao estilo diagnosticado pelo crítico Hugo Friedrich), Não esteja à vontade. / A casa não é sua. / E se não gostar, / por ali é a rua.” (p. 56)




É estranho. É inusitado o Autor convidar o Leitor a se retirar do recinto. Pois o poeta sabe que precisa do leitor. Está nos manuais de Estética da Recepção, desde Jauss e Iser, além de Fish, e assim explicita no poema Apêndice ( p. 37), coisa de autor para leitor , quando a leitura é percebida enquanto atenção participativa, e o autor é leitor de outros, Para nós, que estamos de fora, / basta uma linha (pulada, / é claro, numa leitura / um pouco mais apressada).

Pois é esta presença do leitor – o autor espera ser lido, não? - é que motiva o ato de pegar uma folha em branco, e depois mandar para o editor, e reler folhas de prova, e autorizar a edição. Tudo que podemos ler em Quatro bagatelas ( pp. 60-63 ) na forma de poemas curtos e diretos , cheios de ironia e auto-ironia, o ser autoral diante dos impasses de elaborar poemas sobre o poético, e assim sobre o nada. “Vida sempre rascunho, folha sem pauta, / pasto de lacunas e rasuras , / risco sobre risco, pré- / -texto de nada.” (IV, p. 63)

Temos outros poemas, além de Três autotraduções (não exatamente traduções mas transcriações de poemas do próprio autor/tradutor) , entre o pensar e o poetizar, mas que podem ser resumidos em peças em mosaico, entre fala e forma. Entre o humor e o desgosto, um real Mosaico , onde o sem-sentido de existir , a mesmice do cotidiano , numa vida sem destino,nada senão / o amontoar-se dos dias”, numa meditação (em Envoi, p. 74) sobre o tempo que corrói e a fugacidade do ser mas o tempo pode “escrever com linhas tortas”, escrever na vida, não numa “folha esquiva” / “pois todo poema é murmúrio / frente ao amor e sua fúria.

Assim em som e fúria, o fútil viver na fala do amargurado usurpador da peça shakespeariana, falando de si para si, poema a dialogar com poema, numa rede mais forma do que manifesto, niilista das ideologias. Nos poemas, em Formas do nada, o tempo, aos poucos, distorcido, ainda dá forma, mesmo sendo forma de nada, ou tema de um lirismo resignado.


Formas do nada
1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012
Paulo Henriques Britto (RJ, 1951-)


Dez/12


Leonardo de Magalhaens



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