sobre
“Ábaco” (BH, 2011)
do
poeta e arquiteto João Diniz
Pilares
lúdicos sustentam a arquitetura das palavras
Alguns
poetas escrevem para relatar dramas, outros exploram modos de
expressão, ainda outros escrevem para mudar o mundo, tecem epopeias.
A poesia ora é vista como algo em si mesma, ora é útil como um
veículo de esclarecimento, denúncia ou propaganda. A mensagem,
assim, pode ser algo do poema ou o próprio poema. Os versos falam
sobre um mundo lá fora, longe da página, ou lembram que são versos
bailantes diante do leitor. Ou o mundo pode ser esquecido e, em
seguida, substituído por outro
mundo arquitetado em palavras.
Quando
a Poesia não diz algo, ela diz sobre os próprios limites, a
impossibilidade de dizer algo além do modo
de dizer sobre o fazer poesia. A metalinguagem toma conta,
os metapoemas proliferam, e nada é dito. Não importa o preço do
arroz ou do feijão ou do café, importa as assonâncias. Para que
criticar o governo se temos fartas metáforas e paranomásias? Então
não se tem um discurso, pois não há exatamente uma mensagem, mas
um jogo.
Percebem-se
algumas figuras metafóricas e metonímicas, a mostrarem que o poeta
conhece figuras de linguagem, que tem bom faro para peneirar
vocábulos e criar dissonâncias, enfim, tem um ouvido bom para
melodias. Pode usar todo o equipamento para expressar uma dor
existencial ou o aumento do IPVA, mas preferirá lembrar que estamos
diante de um poema. Destacam-se os movimentos lúdicos com sons e
sentidos, com descrições meio cubistas, com sinestesias meio
surrealistas, com muita paranomásia, com uso e abuso de trocadilhos,
em sonoras conjunções e semânticas contradições.
Assim
adentramos a construção de Ábaco, do poeta e arquiteto João
Diniz, onde se destaca uma intricada exploração lúdico-sonora das
palavras. Tal importância da sonoridade é evidente. Vide a banda
PTERODATA que musicou, juntamente com o autor, algumas peças
poéticas de Ábaco. Encontramos
um mosaico de possibilidades de leitura, tal o lance de dados de
Mallarmé, sempre jogados do sonoro para o semântico, do sentido
para a estrutura, mas sem um discurso planejado, sem uma voz que
totalize, um sujeito poético, um eu lírico que assine embaixo.
Sentimentos
são abordados, visões de mundo, idem. O poeta sabe onde está e em
que contexto, conhece suas técnicas e emoções. Mas a expressão
importa mais do que o que se diz, a mensagem, o que se comunica, está
na estratificação de versos em estrofes, em contrastes com a alvura
da página. O que diferencia é como , o modo, de ocupa a folha em
branco. Que recursos o poeta utiliza, de que maneira elaborada tecerá
seu lirismo-estrutural. Pois os poemas, cada um deles, tem uma
estrutura, um fundamento que sustenta as alas dos versos.
De
modo que temos temos poemas constituídos pela argamassa da
sonoridade, daí os trocadilhos, exemplos de paranomásia,
palavra a atrair palavras por aparência ortográfica, ou sonora, não
por sinonímia ou antonímia. O sentido não é a argamassa
principal, mas uma sutil fiação dentro das paredes. Assim
encontramos pares de vocábulos, entre os versos,tais como: afoga /
afaga, reta / rota, fome / falso, belo / breve, vida / visto,
catacrese / catequese, risco / rasgo, etc
Ou
poemas que selecionam palavras por contradições, por antonímias
(logo valorizando o sentido) em imagens opostas que se confrontam, se
desdizem, se entregam a uma escolha (de cartas marcadas?), aqui eis
alguns exemplos, futuro / aquém, sonho / despertar , medo / coragem,
velho / infância, caminho / descanso, amor / ódio, calma /
movimento, assim vai.
Também,
por que não?, os poemas que exploram rimas, o que constitui a
maioria, assim como encontramos rimas entre os modernistas (que, logo
de início, desprezavam tal recurso nos parnasianos e
simbolistas...), em diferentes combinações, comuns, raras,
preciosas, tonais, p.ex., como se percebe nos pares: água / mágoa,
Rio / frio, contido / sentido , idioma / sintoma, paralela / vela ,
despertar / explicar, etc Recurso bem explícito no poema opção
(pp. 56-58) com o isto ou aquilo, em contraposições, a explorar
rimas (-al, -ção, -ade, -eto, -ito, -ante, -ia, -esa, - eza, -ora,
-édio, -inho, -ança, -ário, -or, -ino), “chegando à sua mão
/ a melhor opção”.
Tão
consciente de seu trabalho de burilamento e acabamento, que o poeta
arrisca se explicar, se justificar. Estamos em presença dos
metapoemas, sim, aqueles de descarada metalinguagem,
desnudando as vigas atrás das paredes, os filamentos nas luminárias.
Assim em poesia (p. 12), onde o poeta questiona se alguém
além dele entende do poético ali, “saberão da poesia?”,
pois é do que se trata, uma expressão que exige atenção, ciente
de que para poesia existir é preciso efeito – sobre quem lê,
visto que “uma força: a poesia”, e que espera-se um
esforço por parte da recepção para comungar numa interpretação.
Mas se não houver? Então a poesia tem valor em si? Parece que sim,
com o enfático: “mais vale a poesia”.
Mais
desvelamentos encontramos no metapoema-mor truque (p. 16-18),
onde o poeta exibe as ferramentas, e resolve falar da técnica, do
construto, das vigas que sustentam o edifício,
tem
segredo o verso?
Catacrese
assonâncias
catequese
dissonância
ferramentas
que servem para quê? Aliás, mais prédio para quê? É algo
comunicado além da própria comunicação? Não parece que algo NÃO
é dito? Falta dizer exatamente o quê? O que mais precisa ser dito?
cabe
notar agora
por
mais que se falou
o
principal ficou fora
pois
algo deve ser dito! Ou o poeta fica a lembrar que é um poeta porque
escreve um poema, e um poema é um poema pois é escrito por um
poeta! Entramos no círculo vicioso do não-discurso (a menos que um
não-discurso seja ainda um discurso, assim como uma não-escolha é
a um tipo de escolha...),
o
que faz um poeta?
Silêncio
ou discurso
vida
vista ou secreta
pois
deve haver um motivo para a escrita, mas qual será? Do que se trata?
De auto-afirmação? De desejo de compartilhar desassossegos? De
encontrar ouvidos atentos a uma fala lírica? Consigo mesmo o poeta
se posiciona em comigo (pp. 106-107),
escrevo
porque não solo
existo
porque não calo
protesto
porque não vale
desejo
porque não farto
É
escrita enquanto rearranjo, mais do que expressão. Mais jogo do que
discurso, longe está a poesia engajada. O poeta olha para si mesmo e
a página em branco, é um ato amoroso de entrega, depois que os
leitores – e críticos – se esforcem para entender (ou não). O
metapoema eternidade (p. 122) explicita o “silêncio / folha em
branco (…) à espera
do / volume e traço (…)
depois virão / críticos de plantão”, demonstra o
mal-estar com a Recepção.
Enquanto
'crítico de plantão' lembro ao autor o importante papel
alfinetatório da Crítica, que vem criar a polêmica e a discussão.
Ou o poeta preferiria a apatia, a indiferença, o silêncio? Sem a
Crítica, estaríamos ainda hoje no estilo barroco... Sem uma
discussão sobre os limites da poesia estaríamos ainda no
parnasianismo... Assim, sem dúvida, que o autor espera a Crítica –
desde que não seja pedante. Entenda-se: desde que não tente ensinar
o padre-nosso ao sacerdote.
Mas
não apenas de metapoemas se ergue um arranha-céus, também temos os
descritivos, que tentam sugerir, para que o leitor complete as
entrelinhas e adentre as imagéticas. Assim, clarão (p. 44)
ou casa (p. 52) ou sertão (p. 70) ou aquática
(p. 71), que esperam um envolvimento da Recepção, pronta para
colher seduções e ousar uma parceria com o texto. Os versos aqui
são um traçado que sugerem um mapa – mas que desenha mesmo é o
turista-leitor.
Ou
esboços de possíveis enredos, assim em ela (p. 40) onde uma
mulher sobrevive entre vicissitudes, entre a decadência e o sexo
livre, até se encontrar no mundo. Ou em Sampa (p.77) recorte
de uma experiência na metrópole da América do Sul, a multicultural
São Paulo, espaço de encontros e desencontros, subculturas e
solidão,
metro metrópole
polis política polida em pó
poluída, possuída portanto
Sampa atenta tonta
afago tráfego desaforo e
fossa
afogada em finança fisco e
fome
Ainda
temos tentativas nestes poemas que falam de algo além da poesia.
Tamanha é a varanda avantajada dos metapoemas que ensombrecem o
restante de Ábaco, onde poderíamos encontrar poemas sobre o nosso
mundo – não o mundo de papel da metalinguagem. Sampa é uma
boa amostra de que o olhar do poeta sabe captar algo além do papel.
Outras cidades aparecem nas memórias cosmopolitas do poeta, assim
viajamos por Rio de Janeiro, Varsóvia e Lisboa, mas é sobretudo
enquanto construtos da memórias – e não cidades em concreto e
asfalto – que tais metrópoles se destacam. Cidade, populações,
monumentos é tudo misturado, amalgamado no texto que floresce das
memórias (poema na p. 78), que reinventam as imagens,
memórias
e
invenções
acordam da
urbana insônia
nos sonhos
gerais
direções são
tantas
revelações às
pampas
na solidão
amazônica
humanos de
bronze
imagem e
lembrança
numa saudade da
vida
escalada pela
criança
numa nova
estátua
na inexistente
tumba
de um ex fogo
fátuo
o lugar de
ligar
pode nunca
parar
pobre curso sem
cor
reinventa a
margem
desatando a
florestal dor
inverso da alva
água
mágoa sem
vertigem
É
no lirismo do memorialista que encontramos o sujeito poético que
pouco aparece nos metapoemas – que podem ser feitos até por
programação eletrônica, convenhamos. Nos poemas sobre pessoas e
viagens, podemos encontrar o poeta com suas considerações e
emoções, além dos jogos de palavra. Não que seja a intenção
autoral que faça a diferença, mas há uma voz autoral. Muitos
poemas não tem voz, apenas arranjos de palavras.
Então,
começamos a ver o poeta além do homo ludens, o homem por
trás das letras, enquanto voz discursiva a indagar, com humor, se
algo deve ser sério. A poética é séria? O poeta é sério? A
escrita é séria? Em que medida somos sérios? Nós que não
morremos por devoções nem ideologias, nós que só nos matamos por
opção sexual e futebolística. É sinal de sabedoria apenas
contemplar o mundo e dar boas risadas? De repente, a seriedade não
apenas uma rima de simplicidade,
e
o
que
seria?
Se
tudo
não
fosse
tão
sério
se não
houvesse mistério
nesse avesso do
sorrir
amor é humor
quando começa
cegas cócegas
em sócio ego
chamego no ódio
seco
carinho por um
soco oco
apagando as
rugas de um foco
a piada é a
melhor espada
na linha da
corda bamba
anda o sábio
em ciranda
o tédio esse
remédio engana
frágil alegria
numa mão fria
É
preciso que o poeta sobreviva ao jogo de palavras – não negamos
que é sensacional, que produz efeito – e nos deixe mais marcas da
voz memorialista, do ser em expressividades, com emoções que não
sejam ocultadas por alguma rima preciosa. Assim como não nos
interessa apenas o sentimento do autor, também pouco interessa
arranjos de palavras sem um eu lírico. O instrumento frio e
calculista do ábaco, com suas contas precisas, espera ser
humanizado.
No
poema assim (pp. 98-100), o eu lírico se esparrama entre
lembranças e sugestões, a partir de fragmentos do vivido e restos
do imaginado, tecendo referências aos seres da natureza e da
cultura, os mundos das estrelas e das mitologias, das cenas bíblicas,
tudo sem abandonar as explorações lúdicas com as palavras, marca
estilística de um arquiteto de vocábulos, a brincar com
significantes e significados,
lembrei-me do louva-deus
na ordem do vira-lata
à luz do assum-preto
só mirei e bem te vi
e no forno da fruta pão
busquei a dama da noite
mas achei a rosa louca
e rodamos num gira sol
tal
mescla de ambiguidades e nonsense – há um forno para a fruta pão?
Como girar num girassol ? - deixa antever um poeta bem-humorado –
como já mostraram os trocadilhos ao longo dos poemas – que só se
oculta por zelos lúdicos. Aqui ele ousa um lirismo solto, com toques
metafísicos, fala de milagre, de destino, de identificação com o
“mineral vegetal animal”,
cada ser tem o seu vulto
num líquido de água e sal
estrela do mar e do céu
seu destino está oculto
faltou à última ceia
crendo o milagre dos peixes
certeza do ser humano
lindo canto da sereia
seria ideal manter-se assim
mineral vegetal animal
É
necessário aqui encerrar. O objetivo deste breve ensaio não é
comentar poema por poema, nem resumir panoramicamente, nem esgotar a
leitura de Ábaco, mas apontar o que chama mais a atenção, o
que desperta o faro crítico de quem lê poemas todos os dias, num
mundo de milhares de publicações, em papel e em formato digital.
Uma miríade de textos, poemas, ensaios exigem nossa atenção, dia
após dia, hora após hora, e somente com muita disciplina
conseguimos adentrar um universo textual de cada vez. O que nos
prende nas contas do ábaco são os desafios de tal arte de rearranjo
linguístico, em técnicas de enumeração e sumarização assim
estruturadas. Esperamos que os experimentos lúdicos-verbais do autor
João Diniz possam continuar nos desafiando em novas arquiteturas de
palavras. Mas que, além de palavras, tenhamos sua voz
singular e humana.
Jan/13
Leonardo
de Magalhaens
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sobre João Diniz – autor e obra
Ábaco