segunda-feira, 14 de maio de 2012

Por que ler os best-sellers?



Por que ler os best-sellers?

(breve artigo)

Quando o escritor italiano Ítalo Calvino escreveu sua obra clássica, “Por que ler os clássicos?”, em 1991, logo causou polêmica, tanto para os que reconhecem os 'clássicos', como para os que rejeitam uma ideia de 'cânone'. De início, o problema foi definir o que seja 'os clássicos'. Como fazer uma seleção de 'crítico' sem deixar se levar pelos 'subjetivismos'? Afinal, “Guerra e Paz” pode ser um 'clássico' para X e não para Y, que vai preferir “A Volta ao Mundo em 80 dias”, ou então haverá Z que considera ambas as Obras como 'clássicas'.

Eis algumas definições do Calvino para o que seja 'clássico', antes de arriscar alguns títulos, como exemplos,

2.Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições de apreciá-los.”

3.Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual.

6.Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.


Interessante que na época, enquanto Calvino se perguntava sobre ler ou não os clássicos, outro fenômeno se estruturava no 'mundo editorial'. O livro muito vendido, o tal 'best-seller' (para usar o english, como bom vassalos que somos...) O livro que é 'mais do que livro' é mídia, é propaganda. Está na lista dos mais vendidos – e provoca mais vendas. É um curioso 'feedback' (do tipo “maria-vai-com-as-outras”, pois o leitor pensa: ora, todo mundo está lendo, então deve ser bom! Vou ler também!)(Um contraponto é o leitor que pensa assim: Está todo mundo lendo, é coisa de 'marketing', não vou nem folhear isso...!)

Eis o fenômeno: o best-seller enquanto livro de 'leitura obrigatória'! (Em certa ocasião, um colega abordou-me, queria saber se eu tinha lido “O Xangô de Baker Street”, do humorista e entrevistador televisivo Jô Soares. Nada contra o Jô, que respeito. Mas não vou ler uma sub-literatura só porque o sujeito é artista de TV. Imagino o contrário: se o Jô fosse desconhecido, não venderia 'montanhas' de exemplares. Ele obviamente se aproveita da 'mídia' – fez-se famoso, para depois publicar. Então, o colega rotulou-me de 'pedante'. (Não que todo artista midiático seja 'mau escritor' – temos uma bem-vinda exceção: o músico, cantor, compositor Chico Buarque, astro da MPB, que, ao decidir ser escritor, uniu o 'útil' ao 'agradável'.

Então, por que ler os best-sellers? (e nem resolvemos a questão anterior, “Por que ler os clássicos?”!) Por que ler os livros policiais de Agatha Christie? Por que ler os romances de Sidney Sheldon? (romances que fazem sucesso até hoje...) Ou os romances de Dan Brown? (a 'febre' do momento?)

E esta enxurrada de livros romanceados (que se dizem 'documentários') sobre polícias secretas, sociedades secretas? Livros sobre o FBI, a CIA, a KGB ou a STASI (que nem existem mais), o MI-5, as tantas máfias, o crime organizado, os Templários, a OPUS DEI, a Maçonaria, os neo-nazistas, os Iluminatti? Por que tais obras fascinam tanto? (Encontramos nos ônibus, e nos metrôs, jovens e adultos, mulheres e donas-de-casa lendo estes 'calhamaços' de obras traduzidas)

Uma resposta seria: porque tais obras (romances, 'documentários') exploram (em todos os sentidos) as nossas angústias quanto aos 'poderes ocultos' – os 'podres poderes' – que nos governam e controlam a nossa consciência e participação. Poderes dos quais SOMOS FANTOCHES submissos, uma vez que somos incapazes de nos defender do que não conhecemos. A angústia, portanto.

Por que vendem tanto os livros de 'fantasia' como “Lord of the Rings” e “Chronicles of Narnia”? Obras de autores britânicos, da época da Segunda Guerra Mundial, que exploram a fantasia épica, as furiosas epopeias, como verdadeiros cultos à Monarquia idealizada, a figura dos Reis (um retorno à 'origem divina dos reis'), a figura absolutista do Rei (ou da Rainha) – ou dos nobres, príncipes, barões e cavalheiros - enfrentando as 'forças do mal'.

Os autores britânicos J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis, responsáveis por “Senhor dos Anéis” e “Crônicas de Nárnia”, respectivamente, não hesitaram em 'voltar ao tesouro das lendas' anglo-saxãs e ao 'mundo das fadas', de onde extraíram a maioria das personagens, que nada têm de novidade (duendes, gnomos, fadas, ogros, ciclopes, gigantes, anões, animais falantes, além de seres da mitologia grega, como centauros, grifos, harpias, etc) Mas o enredo é sempre uma exaltação da Realeza – um culto à Monarquia. (Lembro novamente: o contexto era o da Segunda Guerra Mundial, quando os reis britânicos combatiam as forças fascistas e nazistas)

Por que vendem tanto os livros de 'bruxaria infantil' , como é o caso de “Harry Potter”? Ou de 'vampiros juvenis' como “Crepúsculo”? Qual a(s) fórmula(s) encontradas pelas respectivas autoras J. K. Rowling (GBR) e Stephenie Meyer (USA)? Livros que encontramos nas mãos de crianças, adolescentes, jovens, universitários, executivos concentrados dentro do balançar de nosso sistema de transporte público.

Que os jovens gostem de “Harry Potter” é até compreensível. O bruxinho 'do bem' que faz o que todo jovem gostaria: ter poderes extraordinários, sair voando por aí numa vassoura-a-jato, explorando mundos outros, em mil aventuras. Nada mais que a fantasia dos 'contos de fadas'. (“Peter Pan” não se alimenta de outra coisa...) Mas o pouco compreensível é que homens e mulheres, senhores de cabelo grisalho ou enfermeiras de ar sério, se entreguem – em suas viagens coletivas cotidianas ou no ar condicionado de seus escritórios – à leitura de “Harry Potter”(quando não de obras devocionais ou auto-ajuda...)

Por que tanta ânsia em ler 'fantasia'? Será uma fuga do 'mundo cinzento' para dentro do 'país das maravilhas'? Será uma tentativa de resgatar a infância perdida? Um desejo de 're-encantamento do mundo'?

Afinal de contas, estas obras não exigem muito. Texto fácil, acessível, com traduções 'mastigadas', com parágrafos curtos, com ênfase na narrativa – a história contada – e não no 'enredo' linguístico (nada de experimentalismos com a linguagem, obviamente), assim pode ser lido enquanto o ônibus oscila de buraco em buraco no asfalto magnífico de nossas ruas.

Essa facilidade é um dos 'atrativos' de “Crepúsculo” (“Twilight”) da (ex?)mórmon S. Meyer, que seduz pelo texto acessível, parágrafos curtos, enredo envolvente, narrado em 1ª pessoa, por uma 'jovem romântica', com um 'terror aliviado', um 'vampirismo light', mortos-vivos com ares de estudantes de colegial, com um suspense do tipo 'fantasia' (e não macabro-mórbido dos filmes B...) Os vampiros de S. Meyer passam a milhas dos de Anne Rice (que fez sucesso antes, de meados dos anos 70 ao início dos 90) que, por sua vez, passam a milhas dos de Bram Stoker (autor do célebre e monumental – um clássico! - “Drácula”, de 1897)

O vampirismo 'fantasista' de S. Meyer é tão inofensivo quanto “Alice no País das Maravilhas”. Mais uma 'literatura de fantasia' – com vampiros e lobisomens – do que 'terror' – ou um 'terror aguado'. É igual tomar café sem cafeína, ou cigarro sem nicotina... Ali o sexo é apenas sugerido e a abstinência é louvada. Os jovens devem esperar o 'momento' para se entregarem um ao outro, ao 'mistério' da sedução – numa cultura tão sexualizada (e ao mesmo tempo tão puritana e hipócrita) quanto a norte-americana.

É de impressionar como tais obras estrangeiras conquistam fãs aqui. Mas estamos num país de vassalos e tudo o que o suserano ianque envia a gente lê e adora... São obras que nunca chegam sozinhas (digo, não apenas em formato LIVRO, com suas traduções 'mastigadas' e suspeitas), mas sempre há todo um 'merchandising' em forma de revistas, fotos, documentários, camisetas, broches e tudo culmina em superproduções cinematográficas hollywoodianas que gastam e fortunas e recuperam tudo em superfaturamentos nas bilheterias norte-americanas e no resto do mundo americanizado, digo, globalizado.

Daí o cinema (com suas plateias ávidas de entretenimento e inchadas de voyeurismo) 'impulsionar' a venda do livro. Quem nem gosta(va) de 'literatura' vai querer ler o livro para entender melhor o filme (geralmente mais 'focado' nos efeitos especiais do que na 'narrativa', na 'psicologia das personagens') e vai divulgar para os amigos e colegas. As vendas aumentam, os títulos sobem nas 'listas de best-sellers' e temos mais vendagem (de acordo com o científico fenômeno “maria-vai-com-as-outras”)

Para resumir e finalizar. Por que ler os best-sellers? Para ter um fácil entretenimento. Pode ser. Caso tenhamos tempo e não gostemos de 'palavras-cruzadas'... Mas fazendo um link com a pergunta anterior ('por que ler os clássicos?'), a qual Calvino responde com uma outra pergunta, “Por que não lê-los?”, respondo que “então vamos ler os best-sellers depois de termos lido os clássicos”, se sobrar tempo. (Se é que vai sobrar algum...)

Afinal, por que eu trocaria a leitura (e a releitura) de “Crime e Castigo” para ler “O Senhor dos Anéis”? Ou que por que eu deixaria a leitura (e releitura) de “Drácula” para ler os livros de Anne Rice ou S. Meyer?

Afinal de contas, a vida é curta e nunca vamos ler todos os livros. Se não vamos conseguir ler nem os 'clássicos', por que desperdiçar tempo e retina com os 'enlatados' best-sellers com 'reluzente embalagem midiática'?


Fev/10

(revsd: mai/12)

por Leonardo de Magalhaens



sexta-feira, 4 de maio de 2012

sobre a obra 'Casa das Máquinas' - de Alexandre Guarnieri






Sobre a obra “Casa das Máquinas” (2011)
de Alexandre Guarnieri


Poética enquanto construto mecanicamente antilírico


Muito já discutimos sobre a poesia enquanto inspiração ou produção, enquanto arte espontânea ou transpiração ('luta com as palavras'), se Arte é algo que desabafamos ou algo que construímos. Os surrealistas preferem uma psicografia (a poesia brota do inconsciente?) enquanto os arautos da Oulipo chegavam aos teoremas matemáticos da análise combinatória para planejarem a Escrita.

De manifestos em manifestos os espontâneos e os matemáticos defendiam suas visões de Arte, uns esperando a inspiração enquanto outros se sentavam em suas mesas de planejamento, devotados aos cálculos e às regras. Um espera enquanto o outro rabisca. Um medita e o outro rabisca e apaga e rabisca. E ambos se fecham em mundos estanques. A poesia não é espera nem é teorema, é amálgama de ambas, sendo um jorro e sendo um construto.

Em ensaio anterior cuidamos da leitura da obra surrealista “Outros Silêncios”, do poeta José Geraldo Neres, onde podemos encontrar uma busca do espontaneísmo, da livre associação de ideias, da escrita (se possível) automática. Há todo um extravasar do inconsciente em imagens que são sem sentido ao mecanismo da razão. Mas há uma escolha de palavras, uma busca de lirismo, que não é fruto apenas do espontâneo, mas de um construir.

Do outro lado, numa espécie de contraponto, temos aqui em mãos a interessante obra do autor Alexandre Guarnieri. Desde a capa algo inquietante se anuncia, uma cena de 'Metropolis' [1927], o filme expressionista do alemão Fritz Lang (1890-1976), onde homens e máquinas vivem num mundo de dependência, dominação e conflito. Máquinas! Pois adentremos a habitação dos seres mecanizados!

“Casa das Máquinas” é um livro planejado, um livro matematicamente engenhado. Tem uma inspiração, uma intertextualidade, certamente, mas é um construto manufaturado, a exibir uma poesia projetada peça por peça, palavra por palavra, uma poética engenhosa e áspera ao estilo de João Cabral do Melo Neto, célebre 'engenheiro' da arte poética, com seu ritmo marcado, além da sua influência da voz popular, com cada poema sendo construído com planejada arquitetura, “Para mim a poesia é uma construção, como uma casa. Isso eu aprendi com Le Corbusier.”

Mais do que planejamento! Há um campo semântico, um uso lexical que provoca estranhamento. A mesma estranheza que causou a poesia de Augusto dos Anjos, com o conteúdo semântico da área científica, anatômica, bioquímica, metafísica, ou seja, todo um vocabulário não exatamente lírico. Em “Casa das Máquinas” as palavras foram cuidadosamente eleitas, selecionadas, a apresentarem todo um campo semântico com referência às peças de máquinas, ferramentas, petroquímica, tecnologia, automação, automobilística, construção civil, processos metalúrgicos, etc

Mecanismo, engrenagem, maquinaria, motor, mecanismo, conexão, válvula, ferramenta, desgaste, reatores, cilindros, tubos, rebites, pressão, peças, encaixes, bobinas, dínamos, relógios, lubrificantes, fábrica, calibres, turbina, matéria, potência, pistões, óleo, trabalho, cálculos, sucatas, caldeira, matéria-prima, lâminas, pilhas, serras, graxa, cifras, ácidos, pedra, pedra bruta, pilares, lixo, refugo, esgoto, concreto, rotina, greve, burocracia, autômato, guerra, etc, em suma, eis uma amostra do 'glossário'. Não é, certamente, o que acostumamos a considerar como fenômeno 'lírico' ?

Assim ler “Casa das Máquinas” é folhear um manual de mecânica, engenharia, bioquímica, eletrônica, basta ver o glossário destas áreas prática, mas é como se as máquinas (se assim pudessem!) assim fariam poesia! Lirismo com graxa!

Um ritmo marcado mesmo no poema em prosa, ou uma prosa que é poética mesmo que anti-lírica, pois conserva uma seleta de verbetes, um esmero na construção verbal. A terminologia do poema, digamos, é friamente calculada, projetada mesmo. Como confessa o autor, trata-se de “uma gramática das máquinas, caixa de palavras cuja engenharia concreta fixe alguma sintaxe”,

o funcionamento central desta escrita
guiada desde engrenagens gerais, do com-
plexo centro decisório (no miolo, o código)
aos simples acessórios do chassi (da capa
dura às páginas d'alguma gramatura); clara
aqui, uma gramática das máquinas, caixa
de palavras cuja engenharia concreta fixe al-
guma sintaxe, ou outra, esta reclusa, oculta sob
a tipografia física destes poemas rosqueados
[...]
[p. 13, interruptor ]


Reencontramos então a poesia arte-combinatória, com jogo de palavras, aliterações, mistura de falsos cognatos, de um concretista Haroldo de Campos (basta ver a obra “Galáxia”, reevocada em epígrafe aqui),

todo livro é um livro de ensaio de ensaios do livro por isso o fim-
comêço começa e fina recomeça e refina e se afina o fim no funil do
comêço afunila o comêço no fuzil do fim no fim do fim recomeça o
recomêço refina o refino do fum e onde fina começa e se apressa e
regressa e retece há milumaestórias na mínima unha de estória por
isso não conto por isso não canto por isso a nãoestória me desconta
ou me descanta o avesso da estória que pode ser escória que pode
ser cárie que pode ser estória tudo depende da hora tudo depende

onde palavra atraí palavra num jogo verbal que inspirou também o poeta Luís Eustáquio Soares, em seu “Cor Vadia” (2002),

" e futuro, o fruturo e monturo e fratura que atura e que atua como sempre imperfeito, sempre rarefeito, sempre desfeito, sempre refeito de feitos e de eitos dos fetos das netas dos netos de seus ecos ecos ...”

e

"(no barulho calcante calcando de meus pés a pele do rosto do desgosto do gosto / na falha que olha na folha do dente da tarde, que arde ao arder à pressão à pressão / à pressão, alta, do peso do peso do peso dos pés) / à sedução do não".


Onde fica evidente o anseio de elencar e deslocar palavras, em outras (e novas) redes de significação (que sentido há, é outra questão?) numa fúria linguística, numa iconoclastia da linguagem, a lembrar a poesia frenética de “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos-Fernando Pessoa, “À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica / Tenho febre e escrevo. / Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, / Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. // Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! / Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!

Intertextualmente, lembramos de outra máquina, enquanto metáfora do mundo-enquanto-mecanismo, bem ao estilo do materialismo mecanicista, aquela 'Máquina do Mundo' presente nas obras poéticas de Luís de Camões e Carlos Drummond de Andrade,

Vês aqui a grande máquina do mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assim foi do Saber alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.”

(Lusíadas, Canto X, estrofe 80)

e

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar”

(CDA, “Máquina do Mundo”)


Mais do que o mundo-máquina, temos o ser humano enquanto máquina, homem-mecanismo, assim podemos voltar ao pensamento do francês De La Mettrie, no qual o homem-máquina (L’Homme-Machine) ocupa um lugar central,

Cada indivíduo desempenha seu papel na vida que foi determinado pelos mecanismos propulsores da máquina (capacitada de raciocínio), que não foi construída pelo próprio indivíduo”, afirmou La Mettrie.



Para evidenciar o mecanismo, seja do Mundo seja do Humano, a poética se estrutura num série de técnicas, no domínio mesmo da techné, num quase organograma de intervenções, ponto por ponto, como pilares que erguem um edifício. Seja em ritmo seja em disposição de palavras (toda a diagramação do livro é planejada, propícia a uma certa recepção do texto), ali se estrutura um tipo de produção entre o prosaico e o poético (do tipo anti-lírico).

Encontramos um ritmo marcado, ou quase uma métrica rítmica, variando entre 10 a 12 sílabas, perceptíveis mesmo na 'prosa poética'. Podemos ler “uma máquina datilográfica” [p. 71] com um certo ritmo, assim “algo neogutenberg, relíquia de uma era: / non-eletric black deck, / olympia repleta / de teclas, de um écran madre-pérola / o escritor a opera, o teclado / um leque de letras da rara nave / ….” como a separar com [/] os 'versos', as unidades de 10 a 12 sílabas, segmentando o texto em prosa numa leitura ritmada. É possível.

Em “c4s4 d4s má9uin4s” [p. 75] podemos segmentar um trecho assim, “as hélices do exaustor contra a asfixia: / suas aletas de centrifugação / aceleram o tráfego do gás, antes da estagnação; / o ruido gratuito denuncia a graxa / escassa: caixa-clássica, lacrada; a carapaça aparafusada / ...” e outro trecho [na p. 77] pode ser segmentado em 'versos' de 8 sílabas: “maior que a anterior, pujante , / é essa máquina de usina, / quase sozinha entre o alarido / descontrolado das buzinas / ...”

E ainda outro trecho, em “neon : do fabrico ao uso” [p. 87] onde podemos ler de modo segmentado em versos de 10 ou 11 sílabas, no que aparentemente é um texto em prosa, assim “quem poderia supor a estranheza / de um gás aceso, que, para exercer / seu fascínio, e revelar o mais concêntrico / dos segredos, houve quem conseguisse / confiná-lo à vácuo, em estreitas / serpentinas de vidro fino, só / obtidas de um sopro controlado sobre / um fogaréu típico de maçarico, / ...”

E assim em outros trechos onde a prosa se pode estruturar ritmicamente, com palavras escolhidas, com pausas (ainda mais com o uso de parênteses) onde é possível trabalhar friamente sobre a fronteira entre prosa e poesia.

Do ritmo passemos ao uso das palavras, o glossário, a seleção que o autor dentro de um dicionário. Por exemplo, o uso de proparoxítonas, tanto pela sonoridade, quanto pelo emprego enquanto 'jargão' , ou até pelo aspecto esdrúxulo do verbete, são exemplos, algumas: rígidas / líquido ; válvulas / implícitas ; invólucros / lúbricos ; cáustico / sulfúrico; crítico / pânico ; pêndulo / autômato ; dínamo / mínimo ; telúrico / hermético ; esôfago ; módulo / lógico , dentre outras.

A sonoridade é importante, daí a escolha das rimas – não ao estilo parnasiano, claro – mas uso de rimas internas (fato / aparato ; detido / nascido) além de rimas assonantes (aquelas marcadas na última vogal tônica, tão apreciadas e manejadas por João Cabral), p.ex., algumas: encapsula / desenvoltura / carnadura ; bocas / brocas ; fendas / frestas / gretas / brechas ; dióxido / tóxico ; dentre outras.

Existem expressões inteiras que exploram a sonoridade, que se estruturam não só pelo sentido, mas pela 'aproximidade' dos verbetes, tais como : “o raro halo da harpa” ; “neurônio anônimo” ; “válvulas ovulam” ; “engate engasga” ; “enxertos de extrato exato”, dentre outras, pois em muitos trechos as palavras que se aproximam por sonoridade ou visualmente, como são exemplo, as seguintes:

fatal / falta / causa ; arriscado / fatigado ; engate / engasta / desgastam ; encaixes / caixa / desencaixam ; desencaixam / desengatam / desastre ; tranco / trabalho / tanque / turbina / tambores ; eixo / exigência / exceção / mexendo ; quatro / arranque / tanque ; empuxo / luxo; anti-horário / celibatário ; barulhário / operário; pressão / impressa / aço / couraças ; graxa / caixa ; modelo / molde ; globo / glóbulo ;

Toda esta techné está aí para passar a mensagem – a própria poesia, não um panfleto – onde mundo-máquina e homem-máquina estão denunciados além do mecanicismo, mas num contexto de desumanização. É o mundo humano sofrendo uma erosão desumanizadora. O trabalho que deve dignificar o homem, que deve humanizá-lo, é mais um a foram de suplício, de mal-estar, onde a fábrica é tortura,

nem sempre é triste mas trinca naquela liga
entre o aço mais elástico e o arrasto do ferro
incrustado de ferrugem rubra, engrenagem por
engrenagem, até o trêmulo epicentro dessa
gangrena fabril. Nem sempre se repetem, nas
forjas, tantas outras dessas órbitas ruidosas,

[p. 99, Música de Trabalho]


Há um lirismo áspero , uma ironia corrosiva, nos poemas mais prosaicos, mesmo no mundo mais desumanizado, mais metalizado, num ferro-velho de sensibilidades,

[…]
das pétalas de alumínio, que laminava com pre-
cárias ferramentas, adaptadas de garfos e fa-
cas, vinham vivos mosaicos coloridos, lindos:
fragmentos dos rótulos de refrigerante, (massa de
tomate) querosene, criolina e azeite virgem.

[p. 127, Jardins]


o anti-lirismo denuncia que a poluição está presente no mundo moderno (ou pós-moderno?) onde ar, solo, águas, células, pulmões, tudo está se envenenando, o homem-máquina está se enferrujando, num mundo que se desertifica, num rio que agoniza em sedimentos,

[…] mas aqui quase todo rio
corre enjaulado, são artérias de água sufocada nos
lentos jorros entre esgotos de tubulações, que de
mal anexadas, transbordam cancro pestilento, pus,
enxofre, último lodo sulfuroso manchando o asfalto
craqueado pela carga ingrata do tráfego rodoviário.

[p. 147, guerra civil (zona norte)]


e alerta para a gradativa, cancerígena, mórbida sujeira das cidades, das metrópoles-tentaculares, sitiadas num acúmulo de dejetos que nunca serão reciclados, nunca serão desintegrados, mas constituirão as colinas do futuro, numa paisagem de decomposição,

[…]
labirintos de detrito e lixo; a carcaça
da cidade, às claras, desentranha-se da
rígida epiderme de concreto e pedra,
revela as espinhas carcomidas, o esgoto
à mostra, maresia decompondo tudo, à
putrefação avançada, jaz o cadáver adiado
da cidade – metrópole distópica; todo o
resto é “ilusão de zona sul”, é cegueira
social maquilando severamente a carestia:
[…]

[p. 149, guerra civil (zona sul)]


Sofremos pois, dentro do mundo-máquina (ou mundo das máquinas?) há o homem-máquina – nós – na condição do corpóreo, de ter corpo, melhor: o corpo humano enquanto mecanismo, o homem-máquina, L’Homme-Machine , segundo teorizou La Mettrie, conjunto de vísceras-órgãos-membros que podem ser vistos como válvulas-pistões-ferramentas,

[…]
o que mostra esse monstro,
ogro, invólucro, é um evento
pregresso, esperado sem
mistério, ter corpo é habi-
tar o futuro cadáver de si
próprio, ignóbil, sólida ne-
crose avançando sobre o
óbvio, aviso prévio, carne e
ossada (nem sempre velhos)
desse espécime de cemitério.

[p. 165, caixa-preta]


Estamos apenas no começo da leitura / releitura de “Casa das Máquinas” - pois não se trata de um livro facilmente digerível, ou esgotável, mas antes, requer atenção constante, tamanha a inquietação matematicamente provocada. Este ensaio – sucinto e direto – é apenas um prólogo. Voltaremos ao livro de Alexandre Guarnieri em próxima oportunidade.

Por enquanto, para melhor adentrar a 'casa das máquinas' nos cercamos de um mundo tecnológico, um cybermundo de sugestões, numa semiclaridade de lan house, uma rede icônica a vazar dos monitores, onde visualizamos alguns sugestivos ilustradores para “Casa das Máquinas” , sejam o cyber-alien-punk H. R. Giger, ou o figurinista e o cenografista do clássico filme alemão “Metropolis” , ou ainda os irmãos Wachowski da cyber trilogia “Matrix”.

Meio às imagens alguns sons podem se propagar, numa verdadeira soundtrack, trilha sonora, para ler o engrenado “Casa das Máquinas” com a cybermusic do alemão Kraftwerk, com a música cyberpunk, Pink Floyd com sintetizadores em “Welcome to the Machine”, hip-hop-metal furioso da Rage Against the Machine, para citar (e situar) alguns ícones do pop, ou pop cult, da rotulada pós-modernidade.

Temos mais e mais imagens! O que são filmes além de imagens em movimento?! E não dispensam soundtrack. Filmes (de outrora e de agora) que nos rodeiam : Metropolis, Terminator (ou Exterminador do Futuro), Matrix, filmes onde as máquinas se 'revoltam' contra os seres humanos. De escravizadas, as máquinas passam a escravizar, de dominadas, passam a dominadoras, assim a humanidade se torna dependente e escrava.

Engrenagens em engrenagens, pistões em pistões, cilindros em cilindros, uma máquina dentro da máquina, e nanomáquinas nas veias, máquinas úteis e inúteis, máquinas que produzem máquinas, sim, máquinas se reproduzem! Mundo-máquina, cosmos mecanicista, englobando homens-máquinas, seres-mecanizados, sem autonomia, em labor e suor, sem prazeres artificiais, eis o pesadelo que nos anuncia “Casa das Máquinas”. Em breve rebobinaremos esta fita.


Mai/12


Leonardo de Magalhaens




mais info sobre obra & autor










...



poemas seletos de “Casa das Máquinas


música de trabalho

nem sempre é terrível a música orquestrada das
máquinas pesadas, sobretudo se ágil e sincopado
o ritmo de todos os motores a diesel enquanto
deslizam, vez por outra um solo monocórdico so-
bressai à percussão dos pistões, monólogo desen-
contrado sobre coro de vozes intercambiáveis.




nem sempre é triste mas trinca naquela liga
entre o aço mais elástico e o arrasto do ferro
incrustado de ferrugem rubra, engrenagem por
engrenagem, até o trêmulo epicentro dessa
gangrena fabril. Nem sempre se repetem, nas
forjas, tantas outras dessas órbitas ruidosas,




enquanto dura a jornada diurna um barulhário,
mas dora das fábricas, talvez o sono do operário
solitário o reconstrua quase à integralidade,
invadindo os tímpanos, sincopando, o ritornello
reclamando ad aeternum, um dentre tantos outros
pesadelos: o augúrio do contrato de trabalho.


Nem sempre é gratuitamente lúgubre, ou longa,
a música regulatória da vida útil (nula, reclusa)
dos metalúrgicos na indústria, símiles a refis
vazios, ou qualquer outros receptáculos defla-
grados, quando entregam dedo à fresa, vi-
nagre o sangue acre, tétano ou qualquer febre,
fusíveis sem brio ou viço, descartados, pinos
que por dispensáveis: necessário substituí-los.


[pp. 99, 101]





caixa-preta

no corpo, no rosto, sempre
uma caveira os frequenta,
interna, atrás da pele, sob a
epiderme; o que a superfície
serena aparenta mascara o
cancro e, por hóspedes, os
vermes; os tecidos exercendo
seu arcano, são meandro ca-
muflando o âmago; enquanto
o tórax resguarda o motor do
miocárdio; o encéfalo: no
crânio; no osso: tutano; no
esqueleto temporário, uma
centopéia de vértebras o
sustenta, as vísceras lacradas
ao ventre, mero aparato
maquiado sob camadas de
células, em série, a lânguida
flâmula no acúmulo dos
músculos, eis toda a verdade:
o que mostra esse monstro,
ogro, invólucro, é um evento
pregresso, esperado sem
mistério, ter corpo é habi-
tar o futuro cadáver de si
próprio, ignóbil, sólida ne-
crose avançando sobre o
óbvio, aviso prévio, carne e
ossada (nem sempre velhos)
desse espécime de cemitério.

[p. 165]


in: Casa das Máquinas [2011]



Alexandre Guarnieri