Sobre
O RESMUNDO DAS CALAVRAS / 2005
do
poeta Marcus Fabiano Gonçalves
Das
síndromes do Poeta enquanto Leitor
A
Escrita da Poesia nasce de uma necessidade comunicar, de dialogar.
Seja o vivido, o vivenciado, ou o coletado de fontes outras, tal como
a leitura. Sendo a Poesia feita de palavras absorvidas em universos
de outras palavras, numa textura de referências e co-enunciações,
sua singularidade (nem sempre originalidade) necessita de uma
diferenciação, um plus ultra a se fazer presente.
A
palavra que não é do Poeta, mas 'manipulada' pela Fala poética
busca se destacar na textura de diálogos, onde palavras re-lembram
palavras. O objetivo básico é a comunicação? Ou ao menos a
tentativa de comunicação? Ou uma luta inglória contra a
Incomunicação?
Na
rede moderna de mil mídias, em mil canais e mil formatos, é
necessária a diferenciação. A Poesia enquanto superação da
fragmentação. Um mundo a receber Sentido pela Fala poética. Daí
esperar-se uma 'seriedade' da poesia. Aquela mesma seriedade de uma
tradição hispânica ou de um fado lusitano. O ser no mundo ousa
falar de si-mesmo, expressar-se, comunicar-se.
Mas,
segundo o prefácio do Autor, parece que a poesia encontra-se perdida
em epigramas, onde as palavras são atiradas sobre a folha, em nome
de vanguardismos, que geraram nada mais que um pedantismo
('metadiscurso autoral') ou malabarismos que resvalaram em
publicidade.
A
necessidade de ser singular já se explicita no excêntrico título
da obra, O Resmundo das Calavras, título este explicado pelo
Autor: “No instante exato em que as palavras calam, as calavras
descem ao rés do mundo para auscultarem seu resmundo.”
(Prefácio) Há um manifesto em prol das palavras que parecem não
dizer mais o que DEVERIAM dizer.
O
Autor exalta a oralidade, 'fala franca', de Guimarães Rosa e não J
Joyce, que seria mais um fruto da 'tradição filológica', assim a
destacar uma dicotomia entre a 'espontaneidade' e a 'erudição' –
ainda que ambos os autores, Rosa e Joyce (de nomes femininos,
percebam!), sejam eruditos. (Contrapor erudito e popular exige um
contraste do tipo: Guimarães Rosa e Patativa do Assaré, por
exemplo)
Destacam-se
as ilustrações (ainda que não falemos destas) a representarem um
elemento de sinestesia – palavras, fonemas, imagens – e um
convite ao surrealismo, não como um 'complemento' aos poemas, mas
uma 'encenação' não verbal das mesmas temáticas.
Quanto
as temáticas, o Autor 'segmenta' o livro em blocos temáticos, isto
é, sobre o mesmo assunto, tipo Metalinguagem, Língua, Tempo, Vida
moderna. Em 'Poemísculos Decausais', encontramos poemas
curtos epigramas, trocadilhos, em suma, poemas mais irônicos do que
sérios; enquanto no 'tópico' seguinte, “A Impressão da
Sensação” coleciona sinestesias, imagens, corporeidade,
punição,
convoco
o marceneiro da cadeira elétrica
o
carpinteiro do castigo
o
demiurgo do choque letal
entre
a carne e a carne do inimigo
(p.
41)
Coletânea
de imagens de tradição e da mitologia, os vultos espectrais de
Narciso, Hermes, Penélope, etc Em “Penélopes de Nenhures”
é de se indagar: os marujos esperam as 'penélopes'? Ou as
'penélopes' esperam os marujos? Os marujos não são aqueles homens
do prazer imediato? Mas trocariam as Circes e Nausícaas por futuras
'penélopes'? Mas existem as 'penélopes'?
A
corporeidade – não apenas sedução, mas tensão entre coisa
física e ser sensível – é a presentificação do corpo =
máquina, nos poemas “Ad Nutum” e “Nuca”,
onde ressuscita o homem-máquina de La Mettrie, “o pescoço: /
um cilindro / de cabos e dutos,” na imagem plena da
'coisificação' do corpo.
Em
“Nanquim” (p. 49)
temos as fotografias de momentos, relances, olhares na sedução do
fugaz, como aquela mulher que passa, do poema de Baudelaire (Une
femme passa, d'une main fastueuse /Soulevant, balançant le feston et
l'ourlet; Uma mulher passa, com mão faustosa / Erguendo,
balançando a saia assim; (LdeM) “A une passante”) ou da
bela Malena do filme de G. Tornatore,
Quem
é essa que quando passa
armazena
inteira
a
noite num olhar negro?
“Oparin”
rememora a evolução a partir de uma fagulha, nas experiências do
bioquímico russo Opárin, nos idos dos anos 30, quando buscava a
'origem da vida' através de faíscas agindo sobre gases atmosféricos
para gerar os aminoácidos, “do átomo à proteína / e desta à
célula'. O poema medita mais sobre o sentido da vida além de
uma possível origem a partir de eletricidade e moléculas gasosas.
Este poema serve até como um contraponto ao lírico
“Beija-flor-do-mato' (na página anterior) que apresenta um
Eu cúmplice da Natureza, assumindo a identidade de um colibri para
ir fecundar a Amada, “e se te fecundo entre relva tão vasta /
me disperso e me desatino / desse teu pólen de máscara”.
O
corpo não é apenas aquele do homem-máquina mettriano, mas também
uma coisa em movimento, propulsão em si-mesma, tal a “Bicicleta
de Leonardo” (p. 53)
uma
máquina / movida a homem
que
quando nela é seu cocheiro
é
ainda seu cavalo / e seu próprio passageiro
Esta
capacidade de visão e re-criação é primorosa em O Resmundo das
Calavras, com poemas que articulam jogos entre significantes e
significados, entre abstratos e concretos, “o gesto extremo da
pura carne no prego / a gana de sangue e o medo do morno/ que em ti
tantas vezes renego” (“Carta ao pai”), “nas
persiana / que cerram atividades / no dormir no gozar e no morrer...
nas nascentes laterais de onde brotam / águas ablativas de dores
ciscos e alegrias” (“A olhos vistos”), ou “do
miolo das substâncias mais duras/ escorro o charco de meus alagados:
/ é um escoamento hemorrágico / morno rubro vivo e grosso”
(“Areia”) o que não deixa de lembra certos simbolismos de
crueldade-sublimidade em Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos.
Neste
jogo de criar e re-criar, a palavra é mesmo verbo, é 'ação',
quando a fala vem agir sobre o 'real', a Efetividade (de
“Wirklichkeit”, onde 'wirken” é agir sobre,
operar em, trabalhar com), com um poema (“Panifico e construo”)
tenso de verbos e atuações, onde o Poeta deixa claro que “panifico
e construo / e meus pães eu distribuo / como quem oferece pedras /
em uma ceia de banguelas”, evidenciando que tece versos que
somente os 'Eleitos' terão a sapiência de degustar.
Esta
noção da própria pujança poética só pode mesmo gerar mais
metalinguagem, onde usa-se a poesia para falar sobre poesia. Desde os
antigos gregos, com toda a força da poesia = música
(enquanto hoje ainda tem gente falando em 'poesia visual'...) e não
meros 'sinais gráficos', a prisão da Escrita, que limita a
oralidade dos versos. Os gregos eram sábios artífices da palavra =
sonoridade, pois “o discurso / tinha na voz alta a sua melhor
medida / tal como os antigos gregos” (“Dois Pontos”,
p. 63) O tema da poesia se reapresenta páginas adiante no “Xepa”,
onde “a poesia não pode tudo / e a cada dia tira menos / do que
muito já é pouco”, a radiografar os esforços do fazer
poético (“nesse esforço de insetos”) extraindo (igual V
Maiakóvski) e catando (igual J C Melo Neto). (1)
Já
o poema “Querosene”(pp. 64-69) ousa uma re-escrita da
História, na verdade uma 'ciranda sanguinária'. A História do
Brasil um capítulo na História universal numa estilística
verbo-cubista,
Brasil
epitáfio do carvão
quem
vai tirar do prego o penhor dessa igualdade?
Quem
é que mama sozinho no seio dessa liberdade
e
ainda desafia o nosso peito à própria sorte?
Diante
de tanta barbaridade, a Voz poética acaba descrente, após
frequentar igrejas, seitas, ideologias, e percebe-se resignado, “e
agora / após assimilar a derrota / depois de resignado à
incredulidade / já conformado à desafinidade”, mas o discurso
não é de todo niilista – se fosse niilista, o Poeta escreveria?
Ao
escrever o Eu poético já imagina seu Leitor, sua Leitora. O Eu
acaba por fundir-se a este Tu idealizado no próprio 'corpo' da
Mensagem. O uso da 2a Pessoa é explícito, “tua leveza pluma”,
“te recobrindo”, “desse sol que só tu tanges”, “a dupla
epifania do teu sopro”, onde ao dirigir-se ao Tu, o Eu mergulha
na função conativa, apelativa, além de testar o canal de
comunicação entre os interlocutores. Com todo este discurso a la
Bakhtin, Jacobson e Charaudeau, queremos dizer: o Eu idealiza o Tu ao
convencionar toda uma mensagem para declarar-se – e seduzir – o
Outro,
no
redor de teu caule / ao invés de espinhos
um
fino véu de tule
te
despimos desse véu
...
verte
agora / esse sangue-sumo
da
carne amarela / de teus gomos
(“O
Sal e a Fruta”, pp. 74-75)
Sendo
um Poeta Leitor, aquele que digere na Escrita as tantas Leituras, o
Autor de O Resmundo das Calavras, tece referências às tantas
tradições, mitológias, obras clássicas que ocupam-lhe as estantes
e os neurônios. É todo umlabirinto de alusões que evidenciam o
dialogismo, quando um texto fala de outros texto – consciente ou
não – e ousa um diálogo intertextual, onde discursos se
referenciam em discursos, imagens se espelham, o tal labirinto.
Voilà.
À
solidão do minotauro / pouco importa a saída
Ariadne
agora aplica-se / ns suas lições de cartografia:
(“O
Mapa do Labirinto”, p. 77)
Minotauro,
Ariadne, o implícito Teseu, lado a lado com Iessiênin! O poeta
russo em suicídio nada lírico fornece a “derradeira tinta”
para dar a cor rubra do novelo que guia o herói para fora do
labirinto de Creta. (2) Iessiêni pode ser inclusive uma
influência para o “Enforcado”, poema vizinho, que lembra
tambe a figuração da carta do tarot clássico, “The Hanged
Man”, sublimando o símbolo trágico, “suspenso no
desespero / que o chão não toca / o enforcado erige / a si e aos
outros / a estátua do próprio corpo,” (p. 78), tema difícil
e áspero, o suicídio, que é o tema filosófico por excelência,
segundo o escritor existencialista Albert Camus.
A
morte e o tempo são temas em “De dentro da guampa do tempo”,
um tópico com algo de barroco de grotesco – afinal, sabemos o que
é o tempo, mas se alguém pergunta.... quem sabe explicar? Falar em
'devir' soa até pedante (ar de teólogo diante de ateu!) quanto mais
'convulsões de um devir'! Sabemos que não se explica 'imagens
poéticas' mas algumas não passam de bizarrices. Não há qualquer
'convulsão' no tempo (ou 'devir'). Nós, humanos, é que complicamos
as coisas. (Ainda que a Poesia não tenha compromisso com a Verdade
filosófica; mas é o Poeta que resolveu filosofar...)
As
imagens do tempo – seja touro, moinho, panzer (carro
blindado) – além dos chavões ('o tempo cicatriza') não conseguem
convencer. Um capítulo de “A Montanha Mágica”, de Thomas
Mann, sobre nossas impressões sobre o tempo, acabaria por eclipsar
todas estas imagens de 'espera', 'apodrecimento', 'ser diante do
devir', 'o touro do tempo', 'areia do tempo', 'tempo cicatiza',
'voragem da história', etc, que poeticamente soam bem, mas nada
dizem de 'singular'.
Mesmo
quando o Eu busca a cumplicidade do Tu – mesmo quando o Eu é uma
cisão: Eu-de-hoje e Eu-de-ontem, e o Presente pode referir-se ao
Passado como se fosse 3a pessoa, ou falar com o Ontem como se
dirigindo a um Tu,
respiras
como um fole furado.
permaneço
na cama. Imóvel.
sustento
o teto com os olhos.
chora
a filha do vizinho.
resiste
o teu sono.
(“Cata-ventos
de ar comprimido”, p. 90)
Apesar
de toda a solenidade e imagética e metafísica de “Mar Raso”,
“A Sina dos Espelhos” e “Sono dos Espelhos”, o
Autor sofre da síndrome do Poeta-Leitor: se livrar das tantas
Leituras. Não estamos a reclamar 'originalidade', pérola rara, mas
“fazer algo do que as leituras fizeram com ele” (parodiando
Sartre, “o que fazemos a partir do que fizeram de nós”) É
basicamente o problema de Borges: porque a poesia de Borges não
permaneceu? Resposta: porque ele era um bom prosador. Um irônico
prosador. E o contraponto disso é fazer poesia séria. O que Borges
pensava de Neruda? Ou de Octavio Paz?
Os
tópicos seguintes são igualmente densos e eruditos. A poesia
raramente flui. “Logos lusos” e “A água da língua na régua
da légua” são leituras e releituras da presença fonética e
semântica da Língua Portuguesa e seus jogos poéticos e prosaicos.
A “última flor do Lácio” vai sendo despetalada. A mescla
de elementos não lusitanos, mas indígenas e africanos, os
estrangeirismos, tudo isso distende o idioma até novos limites.
Novos criadores são requisitados para a 'arquitetura das palavras' –
dois nomes surgem no papel : Ferreira Gullar e Oscar Niemeyer, ambos
arquitetos, o primeiro, da palavra, o segundo, do concreto. Além de
uma interseção ideológica: o comunismo.
O
rumo do prumo
de
cidades inventadas em poemas sujos
de
cimento e ferro
(“Curva
do concreto”, p. 115)
Além
de utopias coletivistas segue a 'língua das navegações', um
Lusíadas pós-épico, sem os decassílabos heróicos da tradição,
por mares ainda não navegados e poemas ainda não escritos. De Poeta
para Poeta, as homenagens se seguem. Vinicius de Moraes e João
Cabral de Melo Neto em diaĺogo: a lírica do primeiro versus a
aridez do segundo. Os poemas 'vindos do coração' em 'excessos de
lírica' sofrendo com os 'versos enxutos', 'poemas de emulsão' da
faca só lâmina do sertão.
Mas
as homenagens nem sempre 'dão certo'. Pode acontecer de o poema não
homenagear o homenageado. Um poema para Manoel de Barros – e que
cita Wittgenstein! De nada adiante “chã dizência”, ou
“adâmica argila constelar” ou “poucuras
de muinadas” para salvar o poema... Afinal, nada de
pensamentos aqui. (Por este critério é que o Riobaldo de Guimarães
Rosa não passa de personagem de ficção, pois o Rosa 'peca por
excesso') O mestre de Manoel de Barros é um Alberto Caeiro, um
sentivio não-pensador. O oposto de um clássico Ricardo Reis ou de
um moderno-tecno-estressado Álvaro de Campos!
Uma
poesia de referências é bolo de chocolate com cereja dura de
engolir. Exige conhecimentos de História – já vimos em
“Querosene” - as querelas entre abolicionistas,
republicanos e monarquistas; exige melodias de Heitor Villa-Lobos
entre músicos e músicas; exige uma fala de espontaneidade de um
Patativa do Assaré em contraponto aos imperativos da Gramática.
Aqui percebemos o quanto fazer um curso de Letras é até prejudicial
para o Poeta-Criador que perde-se no ofício de Poeta-Leitor a sofrer
as indigestões das regras e semióticas.
A
metalinguagem é um mal (pós?)moderno dos Poetas-Leitores. Falam
demais da própria ferramenta, da própria criação poética – e
nada hora de dizerem alguma coisa, NADA dizem. É um discurso girando
dentro de si mesmo, autoreferente. A metalinguagem atinge os
incômodos de um 'eruditismo', de um 'pedantismo', fruto (ou erva
daninha) de um 'academicismo' capaz de gerar versos do tipo: “eis
aí a linguagem em seu mistério de morte” (p. 129) ou poemas
cheios de oxímoros e contrapontos barrocos (vejam “O Simples e
o Fácil”(pp. 130/131) e
“A Lebre e o Coelho” (pp. 136/137))
A
metalinguagem lembra mais aquelas personagens a procura de um Autor
(em Pirandello), assim as personagens da Odisséia a comentarem sobre
a futura cidade dos poetas – aqueles infelizes expulsos da
República platônica – onde até Homero vê no escuro! Homero, o
dito autor de Odisséia. É como se Hamlet ou o Rei Lear tecessem
comentários sobre William Shakespeare!
Esse
jogo de 'é poesia' e 'não é poesia' cria até mal-estar. Às vezes
soa irônico, iguais aquels poemas do Manuel Bandeira (“Abaixo
os puristas”, em
“Poética”), Mário de Andrade (“ode ao burguês”)
ou Álvaro de Campos (“estou farto de semi-deuses”), onde
o Autor joga no mesmo time dos poetas loquazes que ele desafia!
“basta de autores narrando / labirínticas entranhas deusadentro
/ como se só eles – intestinos loquazes / secretaassem tais
excrementos // às favas os semideuses!” p. 134)
O
Poeta precisa ficar a se explicar o que é Poesia? Igual aos
escritores do Nouveau Roman, ótimos ideólogos do tal 'novo
romance', mas autores de romances dos quais ninguém se lembra. Bons
teóricos, bons retóricos, mas péssimos artesãos da palavra
ficcional. Teorizar é mais fácil que criar ficção de qualidade.
São escritores acadêmicos que escrevem para outros escritores
acadêmicos, em suas 'torres de marfins'.
Ressuscitar
o 'beletrismo'? Uma 'bela escrita' sem vivacidade, talvez. Mas,
depois de Walt Whitman e dos modernistas e dos beatniks,
voltaremos ao 'beletrismo' de Baudelaire, Verlaine, Valèry? (Parece
que é justamente isso que os Poetas-Leitores querem. Vejam um Alexei
Bueno, um Moacyr Félix, um Marco Lucchesi. Depois de Melo Neto,
depois de Leminski, exumaremos Bilac.)
Há
algo pior do que Poeta falar sobre o Ser Poeta? Coisa que até era
suportável em M Bandeira, M de Andrade e C Drummond de Andrade, hoje
é tédio puro, até náusea. (“O poeta entra no elevador. / O
poeta sobe / O poeta fecha-se no quarto. / O poeta está
melancólico.” CDA, “Nota Social”) Já bastam os
poetas-ensaístas (alguns até memoráveis, a saber, Poe, Baudelaire,
O. Paz, E. Pound...) que teorizam a Arte (que quando mais teoria
sofre, mais hermética se enrosca). Quem imaginaria Manoel de Barros
a teorizar sobre poesia. Deixando de fazer versos para dedicar-se aos
ensaios. (Ou: Patativa do Assaré com diploma seria capaz de escrever
o que escreveu SEM diploma?)
O
que é Poesia? O que não é Poesia? Velho ramerrão. Drummond também
não perdoava, “Os impactos de amor não são poesia.”, “Que
é poesia, o belo? Não é poesia...”, “De que se formam nossos
poemas? Onde?”, “O que pensas e sentes, isso ainda não é
poesia”, e etc etc, está tudo dito. Pode ser que poesia seja
mesmo igual 'catar feijão' (aqui em “O Garimpo e a Cata”)
ou que seja tal um tomate maduro (“a poesia é maduro tomate em
sua rubra carnadura”, “Tomate”), mas sempre há um
'poeta fingidor' que “finge garimpar enquanto cata”. Há
uma voz subjetiva que seleciona (mesmo implícita). Agora , não é o
mesmo que dizer: 'é poesia aquilo que o poeta diz ser poesia' (em
paródia ao que disse Mário de Andrade sobre os contistas, “conto
é tudo aquilo que a gente chama de conto”)
Onde
então a 'salvação' de O Resmundo das Calavras? Sim, há uma
'redenção' ao Poeta-Leitor. Deve ele se transmutar num
Poeta-Observador. Deixar os livros na estant e ir ver o mundo. Sentar
à varanda e ouvir a turbulenta música da cidade. Sofrer com os mil
assaltos e atropelamentos e misérias. Comer no restaurante burguês
ou ser servido com um p(rato) f(eito) num botequim da zona boêmia.
Assim,
o grand finale d'O Resmundo salva a Obra.
“Perambulâncias” tem todo aquele tom épico do homem das
multidões, do artista moderno, das imagens de Baudelaire a percorrer
as passagens de Paris. O Ser que observa o Mundo, em 'leituras e
andanças' (segundo a poética de Vinícius Fernandes Cardoso,
segundo ensaio anterior, a fleratar com os beatniks, a poesia
marginal, de mimeógrafo – ou impressão doméstica), onde o Poeta
vivencia, experimenta o contexto urbano – sem mediações. É
assaltado, é atropelado, é abandonado na noite suja.
O
Poeta na nova Babilônia (ou 'nova Mesopotâmia') da vida moderna, a
cidade metrópole de luzes e penumbras, sofre a “Esgrima das
Esquinas”, a violência urbana, ao caminhar sobre o fio da
lâmina,
andar
os gumes de qualquer cidade
é
se cortar de ruas ao ganhar atalhos,
...
pelas
cidades do como se corta
ou
do quanto se perfura
cada
arma reclama um estilo
e
uma certa empunhadura:
As
cenas urbanas se mesclam com cenas de carências e solidões (somos
os 'homens vazios/ hollow men' de Eliot, somos as 'lonely
souls' de Unkle [banda techno-pop], somos os 'burgueses
sem religião' de Legião Urbana) numa miríade de apelos e produtos
sob luzes néon. E diante de tanta opulência e tanta miséria, no
paraíso da 'injustiça social' - “uns mais iguais que outros” -
somente nos resta rezar uma paródia do “Pai Nosso', numa “Oração
do Favelado”, “pai nosso que nos deixa ao léu /
santificada seja a nossa fome”, quando a miséria coabita junto
a fé, e a religião é uma forma de caridade paternalista, um
consolo para as massas (“o ópio do povo”, segundo K.
Marx), que mantem a mendicância da miséria (afinal, pobre e mendigo
existem é para madame dar esmolas, não é?)
As
cenas da vida urbana são fotografias um metrô lotado, a
ineficiência dos transportes coletivos (quando o mundo se entope de
carros...), ou o horror da guerra – com o bombardeio de cidades
vitimando os civis desarmados, em “Londresden”. Se London
foi parcialmente destruída (quase metade da área central), a cidade
alemã Dresden foi paraticamente arrasada (fontes calculam de 80 a 90
%) A população não vai até a guerra – é a guerra que é
entregue a domicílio.
Um
mundo moderno onde o hoje repete o ontem, a burguesia repete os mesmo
erros da nobreza. A tradição golpeia de volta, o medieval está aí
com os latifúndios da época das capitanias hereditárias! “O
Asseio do herdeiro” (p. 161) mostra perpetuação da 'ordem
burguesa' que lava as mãos enquanto as epidemias se alastram, e
perdem os dedos ao manterem os anéis.
Hoje
reinas no banco
que
foi do avô de teu avô,
que
era o senhor de todos os escravos
e
de todas as terras dessa freguesia
Enfim,
afinal, Paris é uma festa (obra de Hemingway, amigo de Fitzgerald, aquele da 'era do
jazz') e todos os burgueses brindam suas taças de champanhe.
Nós, os bons pensadores, sabemos como sermos bons cúmplices, em
manter nosso silêncio, enquanto pagamos as contas, os impostos, as
prestações do carro e do apartemento (nessa ordem!) As cenas de
Paris nos emocionam. Ah, como bons fãs de Baudelaire que somos!
Paris,
és uma festa!
uma
festa para quem te desfruta
na
embriaguez dos instantes ebulidos
pelo
champanhe dos teus séculos de civilização
Uma
festa de nostalgia e cabarés, de prazeres fugazes e vulgares! Todo
mundo já foi a Paris – resta saber se àquela de Stendhal, ou de
Victor-Hugo, ou de Balzac, ou de Baudelaire, ou de Rimbaud, ou de
Maupassant, ou de Zola, ou de Fitzgerald, ou de Hemingway, ou de
Sartre, ou de Sarraute, ou de Perec, etc. Cada olhar, cada autor,
recria a cidade luz, “La Vielle Lumière” a cada
descrição, à medida em que a cidade é re-edificada pela Escrita.
Ao
cair a cortina d'O Resmundo, esperemos que o Autor possa
através observação sensível do mundo, na gradação do olho e da
pele que tudo registra e decodifica em novos códigos, transmutar-se
de Poeta-Leitor para Poetas-Leitores num Poeta-Observador para
Poetas, leitores ou não, e Leitores, poetas ou não.
mar/abr/10
revsd: jun/12
por
Leonardo de Magalhaens
http://leoliteraturaescrita.blogspot.com
BLOG
do Autor Marcus Fabiano Gonçalves
Notas
(1)V.
Maiakóvski compara a criação poética à extração de rádio a
partir de montanhas de minério,
A
poesia
é como a lavra
do rádio,
um ano para cada
grama.
Para extrair
uma palavra,
milhões de toneladas de
palavras-prima.
Porém
que flama
de uma tal palavra
emana
perto
das brasas
da palavra-bruta.
(trad.
Augusto de Campos)
vejam
o poema completo em
enquanto
João Cabral de Melo Neto fala de um 'catar feijão' em similitudes
com o fazer poesia,
Catar
feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do
alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se
fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água
congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão,
soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.