sobre
os poemas de “Rastros” (2006)
da
poeta Vera Casa Nova (RJ / BH)
Em
busca do Eu-lírico indefinido
Uma
das temáticas mais presente na atual produção poética – e
sintomaticamente na crica literária – é a problematização do
fazer poesia, do ser poeta, do encontrar-se enquanto voz lírica
(quem é a voz lítica? O eu lírico? Onde está o autor?) ou
enquanto sujeito que se expressa (porque decidiu não se calar).
Mas
o/a poeta tem apenas uma voz? Ou ele/ela encarna uma pluralidade de
vozes, de dizeres? Há uma perspectiva privilegiada no ser-poeta? São
muitas as questões que são levantadas – a ponto de se escrever
teses com mais indagações do que respostas. Na falta de um ponto de
vista sublime, temas uma descentralização, logo os ecos das vozes
marginais.
Daí
que são muitas as vozes do poeta – a dele/dela, a do outro/a, a da
sociedade, a do contexto histórico, etc – muitos 'eus' habitam o
Eu. E desde as teorias e talking cures de Freud o Eu não é
íntegro, mas tripartido (ver Id, Ego, Super-Ego), o Eu é
formado pelos aprendizados no mundo social, ou seja, com o outros,
seja família, escola, igreja, clubes, etc. Logo o Eu poético também
é multifacetado, posto que multideterminado – circunstâncias
várias o pré-formataram.
Assim
o Eu-poeta é fruto das leituras de mundo, de outros poetas, de
outras tradições filtradas pela sensibilidade individual na forma
de texto artístico a ser enviado a outras sensibilidades que
recepcionam de acordo com suas
peculariedades-qualidades-precariedades. A voz lírica não é só do
poeta – é de todos os poetas lidos, os que vieram antes, os
atuais, os contemporâneos, ou seja, tanto a tradição quanto a
geração - , assim a voz não é una, mas 'mil vozes',
“Todos
os poetas percutem em mil vozes dentro de mim
O
poema insiste em ser inscrito no corpo” (p. 9, Epígrafe)
E
nesta dissolução do Eu-lírico – incerto sobre si mesmo,
imagine-se então sobre o mundo ao redor! - o desabafo oscila entre o
personalismo-individualismo e o mosaico de vozes ('mil vozes')
onde o que importa é a expressão verbal – ou visual – a ponto
de o poema se esvaziar do eu lírico (autoral ?) e o poema falar de
poema, de outros poemas, do fazer poema.
Nesta
obra “Rastro”, de Vera Casa Nova, poeta, professora e
crítica literária, podemos notar estas indagações sobre onde está
o Eu e onde está o Outro, onde a voz autoral é uma colcha de
retalhos de outras vozes (ditas) autorais. A poesia seria um modo
possível de expressão? Ou um jogo de palavras despersonalizado? Ou
um estilo de rearranjar-montar redes semânticas ao fazer as palavras
se des-dizerem?
Haverá
alguma lacuna para a expressão pessoal? Para uma confissão? Ou
seja, para alguma poesia lírica?
“Ainda
se fazem poemas de amor?
Com
que amor se faz um poema de amor?” (p. 14 , Poeminha
menor)
Ou
para o eu lírico em busca do amor? (nem vamos debater aqui o que
seja 'amor' no contexto prosaico ou poético, ou na cultura ocidental
cristã)
“Minha
descontinuidade é a busca incessante e frenética
De
um Eros possível e imponderável.” (p. 19, Eros histérico)
Ou
a sinceridade de algum desabafo comunicável ? (A contrariar o
assustador: “toda poesia é incomunicável” drummondiano),
“E
reescrevo as notas melancólicas
De
uma utopia desfeita.” (p. 21, Interrogação)
“Clamo
pelas palavras possíveis
As
não ditas ou apenasmente
Gritadas
pelo verso.” (p. 23, Jogo)
Ou
antes, podemos esperar o apurado trato com as palavras? O jogo de
palavras num dizer que des-diz o comum? Um lúdico sobre por de vozes
sobre vozes que se banalizaram? Num reencontrar a palavra num
reencantamento (se possível for)?
“Experimento
a delícia das palavras;
Como-as
como posso.” (p. 24, A Veia)
“Palavras
se (me) movem
poéticas
viajantes
nessa
música do corpo” (p. 29, Versão)
“O
velho dicionário de Aurélio
Mostra
as impossibilidades da palavra.” (p. 60, Esboço de Vida)
Mas
jogar com as palavras é suficiente para ser poeta? O ser poeta é
uma capacidade de expressar a sensibilidade? (afinal, todos têm
sentimentos, mas nem todos são poetas...)
“O
poeta se esconde por entre os muros
Pichados
da cidade.”
“ E
o poeta se dilacera
Diante
do olhar dos objetos.” (p. 26, Dias... Noites)
Daí
indagarmos, pesarosamente, lirismo e pensamento: como conciliar? :
poesia sentida ou pensada? Como deixar o coração verter versos sem
sofrer bloqueios do cérebro, do super-ego, da gramática, do manual
de redação?
“Penso,
logo, insisto:
E
pensar nem sempre é preciso.”
(p.
36, Pensamento Tolo)
Temos
o pensar sobre o poético nos próprios poemas - no fenômeno de
metapoema - quando a poesia inclina-se sobre si mesma, olha-se
no espelho, fala sozinha, briga consigo mesma. O fazer poético
analisado, reavaliado, com muita metalinguagem: “Não sei como
um poema se faz.” (p. 74) o poema parece que simplesmente
brota. E não pode ser explicado, evidenciado. (A Crítica bem que se
esforça...)
“O
poeta diz algo sobre seu poema;
Melhor
não dizer nada.” (p. 74)
Mas
afinal o que é poesia? O que mais dizer (pois não podemos
nos silenciar...) sobre o fenômeno poético, sobre o que
pensamos, ou rotulamos, na qualidade de poesia:
“poesia
é feita pra gente comer” (p. 40)
“A
poesia é uma comunidade sem fim” (p. 61)
Voltamos
ao ponto, girando em círculos: pensar ou sentir? Pensar E sentir?
poesia é então inspiração? Fonte inconsciente? Como queria o
surrealista francês Breton... ou seria um esforço? Mais
transpiração que inspiração? É um desejo de falar mesmo sendo
melhor ficar calado? Ou falar justamente por cauda do medo do
silêncio? Do medo do não-comunicar?
“o
silêncio pungente / nos arrebata, / nos persegue até a paranóia”
(p. 29)
“O
sopro que anima as veias das palavras.” (p. 74)
“Sou
a impossibilidade dos versos.” (p. 87)
O
que acaba acontecendo é um fenômeno bem moderno, até pós-moderno
(como desejam os críticos) onde o Poeta vive em diálogo com
o/s poeta/s. O poeta que fala aos outros poetas, numa teia de
intertextualidades. Com o poeta, ou antes, a figura do poeta,
“O
poeta... o diferente das gentes
ou
… … o indiferente
passeia
por entre seus versos
inquietos”
(p. 61, Não)
“O
poema é ironia da vida
E
tu, poeta, morto ou vivo
Circulas
deixando rastros” (p. 40, Logogrifos)
“Ei,
poeta! Vamos namorar um pouquinho?” (p. 44)
“Dói
a falta do verso: ouvir e pensar
Versos
que não são meus, nem teus, são de ninguém ou de todos:
Quintana,
Drummond, Waly, Haroldo: onde se encontram se não
nos
versos
da
memória do impensado?” (p. 38, Vertigens)
Poetas
aí citados que mostram o percurso de leituras da poeta, temos no rol
o mineiro Drummond de Andrade, e o homem do pantanal Manoel de
Barros,
“Desse
tempo de poeta itabirano
Removo
meus ais passados:” (p. 57)
“Manoel
de tanto barro
oferece
seus versos partidos” p. (57)
Notamos referências ao poeta
francês Rimbaud, aquele que vivia com as 'alquimias do verbo', com
seu poema surreal “Bateau Ivre” , Barco Bêbado, no
“turbilhão de vertigens pós-tudo” ('pós-tudo',
pós-estruturalismo, pós-concretismo, basta ver Baudrillard e a
questão dos 'simulacros' em nossa 'pós-modernidade'),
“Percorro
a água revolta no barco de Rimbaud” (p. 43, Retorno
Rimbaud)
referência
também a Jorge Luís Borges, o contista argentino, com seu infindo
“O Livro de Areia”,
“Escrevo
nesse livro de areia.
Borgeanamente
ofereço versos
A
quem passa na esquina da vida.” p. 53
Interessante
diálogo com Bandeira e Drummond: sobre a Indesejada da Gentes,
traduzindo: A/O Morte. O eu-lírico aqui está numa posição de
contraponto, não exatamente preparada quanto o poeta de Pasárgada,
“Quando
a indesejada das gentes chegar
não
estarei com a casa limpa nem com a mesa posta” (p. 91,
Indesejada)
em
comparação temos aqui o poema de Manuel Bandeira (“Consoada”)
“Quando
a indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô,
iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite
com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa
limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.”
E
outros poetas para o rol de influências: em “Espelho” (p.
92) temos referências a Álvares (de Azevedo), Olavo (Bilac), Castro
(Alves), Alphonsus (de Guimaraens), Murilo (Mendes), Drummond (de
Andrade), Waly (Salomão), num recorte que vem desde os poetas
românticos do século 19, passando pelos parnasianos e simbolistas
na transição para o século 20, pelos modernistas e chegando até
os poetas da dita 'geração marginal', nos anos de 1960 a
1980.
Não
apenas estes, encontramos outros nomes no rol de leituras que nos
possibilita rastrear a 'angústia de influência' (please,
ver a teoria do scholar Harold Bloom) da autora, Fernando
Pessoa; Joan Brossa, o poeta catalão : poesia para se ver (na p.
68), o francês Francis Ponge,
“sou
o tudo e o nada pessoano” (p. 65)
“desespero
em ler seus versos tão simples.” (p. 69)
além
de um recado desaforado para o poeta Boris Vian, que despreza os
'bestas' poetas e não poupa as mulheres, o que a poeta não deixa
por menos, em seu desabafo: “mando você à merda” (p.
84)
poemas
de Joan Brossa, Francis Ponge e Boris Vian em
Além
do diálogo com outros poetas (ou outros Eus) temos tentativas
confessionais, escuta do outro, um colocar-se no lugar do outro, uma
voz de exortação. Mas podemos dizer Poemas pessoais-confessionais?
Sim, temos. “As Formigas”, “Saudades de Carnaval”,
“Poema para Cla”, e não seria confessional? : “Perdi-me
entre paixões vadias e românticas” (p. 92)
Mas
não sobre si mesmo o eu-lírico se expressa, afinal o Outro está
mais dentro do que fora, com identidades que se mesclam, se fundem,
basta comparar com já citado Rimbaud (“Eu é um
Outro”, “Je est un autre”)
“O
que dizer de mim se sou o outro de mim?” (p. 71)
Daí
o jeito é escutar o outro: “onde possa escutar os versos que
estão fora de mim.” (p. 71) ou tentar tornar-se o outro:
“Tornar-me criança, animal, negro, bicha. / Todas as minorias /
maiorias do mundo / Isso para não aniquilar as esperanças”
(p. 72) ao identificar-se com os 'humilhados e ofendidos', os que
vivem nas margens.
Tanto
que o outro está presente no pronome 'nós', quando o Eu engloba o
Outro, inclui outras vontades, outras vozes, e deixa de olhar o
próprio umbigo, num poema de exortação: exatamente, o eu exorta o
outro, até dá conselho, anima!
“Misturem-se
nas cores do universo
E
não se esqueçam de nada:
A
memória é nossa força,
Ela
nos inventa a cada dia.” (p. 75)
É
nestes momentos que a poeta consegue fugir aos simulacros de
metalinguagem, ou intertextualidades, e finalmente diz mais do que
sobre poesia e poetas. Ela tem realmente algo a dizer – não que
espere realmente comunicar. Temas universais aparecem – acima a
exortação, a voz coletiva – que encontramos tanto em Whitman e
Neruda, p.ex. - e na filosofia, o tema do viver o hoje e não se
preocupar com o amanhã – 'carpe diem' – aproveite o dia ,
“Hoje,
não consigo pensar no amanhã” (p. 77, 'Amanhã')
não
pensar no amanhã – mas viver o hoje – eis um tema dos poetas do
Barroco, e também do Arcadismo e do Romantismo – a vida enquanto
fenômeno efêmero - mas o inquietar persiste: “Qual o saber no
amanhã revelará meu dia?” (p. 77)
Quando a voz poética dá livre curso ao voos – rumo a outras
imagens / paisagens: “O céu sempre cinzento de Paris
manchava-se de pontos negros... / Tentava-se ouvir o inaudível do
grito.” (p. 73) quando lembramos do grito do quadro de Edvard
Munch, “Mas em mim / Os silêncios podem ser ouvidos.” (p.
73)
A
voz então se torna audível quando comunica uma expressão de época
– pois é coletiva – uma visão de mundo, um testemunho pessoal –
além de olhar a própria poética, ou dialogar com poéticas ao
redor ou no passado. A autora, a poeta, a professora, a crítica
literária, ou seja, as várias atividades-identidades se entrelaçam,
forma uma pessoa que saber-se várias ao mesmo tempo.
É
quando a voz se personaliza, ela tem um lugar no tempo, tem sua
geração. Uma geração da Utopia , ou antes as utopias de cada
geração, seja nacionalismo, libertação, revolução, consumo, não
importa, sempre as gerações procuram uma voz que fale mais sobre a
época, num repensar-se, reconhecer-se nos versos, seja positiva ou
negativamente. Quem será o poeta da geração X ou Y ou Z? Qual
poeta marginal será o 'representante'? Ou antes: é isto possível?
Como representar uma pluralidade de vozes?
Ainda
é cedo para englobarmos a Poética da poeta e crítica Vera Casa
Nova em gavetas, rótulos, conceitos, esquemas, etc - afinal o meio
acadêmico não se preocupa com poetas vivos, demasiadamente vivos, e
sempre espera um cinquentenário de alguém para publicar homenagens.
Mas esquece a Crítica que a poética quando tem valor em si-mesma
provoca uma presentificação, um agora do Dizer. A geração da
Utopia, na qual a Poeta se gerou, já passou, mas a sua Poesia apenas
começou a ser lida, relida, pensada, sentida e repensada.
abr/12
Leonardo
de Magalhaens
outra
resenha sobre obras de Vera Casa Nova
mais
poemas de Vera Casa Nova
…
dois
poemas de “Rastros”
PENSAMENTO
TOLO
Penso,
logo, insisto:
E
pensar nem sempre é preciso.
Ter
as cordas presas ao panóptico
Desiludir-se
de vez com o real
Dizer
que o melhor é
Dançar
um pagode
Sair
por aí
Exultando
o axé.
Quando
a madrugada chegar
Que
tempo nos restará?
O
sol cobrirá de raios os velhos caminhos
De
dor e carícias.
Teu
pé direito não conseguirá sair do lugar marcado
Agarras-te
no que tens e sabes não ter nada.
Tuas
mãos não trazem nada.
Vazias,
elas te ajudam a caminhar por entre ruínas.
Descendem-te
de monumentos seculares
E
teus brinquedos são válvulas e engrenagens.
Pereces
a cada instante nesta cidade morta.
Pensa.
…
ESCRITURAIS
Essas
cicatrizes do corpo
São
linhas bordando peles e carnes.
Escrituras
da alma
na
transpiração das lutas: deriva.
Impedida
de seguir a linha das bordas.
Sufoco
angústias e desespero.
Sou
afinal, uma salamandra, e como tal, percorro espaços de
[fio
a fio,
As
ondas não me impedem de pensar.
Concluo
não concluindo.
Na
dissolução
Me
dissolvo, na posse me despossuo.
Tua
escritura me faz respirar
Tua
escritura é meu transe.
Transitamos
um no outro
Torcemos
penas e mortes
Pincéis
e lápis.
O
testamento de nossos pais
Não
dizem a diferença: obrigação nossa de cada dia. Amém.
O
desejo da deriva,
O
rastro, os restos de palavras, botões, palmilhas, unhas de tua unha,
pestana
de tua pestana-cerca de teus olhos
Encontrados
no chão
Suprimem
o mal estar do outro dia.
in:
Rastros / 2006
Vera
Casa Nova