sexta-feira, 27 de abril de 2012

Sobre os poemas de “Outros Silêncios” - de José Geraldo Neres




Sobre os poemas de “Outros Silêncios” (2009)
do poeta José Geraldo Neres (1966-)


Poética enquanto amálgama de razão e delírio


Fazer poesia com a razão ou deixar transvazar a emoção? Criar através de técnicas de versificação ou dar livre curso à expressão? Não se trata de uma querela entre parnasianos e modernistas, ou entre formalistas e expressionistas. É uma questão que se atualiza. Por exemplo, quando falamos em técnica ou inspiração. Estamos no mesmo lugar.

Meditando sobre este dualismo inspiração – transpiração, forma racional - expressão irracional podemos chegar a contemplação do bom senso: que os opostos se amalgamam no fazer poético. Pois se temos alguma técnica, e esforço racional, este fazer (este making of) não vem do nada, há toda uma inspiração que faz desencadear o poema. Há uma faísca no cerne da escrita.

O grau de expressividade dependerá certamente, do grau de desenvoltura técnica da voz poética, do autor ou autora. Quem estiver mais preparado com as palavras, quem estiver mais consubstanciado com as palavras, quem tiver as palavras mais entranhadas em si mesmo, a ponto de gotejar na fala mais simples e cotidiana, este ou esta estará finalmente criando 'núpcias alquímicas' (assim disse Blake) entre o fazer e o dizer na configuração do expressar.

Traduzindo: não basta ter a faísca da emoção, do sentimento, do desassossego, mas é preciso também saber transmitir emoção, sentimento, desassossego. E transmitir através da riqueza poética, da versificação, das imagens, das figuras de linguagem. Todos os recursos se ajuntam, se amparam, se completam. Métrica, rimas, aliterações, sinestesias, são o que além de ferramentas? Tudo tem um lugar e um momento. Na poesia nada deve ser gratuito. Nada deve soar gratuito.

E a poesia se faz com palavras e palavras transmitem (ou que sugerem, segundo desejava o francês Mallarmé) imagens. Não apenas imagens cotidianas, vividas, que a poesia não é fotografia do 'mundo real', mas sobretudo imagens da imaginação, do sonho, do delírios, do mundo desejado. São imagens surreais, logo não requerem explicação. Pois, afinal, se explica a poesia? Quem há-de explicar? O Poema é uma forma de mistério – confunde o neófito – só é acessível ao adepto, ao devoto, ao iniciado.

Sim, consideremos, o poema não é para explicar, nem ser explicado. A força do poema reside em que não se pretende dizer algo, apenas de diz algo. Não se veicula uma mensagem através do poema, pois o poema é a mensagem em si mesma. Forma e conteúdo se mesclam, se conurbam alquimicamente, misticamente. Explicar é dissecar o mistério do poético.


Na poética do autor José Geraldo Neres, aqui em “Outros silêncios”, estamos diante de uma simbiose, digamos, entre Simbolismo e Surrealismo (para usarmos nomenclaturas da Teoria literária quanto aos Estilos de Época), sim, uma simbiose onde Mallarmé anda de mãos dados com Breton. Pois não é importante o retrato ou representação de algo, mas sua apreensão sinestésica, para uma percepção do eu lírico. Portanto não um Realismo, não objetivo (apenas o Eu subjetivo).

Como nada representam além de si mesmas, as imagens sem sentido têm um apelo ao subconsciente, ou ao 'inconsciente coletivo' (segundo Jung), ou, ainda, a um mundo alternativo – o que não é – para indagar : por que o mundo é tal como ele é? Não podemos pensar um mundo outro? Uma dimensão alternada que funciona segundo nossas pulsões? Uma 'terra-do-nunca' feita de satisfações adiadas, ou reprimidas?

No mundo do símbolo configura-se a possibilidade da satisfação – como gozar num sonho o que evitamos na realidade – com a simbolização tanto de eros (pulsão de amor) quanto de thânatos (pulsão de morte) , tanto do que nos excita quanto o que nos faz temer. No mundo dos símbolos – daí usarmos o termo 'simbolismo' - uma coisa reflete outra coisa: um signo reflete uma coisa (objeto no mundo real), mas o signo é uma coisa que diz sobre outra – ou, uma coisa parte de outra coisa.

A coisa é do mundo objetivo, é uma 'coisa-aí ', mas sua leitura é subjetiva, é um signo que faz link (ligação) com o existente (e também com o imaginado) para cada um que lê / vê, de modo que o signo para X não é o mesmo signo para Y. Chega um momento – o transe poético? - quando o mundo reflete os delírios do Eu lírico, ou os delírios reflitam as loucuras do mundo. É difícil saber onde o Eu acaba e começa o Outro?

Ou: em que grau o eu-lírico não se perde em metáforas obscuras quando tenta se explicar? Seu desabafo é constituído de símbolos cuja chave de interpretação somente ele possui, em série de paradoxos, oxímoros, contradições que mostram a pluralidade da percepção e da voz que se expressa (e Whitman escreveu: “Eu me contradigo? Pois eu contenho multidões”).


dois icebergs flutuam nos olhos do cego” (p. 31)

eterna medusa em silêncio
diluída no galope de seus olhos
o grito da chuva adormecido nos seus braços” (p. 34)


Não explicamos as imagens e seus delírios-paradoxos, assim como não explicamos as gravuras de Escher ou os quadros de Dalí, estão além da faculdade racional – e podemos perguntar em que nível somos racionais. As imagens estão aí simplesmente, a brotarem de sonhos e pesadelos, advindas do passado ou premonições do futuro. Assim se sucedem,


nosso lábios são raízes dentro da água
não há infância na linguagem dos olhos líquidos” (p. 35)

um rosário de medos segura um copo de vozes antigas” (p. 39)

São belas imagens poéticas, líricas mesmo, com metáforas que lembram Neruda ou imagens surreais de um Dalí, em múltiplos ângulos como Picasso desejava ver o mundo, ora aqui ora ali, em cima e embaixo, nas visões de fora e dentro, nas percepções de alma e corpo, onde um começa ao findar o outro, ou o sentir de uma interpenetração de ser-coisa e ser-mente-consciente-da-coisa,

o tempo é o mesmo
guarde esta imagem
distribua sonhos e punhais” (p. 122)

os segredos quebram o espelho & retiram seus olhos líquidos
desnudam a chuva para sentir a sua pele” (p. 123)

não compreendo a escritura do seu corpo
& em silêncio caminho pelo espelho” (p. 127)

existe um fantasma na porta de cada sonho. É trágico. Vivemos para
atravessar a noite.” (p. 129)

no seu sexo uma borboleta de navalhas
avança pelas paredes
sua voz aguda a engravidar edifícios” (p. 135)

aqui estou
cidade corpo faminto e cego
seus passos embriagados se hospedam em minha boca” (p. 135)


Podemos citar à exaustão o catálogo de imagens-delírios que constituem mandalas do ser, do eu-lírico, e mesmo do Autor, se dado a êxtases místicos, possessões de avatares ou orixás, numa busca do tempo mágico, numa cruzada em prol do reencantamento da palavra, do paganismo das sensações,

a melodia do deserto
bebe o líquido vermelho das palavras” (p. 44)

sua voz se inclina a procurar a palavra que habita seu corpo” (p. 123)

palavras invertidas temperam a fome” (p. 136)


Percebe-se uma tensão – que já notamos em outras vozes poéticas – entre o desejo de falar, a ousadia de dizer E a consciência da impossibilidade da comunicação, de passar a mensagem (dizia Drummond de Andrade, “a poesia é incomunicável”), daí o embate entre a vontade de expressar e o voto de calar-se, um duelo palavra X silêncio,

cuidado
o silêncio devora
-a morte anuncia o jogo -
é o seu pavor de ficar sozinha” (p. 58)

o silêncio
absoluto & liquefeito
a escorrer pelo chão” (p. 87)


versos num poema cujo título muito se adequada (“sentir a sombra do silêncio”) o silêncio continua inquebrado pela ousadia da palavra, pois o poeta não sabe se comunicou. É assim ver a 'Máquina do Mundo' (aquela de Camões e aquela de Drummond de Andrade) e, deslumbrado, esquecer que não pode descrevê-la a outro, a menos que seja considerado louco, insano, ser esquizóide.


a vida caminha em suas pernas & uma serpente pergunta
que horas são. Perdi a confiança nos relógios. Siga seu caminho.
Os ponteiros são duas crianças com cheiro de suicídio.” (p. 133)


Podemos falar num lado mágico-místico da poesia imagética? Ou num xamanismo verbal é possível ? Sacerdócio que passa pela iniciação com as palavras-verbetes-em-estado-de-dicionário (novamente lembramos Drummond) ? Uma luta cotidiana com as palavras? Um reverenciar a semântica e incensar a sintaxe? Ou antes, um culto iconoclasta que incendeia as bíblias-gramáticas do dogmatismo?

Pois há uma Estética. Esta é necessária para veicular as imagens, que não são tão espontâneas e derramadas como podem parecer. Na escrita há o tipo, a fonte, as letras sobre um papel em contraste. É neste espaço visual que o verbo se despedaça, atomiza cada palavra escorre pela página no arranjo gráfico,

no verbo
              a vida
no poema
              a carne” (p. 110)


Simples assim, tal a sabedoria na concisão – temos quase 'haicais' – que evitam prolixidades inexatas e ativam plenamente como se fossem mantras, simples e belos, não exatamente racionais,

vivemos para atravessar a noite” (p. 129)

seus passos embriagados se hospedam em minha boca” (p. 135)

o tempo é o mesmo
guarde esta imagem
distribua sonhos e punhais” p. 122

o sol em soluços
na boca um pedaço de silêncio” (p. 115)

a imagem soluça corpos
ponte nua
palavras tatuadas dentro das mulheres” (p. 111)

o girassol rói os olhos da morte” (p. 112)


Neste sacerdócio é impossível ao autor não teorizar – no poema! - sobre a relação do poeta e do poema, o ver-se no espelho, onde poeta contem poema, e o poema contem poeta e outros poemas, com o não saber onde um termina e o outro começa, “o que faço com o poeta depois de escrito o poema?” (p. 113), pensemos, depois de escrever o poeta é dispensável ?

Sim, o poeta existe NO poema? Há o poeta ALÉM do poema? O poema seria a corporização do poeta?

desaparece o homem nas sílabas de um presságio” (p. 113)

o poema em repouso não faz perguntas” (p. 114)

a poesia & suas árvores de sonhos não cicatrizam” (p. 120)


Neste labirinto onde se espelha poeta e poema, numa simbiose entre olhares, onde a voz toma consciência da própria fala, há outro elemento que podemos considerar: o diálogo com outros autores – artistas, poetas, literatos - onde textos têm passagens, corredores para outros textos, no fenômeno da intertextualidade.

Assim é com o poeta croata-francês Ivsic em “Narciso de Radovan Ivsic” (pp. 38-39), pois o poeta surrealista tematiza o Narciso – aliás título do primeiro livro, alvo de interesse do autor de “Outros Silêncios”,

narciso dentro da árvore do esquecimento
seus pés são as raízes da árvore
submerso no sonho de outro” (p. 39)


mais sobre Radovan Ivsic em



Em “Evoé laroiê Piva” (p. 122) temos um diálogo com o recém-falecido poeta Roberto Piva (1937-2010) – e um link para o guru surrealista André Breton (1869-1966). Temos a saudação Evoé” uma evocação ao deus Baco (Dionísio no panteão latino) mais a saudação “Iaroiê” ao Exu no candomblé,

brinca de ser menino
de apunhalar as praças
memória devorada por usas tripas

.. os ponteiros de dissolvem

o tempo abre a janela de Breton

o abismo se imagina poeta


mais sobre Piva, Breton, surrealismo






Um quadro invisível é Cézanne” (pp. 136-141) faz uma referência ao pintor francês Paul Cézanne (1839-1906), de estilo classificado (ah, as classificações!) como pós-impressionista, que pintava retratos de faces meditativas, ensimesmadas, ou naturezas-mortas (still life), do tipo uma caveira meio a frutas, ou caveiras enfileiradas ou empilhadas, ou paisagens meio desfocadas, ou ainda banhistas nus e seminus.

um poema desce
torna-se mais pesado que um punhal” (p. 136)

com poemas visuais - protótipos de haicais (II, III, IV, VI)

as linhas se misturam ao poema
olhos de terra úmida bebem nos lábios da infância
as portas fogem de minhas mãos” (p. 141, “VI”)


mais sobre Cézanne & obras





É um verdadeiro trabalho de pesquisa o levantamento das referências – são tantas as leituras! - do poeta José Geraldo Neres nesta obra “Outros Silêncios”, que, no momento, desperta nosso comentário dos mais sucintos. Não é pretensão nossa explicar a Obra, mas situá-la, ou contextualizá-la, numa perspectiva de leitura – mais ao subjetivo e surreal do que ao objetivo e racional, contudo sem esquecer que tanto Razão como Delírio se entrelaçam nas 'núpcias alquímicas' da Estética, da expressão poética. Podemos não ser racionais, mas a linguagem (a gramática? a sintaxe?) ainda nos obriga a parecermos racionais.


abr/12

Leonardo de Magalhaens




mais sobre a obra do poeta José Geraldo Neres:








sexta-feira, 20 de abril de 2012

sobre os poemas de 'Rastros' - de Vera Casa Nova



sobre os poemas de “Rastros” (2006)
da poeta Vera Casa Nova (RJ / BH)

Em busca do Eu-lírico indefinido


Uma das temáticas mais presente na atual produção poética – e sintomaticamente na crica literária – é a problematização do fazer poesia, do ser poeta, do encontrar-se enquanto voz lírica (quem é a voz lítica? O eu lírico? Onde está o autor?) ou enquanto sujeito que se expressa (porque decidiu não se calar).

Mas o/a poeta tem apenas uma voz? Ou ele/ela encarna uma pluralidade de vozes, de dizeres? Há uma perspectiva privilegiada no ser-poeta? São muitas as questões que são levantadas – a ponto de se escrever teses com mais indagações do que respostas. Na falta de um ponto de vista sublime, temas uma descentralização, logo os ecos das vozes marginais.

Daí que são muitas as vozes do poeta – a dele/dela, a do outro/a, a da sociedade, a do contexto histórico, etc – muitos 'eus' habitam o Eu. E desde as teorias e talking cures de Freud o Eu não é íntegro, mas tripartido (ver Id, Ego, Super-Ego), o Eu é formado pelos aprendizados no mundo social, ou seja, com o outros, seja família, escola, igreja, clubes, etc. Logo o Eu poético também é multifacetado, posto que multideterminado – circunstâncias várias o pré-formataram.

Assim o Eu-poeta é fruto das leituras de mundo, de outros poetas, de outras tradições filtradas pela sensibilidade individual na forma de texto artístico a ser enviado a outras sensibilidades que recepcionam de acordo com suas peculariedades-qualidades-precariedades. A voz lírica não é só do poeta – é de todos os poetas lidos, os que vieram antes, os atuais, os contemporâneos, ou seja, tanto a tradição quanto a geração - , assim a voz não é una, mas 'mil vozes',

Todos os poetas percutem em mil vozes dentro de mim
O poema insiste em ser inscrito no corpo” (p. 9, Epígrafe)


E nesta dissolução do Eu-lírico – incerto sobre si mesmo, imagine-se então sobre o mundo ao redor! - o desabafo oscila entre o personalismo-individualismo e o mosaico de vozes ('mil vozes') onde o que importa é a expressão verbal – ou visual – a ponto de o poema se esvaziar do eu lírico (autoral ?) e o poema falar de poema, de outros poemas, do fazer poema.

Nesta obra “Rastro”, de Vera Casa Nova, poeta, professora e crítica literária, podemos notar estas indagações sobre onde está o Eu e onde está o Outro, onde a voz autoral é uma colcha de retalhos de outras vozes (ditas) autorais. A poesia seria um modo possível de expressão? Ou um jogo de palavras despersonalizado? Ou um estilo de rearranjar-montar redes semânticas ao fazer as palavras se des-dizerem?

Haverá alguma lacuna para a expressão pessoal? Para uma confissão? Ou seja, para alguma poesia lírica?

Ainda se fazem poemas de amor?
Com que amor se faz um poema de amor?” (p. 14 , Poeminha menor)


Ou para o eu lírico em busca do amor? (nem vamos debater aqui o que seja 'amor' no contexto prosaico ou poético, ou na cultura ocidental cristã)

Minha descontinuidade é a busca incessante e frenética
De um Eros possível e imponderável.” (p. 19, Eros histérico)

Ou a sinceridade de algum desabafo comunicável ? (A contrariar o assustador: “toda poesia é incomunicável” drummondiano),

E reescrevo as notas melancólicas
De uma utopia desfeita.” (p. 21, Interrogação)

Clamo pelas palavras possíveis
As não ditas ou apenasmente
Gritadas pelo verso.” (p. 23, Jogo)


Ou antes, podemos esperar o apurado trato com as palavras? O jogo de palavras num dizer que des-diz o comum? Um lúdico sobre por de vozes sobre vozes que se banalizaram? Num reencontrar a palavra num reencantamento (se possível for)?


Experimento a delícia das palavras;
Como-as como posso.” (p. 24, A Veia)

Palavras se (me) movem
poéticas viajantes
nessa música do corpo” (p. 29, Versão)

O velho dicionário de Aurélio
Mostra as impossibilidades da palavra.” (p. 60, Esboço de Vida)

Mas jogar com as palavras é suficiente para ser poeta? O ser poeta é uma capacidade de expressar a sensibilidade? (afinal, todos têm sentimentos, mas nem todos são poetas...)

O poeta se esconde por entre os muros
Pichados da cidade.”

E o poeta se dilacera
Diante do olhar dos objetos.” (p. 26, Dias... Noites)

Daí indagarmos, pesarosamente, lirismo e pensamento: como conciliar? : poesia sentida ou pensada? Como deixar o coração verter versos sem sofrer bloqueios do cérebro, do super-ego, da gramática, do manual de redação?

Penso, logo, insisto:
E pensar nem sempre é preciso.”
(p. 36, Pensamento Tolo)


Temos o pensar sobre o poético nos próprios poemas - no fenômeno de metapoema - quando a poesia inclina-se sobre si mesma, olha-se no espelho, fala sozinha, briga consigo mesma. O fazer poético analisado, reavaliado, com muita metalinguagem: “Não sei como um poema se faz.” (p. 74) o poema parece que simplesmente brota. E não pode ser explicado, evidenciado. (A Crítica bem que se esforça...)

O poeta diz algo sobre seu poema;
Melhor não dizer nada.” (p. 74)


Mas afinal o que é poesia? O que mais dizer (pois não podemos nos silenciar...) sobre o fenômeno poético, sobre o que pensamos, ou rotulamos, na qualidade de poesia:

poesia é feita pra gente comer” (p. 40)

A poesia é uma comunidade sem fim” (p. 61)

Voltamos ao ponto, girando em círculos: pensar ou sentir? Pensar E sentir? poesia é então inspiração? Fonte inconsciente? Como queria o surrealista francês Breton... ou seria um esforço? Mais transpiração que inspiração? É um desejo de falar mesmo sendo melhor ficar calado? Ou falar justamente por cauda do medo do silêncio? Do medo do não-comunicar?

o silêncio pungente / nos arrebata, / nos persegue até a paranóia” (p. 29)

O sopro que anima as veias das palavras.” (p. 74)

Sou a impossibilidade dos versos.” (p. 87)


O que acaba acontecendo é um fenômeno bem moderno, até pós-moderno (como desejam os críticos) onde o Poeta vive em diálogo com o/s poeta/s. O poeta que fala aos outros poetas, numa teia de intertextualidades. Com o poeta, ou antes, a figura do poeta,

O poeta... o diferente das gentes
ou … … o indiferente
passeia por entre seus versos
inquietos” (p. 61, Não)

O poema é ironia da vida
E tu, poeta, morto ou vivo
Circulas deixando rastros” (p. 40, Logogrifos)

Ei, poeta! Vamos namorar um pouquinho?” (p. 44)


Dói a falta do verso: ouvir e pensar
Versos que não são meus, nem teus, são de ninguém ou de todos:
Quintana, Drummond, Waly, Haroldo: onde se encontram se não
nos versos
da memória do impensado?” (p. 38, Vertigens)

Poetas aí citados que mostram o percurso de leituras da poeta, temos no rol o mineiro Drummond de Andrade, e o homem do pantanal Manoel de Barros,

Desse tempo de poeta itabirano
Removo meus ais passados:” (p. 57)

Manoel de tanto barro
oferece seus versos partidos” p. (57)


Notamos referências ao poeta francês Rimbaud, aquele que vivia com as 'alquimias do verbo', com seu poema surreal “Bateau Ivre” , Barco Bêbado, no “turbilhão de vertigens pós-tudo” ('pós-tudo', pós-estruturalismo, pós-concretismo, basta ver Baudrillard e a questão dos 'simulacros' em nossa 'pós-modernidade'),

Percorro a água revolta no barco de Rimbaud” (p. 43, Retorno Rimbaud)

referência também a Jorge Luís Borges, o contista argentino, com seu infindo “O Livro de Areia”,

Escrevo nesse livro de areia.
Borgeanamente ofereço versos
A quem passa na esquina da vida.” p. 53


Interessante diálogo com Bandeira e Drummond: sobre a Indesejada da Gentes, traduzindo: A/O Morte. O eu-lírico aqui está numa posição de contraponto, não exatamente preparada quanto o poeta de Pasárgada,

Quando a indesejada das gentes chegar
não estarei com a casa limpa nem com a mesa posta” (p. 91, Indesejada)

em comparação temos aqui o poema de Manuel Bandeira (“Consoada”)

Quando a indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.”

E outros poetas para o rol de influências: em “Espelho” (p. 92) temos referências a Álvares (de Azevedo), Olavo (Bilac), Castro (Alves), Alphonsus (de Guimaraens), Murilo (Mendes), Drummond (de Andrade), Waly (Salomão), num recorte que vem desde os poetas românticos do século 19, passando pelos parnasianos e simbolistas na transição para o século 20, pelos modernistas e chegando até os poetas da dita 'geração marginal', nos anos de 1960 a 1980.

Não apenas estes, encontramos outros nomes no rol de leituras que nos possibilita rastrear a 'angústia de influência' (please, ver a teoria do scholar Harold Bloom) da autora, Fernando Pessoa; Joan Brossa, o poeta catalão : poesia para se ver (na p. 68), o francês Francis Ponge,

sou o tudo e o nada pessoano” (p. 65)

desespero em ler seus versos tão simples.” (p. 69)

além de um recado desaforado para o poeta Boris Vian, que despreza os 'bestas' poetas e não poupa as mulheres, o que a poeta não deixa por menos, em seu desabafo: “mando você à merda” (p. 84)

poemas de Joan Brossa, Francis Ponge e Boris Vian em





Além do diálogo com outros poetas (ou outros Eus) temos tentativas confessionais, escuta do outro, um colocar-se no lugar do outro, uma voz de exortação. Mas podemos dizer Poemas pessoais-confessionais? Sim, temos. “As Formigas”, “Saudades de Carnaval”, “Poema para Cla”, e não seria confessional? : “Perdi-me entre paixões vadias e românticas” (p. 92)

Mas não sobre si mesmo o eu-lírico se expressa, afinal o Outro está mais dentro do que fora, com identidades que se mesclam, se fundem, basta comparar com já citado Rimbaud (“Eu é um Outro”, “Je est un autre”)

O que dizer de mim se sou o outro de mim?” (p. 71)

Daí o jeito é escutar o outro: “onde possa escutar os versos que estão fora de mim.” (p. 71) ou tentar tornar-se o outro: “Tornar-me criança, animal, negro, bicha. / Todas as minorias / maiorias do mundo / Isso para não aniquilar as esperanças” (p. 72) ao identificar-se com os 'humilhados e ofendidos', os que vivem nas margens.

Tanto que o outro está presente no pronome 'nós', quando o Eu engloba o Outro, inclui outras vontades, outras vozes, e deixa de olhar o próprio umbigo, num poema de exortação: exatamente, o eu exorta o outro, até dá conselho, anima!

Misturem-se nas cores do universo
E não se esqueçam de nada:
A memória é nossa força,
Ela nos inventa a cada dia.” (p. 75)


É nestes momentos que a poeta consegue fugir aos simulacros de metalinguagem, ou intertextualidades, e finalmente diz mais do que sobre poesia e poetas. Ela tem realmente algo a dizer – não que espere realmente comunicar. Temas universais aparecem – acima a exortação, a voz coletiva – que encontramos tanto em Whitman e Neruda, p.ex. - e na filosofia, o tema do viver o hoje e não se preocupar com o amanhã – 'carpe diem' – aproveite o dia ,

Hoje, não consigo pensar no amanhã” (p. 77, 'Amanhã')

não pensar no amanhã – mas viver o hoje – eis um tema dos poetas do Barroco, e também do Arcadismo e do Romantismo – a vida enquanto fenômeno efêmero - mas o inquietar persiste: “Qual o saber no amanhã revelará meu dia?” (p. 77)

Quando a voz poética dá livre curso ao voos – rumo a outras imagens / paisagens: “O céu sempre cinzento de Paris manchava-se de pontos negros... / Tentava-se ouvir o inaudível do grito.” (p. 73) quando lembramos do grito do quadro de Edvard Munch, “Mas em mim / Os silêncios podem ser ouvidos.” (p. 73)

A voz então se torna audível quando comunica uma expressão de época – pois é coletiva – uma visão de mundo, um testemunho pessoal – além de olhar a própria poética, ou dialogar com poéticas ao redor ou no passado. A autora, a poeta, a professora, a crítica literária, ou seja, as várias atividades-identidades se entrelaçam, forma uma pessoa que saber-se várias ao mesmo tempo.

É quando a voz se personaliza, ela tem um lugar no tempo, tem sua geração. Uma geração da Utopia , ou antes as utopias de cada geração, seja nacionalismo, libertação, revolução, consumo, não importa, sempre as gerações procuram uma voz que fale mais sobre a época, num repensar-se, reconhecer-se nos versos, seja positiva ou negativamente. Quem será o poeta da geração X ou Y ou Z? Qual poeta marginal será o 'representante'? Ou antes: é isto possível? Como representar uma pluralidade de vozes?

Ainda é cedo para englobarmos a Poética da poeta e crítica Vera Casa Nova em gavetas, rótulos, conceitos, esquemas, etc - afinal o meio acadêmico não se preocupa com poetas vivos, demasiadamente vivos, e sempre espera um cinquentenário de alguém para publicar homenagens. Mas esquece a Crítica que a poética quando tem valor em si-mesma provoca uma presentificação, um agora do Dizer. A geração da Utopia, na qual a Poeta se gerou, já passou, mas a sua Poesia apenas começou a ser lida, relida, pensada, sentida e repensada.

abr/12


Leonardo de Magalhaens




outra resenha sobre obras de Vera Casa Nova


mais poemas de Vera Casa Nova



dois poemas de “Rastros”


PENSAMENTO TOLO


Penso, logo, insisto:
E pensar nem sempre é preciso.

Ter as cordas presas ao panóptico
Desiludir-se de vez com o real
Dizer que o melhor é
Dançar um pagode
Sair por aí
Exultando o axé.
Quando a madrugada chegar
Que tempo nos restará?

O sol cobrirá de raios os velhos caminhos
De dor e carícias.
Teu pé direito não conseguirá sair do lugar marcado
Agarras-te no que tens e sabes não ter nada.

Tuas mãos não trazem nada.
Vazias, elas te ajudam a caminhar por entre ruínas.
Descendem-te de monumentos seculares
E teus brinquedos são válvulas e engrenagens.

Pereces a cada instante nesta cidade morta.
Pensa.




ESCRITURAIS


Essas cicatrizes do corpo
São linhas bordando peles e carnes.
Escrituras da alma
na transpiração das lutas: deriva.
Impedida de seguir a linha das bordas.
Sufoco angústias e desespero.
Sou afinal, uma salamandra, e como tal, percorro espaços de
[fio a fio,
As ondas não me impedem de pensar.
Concluo não concluindo.
Na dissolução
Me dissolvo, na posse me despossuo.
Tua escritura me faz respirar
Tua escritura é meu transe.
Transitamos um no outro
Torcemos penas e mortes
Pincéis e lápis.
O testamento de nossos pais
Não dizem a diferença: obrigação nossa de cada dia. Amém.
O desejo da deriva,
O rastro, os restos de palavras, botões, palmilhas, unhas de tua unha,
pestana de tua pestana-cerca de teus olhos
Encontrados no chão
Suprimem o mal estar do outro dia.



in: Rastros / 2006


Vera Casa Nova

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Ecologia Ecoando na Mídia




Ecologia Ecoando na Mídia


para Rodrigo Starling



Rio +20 está na mídia

Hoje que pouco resta

de mata e futuro

Está em todos os jornais

Está em mil matérias pagas

revistas feitas de papel reciclado

empresas eco-corretas pagam bem

árvores trituradas para papel

para eco-comunicados globais

Os heróis do Greepeace avisam

o planeta não aguenta

e o aviso não para

o aviso está no nível dos mares

no derreter das geleiras

nos ciclones e tsunamis

o planeta está convulso

está em fúria

mas há um sentimento

e alguns nele acreditam

a salvação que esperam

a salvação que os governos adiam

a salvação que o empresariado ignora

e enquanto o aviso é para todos

o céu desaba sobre todos

o mar invade a praia de todos

e o aviso ecoa no silêncio

todas as florestas

convertidas em papel ou cinzas

todas as águas

envenenadas com lucros e superávits

O aviso ecoando

'salvem o planeta'

a mídia anunciando

'Rio +20 vem aí'

A quanto tempo ouvimos isto?

Ao longo de tanto e tanto tempo

-pelo menos uns 20 anos-

e nada acontece além de

congressos mesas-redondas fóruns

tratados formalidades debates

poses fotográficas assinaturas

e quem separa o lixo?

e quem recicla?

e quem dispensa o carro?

O planeta não pode esperar

tanta jogada de marketing

em todos os rios

todos os mares

todos os ares

vemos apenas um aviso

'salvem o planeta'

midiático

e sabemos que morreremos

quando o planeta morre

este é o preço

políticas públicas & protecionismo

reformas agrárias adiadas

leis feudais no campo

códigos florestais negociados

entre madeireiras e lobbistas

entre latifundiários e ruralista

entre políticos corruptos

entre sanguessugas de verbas públicas

onde é assim: mata = money

bela equação !

E o aviso ecoa no ar de fuligens

na fumaça de mil fábricas

nos esgotos das cidades

despejados em rios e lagoas

o aviso ecoa em gritos

sobre as ruínas da vida

sobre a extinção das espécies

sobre as matas em chamas

onde a terra é torturada

diariamente

com lágrimas e arrepios

parece um pássaro acuado

uma criança histérica

chorando num quarto fétido

faminta implorando migalhas

e uma grande conferência

é agendada

sob holofotes

para inglês ver

para ecologista posar de herói

para empresário posar de salvador

e o ódio se alastra

e o roubo a corrupção impera

o egoísmo acima de tudo

e as crianças histéricas

estressadas imploram por ar puro

nas teias das grandes cidades

onde habita o grito de desespero

há uma grande agonia

há um show de loucura

esmagando o bom senso

basta ver a selva urbana

basta apreciar a luta no campo

ou vislumbrar o poente de fuligens

ou a maré de radioatividade

onde pessoas enlouquecem

atrás de mesas de balcões de monitores

em busca de cargos de lucros de poderes

de mercadorias de renomes

os loucos do sucesso

os insensatos do progresso

os fanáticos da fama

todos nas cidades inchadas

acotovelando o vizinho

tumultuando o trânsito

despejando o lixo

morrendo em becos de favelas

matando em ruas escuras

numa cidade de simulacros

num rio de miragens

numa praia de anúncios-néon

correm atrás da morte lenta

enquanto o aviso ecoa

'salvem o planeta'

enquanto as crianças choram

'queremos pão e ar puro'

nós ouvimos o anúncio

as sereias da mídia

'Rio +20 vem aí'

nós vemos os flashes

e as poses e os sorrisos

e as canetas nos protocolos

e as cifras nos monitores

e o choro silenciado

'não há tempo'

ecoa

'não há mais tempo'



desabafado por LdeM

em 1º e 06 abr 12


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