Sobre a Poética de Roberto Piva
Roberto Piva (São Paulo, 1937-2010)
As vanguardas e as anti-vanguardas
Todo movimento artístico – pelo menos visivelmente desde o Romantismo – vem de uma contestação de um movimento artístico anterior que teria se desviado dos parâmetros estéticos e se 'ossificado' em establishments culturais e propagandísticos, se mantendo por inércia sem a vivacidade e o poder de mudança das primeiras 'florações'. Então o novo vem renovar o mundo das Artes. É a Vanguarda.
Assim os Românticos ocuparam o lugar dos Classicistas. Depois os Românticos foram questionados de um lado pelos Realistas, e por outro, pelos Neo-classicistas, ou Parnasianos, estes foram re-avaliados por Simbolistas e Surrealistas. Depois todos foram questionados pelos Futuristas e Modernistas no século 20, principalmente na primeira metade, na época das Grandes Guerras (1914-18 e 1939-45).
No Brasil, as gerações de modernistas se sucederam até os anos 50 e 60, quando novos movimentos imaginaram superar o Modernismo (alguns até dizem em 'pós-modernismo'), com influências de outras vozes ora mais surrealistas ora mais tradicionalistas (ou mais 'folk'), mas todas 'de superação', até dispostas a queimarem bibliotecas de 'vozes obsoletas' (O tom incendiário de Marinetti que parece ter agradado tanto aos nazistas... )
Assim os Concretistas reavaliavam os usos das discursividades, a disposição das palavras na página (vide as experimentações de Mallarmé e de Apollinaire), com uma ênfase no visual em simultaneidade com o sonoro. Os irmãos Campos, Haroldo e Augusto, e Décio Pignatari, poetas e tradutores paulistas, vieram para estruturar uma vanguarda – muitos críticos afirmam ser a última vanguarda – onde a palavra questiona a palavra, num foco mais metalinguístico (uma ampliação das intenções dos modernistas, tais como Oswald de Andrade), e do visual (dos pintores cubistas e dos cartazes soviéticos). O trabalho com a palavra justificava inclusive o processo de 'transcriação', numa tradução que seria uma re-criação da obra traduzida.
Depois dos Concretistas, e em oposição discursiva a estes, temos os poetas da Poesia Processo que apontam com ênfase no visual além das palavras em si, de modo a criarem poemas-design, poemas-objetos, poemas que sejam tocáveis, cheiráveis, maleáveis. Não a palavra, mas a 'sugestão' da palavra. A palavra-coisa que pode ser montada e desmontada. Assim os poetas da poesia-processo se posicionam tanto contra a discursividade acadêmica – a ponto de rasgar obras de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto – quanto contra as experimentações 'oro-auricular-viso-motora' dos concretistas paulistas.
Mas aqueles que negavam todos os academicismo e hermetismos metalinguísticos eram os poetas marginais. Estes, sem cátedra nem jornal nem revista mensal nem academia de letras, adentravam as avenidas e vielas das cidades e apresentavam uma poesia que era leitura (até de clássicos!) mas que negava isso, ocultava qualquer intertextualidade – enquanto os acadêmicos adoram citar e erguer epígrafes de autores canônicos. Os bardos marginais propunham um poema com fala coloquial, cotidiana, sem verbetes de dicionário e rimas preciosistas. Nada de sonetos (que os modernistas até praticavam!), nada de poemas épicos ou narrativos, mas poemas-flashs, instantâneos tirados da realidade, notáveis em síntese e ironia (nada de prolixidade e verborragias).
Num aspecto tanto poetas da Poesia Processo quanto os marginais concordavam: o fim da eternidade do poema. Este devia ser efêmero, devia ser descartável – devia agir aqui e agora, e depois ser entregue ao nada. Logo não haveria museus e bibliotecas com autores marginais, por exemplo. Os poemas criados meio ao suor e ao asfalto da realidade deviam ser lidos e vivenciados ali mesmo pelos leitores suados e acuados pelo trânsito. Assim haveria mais náusea do que flor – se lembramos a metáfora de Drummond em “A Flor e A Náusea”.
Enquanto os poetas marginais queriam os poemas-sínteses, os poema-flashs a testemunharem um momento da vida caótica cotidiana, em contraponto a discursividade prolixa dos poetas eruditos, acadêmicos ou não; enquanto os poetas da Poesia-Processo exigiam a abolição da própria discursividade com a feitura de poemas-coisas, poemas-design, quase poema-peça-publicitária, quase ícone, ideograma, hieróglifo do mundo sem-palavras, enquanto isso na poética de Piva transborda a discursividade.
A Poética de Piva não tem apenas discursividade, tem um turbilhão expressionista, uma imagética surrealista, com metáforas exageradas, chocantes, criadas tal uma 'psicografia', um testemunho de 'epifanias', ao 'correr da pena', numa fluência prolixa de 'escrita automática' tal um surrealista André Breton que espera 'fugir da lógica', tal um beatnik Kerouac que não quer parar para trocar o papel da máquina, a escrever sem pausas, sem perder o fôlego com neuras gramaticais ou regras argumentativas.
É a busca de uma irracionalismo ao
'desregrar todos os sentidos' igual a um Rimbaud num 'barco bêbado' de versos, numa fluência livre, as verdadeiras 'palavras em liberdade' como proclamava um neurótico da velocidade Marinetti, sem qualquer contenção racional como labutaria um engenheiro-poeta João Cabral de Melo Neto, ou a palavra-lavra na práxis de um Mário Chamie. Há todo um sensacionismo de um Álvaro de Campos (o heterônimo futurista Fernando Pessoa) numa verborragia de sentimentos disconexos e simultâneos por fluência do poeta Rilke em suas longas elegias, ou os poetas expressionistas com suas descrições cinematográficas de paisagens.
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Crítica que relaciona Rimbaud e Piva
http://www.revistazunai.com/ensaios/anderson_fonseca_roberto_piva.htm
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Autor e Obra
Vejamos antes um fenômeno: o
Biograflismo. Conceituemos. Biografismo: a preocupação com a vida, com o
curriculum vitae de um autor, a ponto de julgar uma Obra com base numa dada biografia autoral, julgar a poesia de um Poeta pela personalidade deste que escreveu. Não se trata da análise literária do texto, mas do julgamento sobre o/a Poeta. Por exemplo: o leitor, ou o poeta, Y não gosta pessoalmente do poeta X, seja por questões pessoais ou de afinidade, por estética ou ideologia, ou crença religiosa, então simplesmente despreza a poesia de X. Assim, Y acaba por julgar não a poética de X, mas a personalidade de X, o Autor X.
É preciso separar Autor de Obra. Não se deixar criar pré-conceitos sobre a Obra ao termos pré-conceitos quanto ao Autor. Um exemplo. As obras de Nietzsche são geniais - “Genealogia da Moral”, “Gaia Ciência”, “Assim disse Zarathustra” - mas quem foi Friedrich Nietzsche a pessoa? Um homem doente, fracassado na vida acadêmica e afetiva, um peregrino, um insucesso enquanto pessoa, um ressentido, que criou uma obra porque justamente não conseguiu viver plenamente ( ou comodamente, diriam os burgueses). Se digo tudo isso sobre Nietzsche, cuja obra ocupa lugar de destaque na minha estante.
Podemos ler as obras de Heidegger, de Céline, de Knut Hamsun sem que tenhamos que ser simpatizantes do regime nazista, assim como podemos apreciar as obras de Maiakovski e de Bertolt Brecht sem sermos adeptos do comunismo. Podemos nos dedicar as leituras de obras de Sartre e Camus, sem ser seguidores do Existencialismo. As opções políticas e existenciais do Autor não estão acima da obra, não qualificam a obra, nem a recepção. Pois autores não comunistas, não nazistas, não existencialistas, podem ler e identificar-se, podem meditar sobre as próprias escolhas diante da vida. Em suma, a obra é útil ao Leitor, não ao Autor. (Com exceção dos Autores que recebem pomposos direitos autorais...)
Quais as causas do Biografismo na Arte, principalmente na Poesia? Os poetas raramente estão lendo poemas uns dos outros. Os poetas se comungam por amizades e elogios mútuos. O poetas não pensam coletivamente, muito menos em vanguardas, é cada um no seu grupinho. Se um poeta se simpatiza com um outro, ele passa a elogiar a poesia – não pela poesia, mas por que o outro é amigo. Confunde poeta e poesia, e se não gosta do poeta vai odiar igualmente a poesia. Não há uma separação. Posso não gostar de certo poeta enquanto pessoa, mas posso perfeitamente admirar a obra poética dele.
Meditando sobre a crítica já escrita sobre as obras de Roberto Piva temos um exemplo de ênfase na biografia. Críticos mais preocupados com as atitudes iconoclastas, irreverentes e homoafetivas do Poeta do que exatamente se debruçar sobre a Obra, ler os poemas a ponto de perceber os diálogos com outros poemas – e poetas. A preocupação com a vida pessoal do Poeta cria um preconceito quanto a Obra – alguns dizem: não vou ler poesia gay – como se um dado biográfico do Autor servisse para qualificar a Obra. A Escrita quando realmente é válida não se destina a um determinado público, não é segmentação. Somente as obras limitadas, irrelevantes são criadas para um determinado público, um grupo de consumidores de cultura.
Obviamente que alguns dados biográficos podem certamente ajudar no entendimento de alguns aspectos da Obra, mas não podem determinar um julgamento sobre a mesma. É preciso dissociar o julgamento sobre o Autor da leitura da Obra. Não apreciar o Autor não significa desprezar a Obra, pois aqui a criatura pode ser bem melhor que o criador.
Classificar a poética de Piva?
Temos autores sem classificação ou classificações parciais. Afinal temos estilos pessoais dentro de – ou em paralelo com - estilos de época. Em alguns momentos há uma consonância, mas pode haver uma dissonância. Autores que destoaram da época em que viveram. Whitman é romântico? Machado de Assis é mesmo realista? Sousândrade é o quê? Fernando Pessoa é catalogado segundo seus vários 'heterônimos', um seria classicista, um outro seria romântico, e outro futurista, um outro surrealista, e assim por diante. Guimarães Rosa é regionalista de fato? Manoel de Barros é o quê? Surrealista? Temos as figuras ambíguas de autores entre o surrealismo e o expressionismo, tais como Oscar Wilde, Georg Trakl, Jean Genet, Paolo Pasolini, Antonin Artaud, Charles Bukowski. Como classificá-los? São mesmo classificáveis? Que 'vanguardas' seguem? Quais as vanguardas reivindicam suas obras?
Para o colega de geração, o crítico Claudio Willer (SP, 1940-), a poética de Piva integra uma 'geração Beatnik' tupiniquim, inserida no cenário urbano de São Paulo. Aliás, Piva seria um Baudelaire de São Paulo, um flâneur solto pelas ruas da metrópole sul-americana.
Ainda que o próprio Piva negue esta condição de urbanóide, “sou um poeta na cidade, não um poeta da cidade”, pois ele vive ainda na cidade é porque ainda não conseguiu recursos financeiros para comprar um sítio na área rural. O poeta queria era fugir da metrópole – e se tecia cânticos a 'pauliceia' era mais por se considerar um amargo prisioneiro da cidade grande, não um empolgado, um convertido ao proclamado progresso da megalópole.
Para a crítica literária Heloísa Buarque de Hollanda (SP, 1939-), autora de “26 Poetas Hoje” (1975), onde aborda as obras dos ditos 'poetas marginais', ou da 'geração mimeógrafo', com ênfase nos autores jovens do Rio de Janeiro, nas décadas de 60 e 70, o poeta Roberto Piva é um autor da 'marginália' paulista (ainda que a autora não cite os outros da 'geração beatnik' de São Paulo), um exemplo da voz marginal que não tem presença nas mídias, é como se não existisse. Se o poeta não se organizar para publicar e divulgar jamais seria lido – as editoras não tinham qualquer interesse em 'vozes desviantes', em dissonâncias, logo rotuladas de 'subversão'.
Contudo, para outros críticos, Piva não seria nem marginal, nem beatnik, mas um 'marginal' da marginália, uma espécie de 'exceção à regra' ambulante, que congrega tudo e desagrada a todos. Nem direita nem esquerda, nem conservador nem revolucionário, desconsiderado pelos 'marginais' e rejeitado pelos 'beatniks' brasileiros (com exceção dos amigos de geração). O poeta Piva seria no Brasil uma espécie de Charles Bukowski, que muitos não consideram beatniks – e nem os próprios Beats. Bukowski que causa mal-estar em qualquer 'vanguarda' onde seja inserido – engavetado. Solução aqui é não classificar.
Mas podemos definir algumas semelhanças e algumas diferenças da poética de Piva em relação aos poetas marginais. Nas semelhanças podemos destacar a atitude de 'ver a margem', de não ser aceito, nem cooptado pela mídia, a proclamar uma voz marginal, por exemplo, da presença homoafetiva na sociedade conservadora. A poesia que se serve do coloquial, das cenas do cotidianos, dos cenários urbanos e dos labirintos das metrópoles.
Nas diferenças destacamos a farta intertextualidade, os diálogos explícitos com outros autores – sejam canônicos ou não – enquanto os marginais desprezam a erudição, não revelam as leituras, não posam dentro de uma biblioteca, ou cercados de livros, mas bêbados nos botecos mais sórdidos.
Enquanto os marginais restringiam a discursividade ao poema curto, ao poema-flash, ao poema-coisa, na síntese do momento, dizendo o máximo com o mínimo de texto, enquanto os poetas do Poema-Processo aboliam a discursividade em prol de um poema-objeto, não condicionado e dependente de significante-significado, tornando tudo em arquétipos e ideogramas.
Em certa perspectiva, ao ser renegado por uns e outros, o poeta Piva mostra-se mais marginal do que os marginais, assim como o marginal-
Beatnik Bukowski que é rejeitado pelos acadêmicos e pelos próprios Beats. Bukowski, por exemplo, compartilha o universo dos
Beats – vida noturna, libertinagem, bebedeiras, viagens, crises existenciais, etc – mas nunca foi um 'filiado', nunca buscou a 'superação' ou a 'beatitude' que animavam Kerouac e Snyder, por exemplo. Os
beatniks deviam superar a si-mesmos rumo a uma vida de liberdade, onde as 'portas da percepção' se abririam longe de toda conformidade e disciplina com as quais a sociedade de consumo condiciona os cidadãos do 'mundo livre'.
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sobre a antologia “26 Poetas Hoje”
http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/?tag=26-poetas-hoje
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/outros_titulos/26_poetas_hoje
http://portalliteral.terra.com.br/blogs/26-poetas-hoje-digital
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Influências / intertextualidades na poética de Roberto Piva
Os poetas malditos (poètes maudits) franceses do século 19, a saber, Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, Lautreámont, Corbière. Os poetas malditos do século 20, dentre eles, os poetas Garcia Lorca, Jean Genet, Antonin Artaud, e o cineasta Pier Paolo Pasolini.
Também os Beatniks se insinuam nos textos polifônicos de Piva, com destaque para Kerouac, Ginsberg, Burroughs, Gregory Corso, Gary Snyder, todos estes leitores do poeta-guru Walt Whitman. Outro guru da geração beatnik é Henry David Thoreau (1817-1862), pensador anarquista individualista, autor de “Desobediência Civil”, 1849, e “Walden”, 1854.
Outra influência perceptível é a do heterônimo Álvaro de Campos, persona-lírica, exaltada e prolixa, entre futurista e surrealista, do português Fernando Pessoa, outro leitor entusiasta de Whitman, como percebemos em “Saudação a Walt Whitman” .
As influências brasileiras são os textos dos modernistas Mário de Andrade (autor de “Paulicéia Desvairada”, 1922 ), Jorge de Lima, da primeira fase, antes de “Tempo e Eternidade” (1935) e o Murilo Mendes da fase surrealista (obras “Poemas”, 1929; “Visionário”, 1933)
Os poetas 'beatniks' de São Paulo se assumiam 'antropófagos' - tais como os modernistas Oswald e Mário de Andrade – ao digerirem as poéticas dos autores norte-americanos, assim como os Andrades sugavam as poéticas dos simbolistas, dos surrealistas e dos futuristas franceses. Até porque eis uma vantagem de ser 'colonizado': poder digerir os colonizadores! Nós enquanto colonizados temos acesso às culturas europeia e norte-americana, enquanto os europeus e norte-americanos pouco sabem sobre a nossa cultura.
Por exemplo, o poeta Piva dialoga com Lima em "Paranóia" (poema “Jorge de Lima, panfletário do Caos”)
Foi no dia 31 de dezembro de 1961 que te compreendi Jorge de Lima
enquanto eu caminhava pelas praças agitadas pela melancolia presente
na minha memória devorada pelo azul
eu soube decifrar os teus jogos noturnos
indisfarçável entre as flores
uníssonos em tua cabeça de prata e plantas ampliadas
como teus olhos crescem na paisagem Jorge de Lima e como tua boca
palpita nos bulevares oxidados pela névoa
uma constelação de cinza esboroa-se na contemplação inconsútil
de tua túnicae um milhão de vagalumes trazendo estranhas tatuagens no ventres
e despedaçam contra os ninhos da Eternidade
é neste momento de fermento e agonia que te invoco grande alucinado
querido e estranho professor do Caos sabendo que teu nome deve
estar como uma talismã nos lábios de todos os meninos.
Podemos comparar “Paranóia” (1963) com “Pauliceia Desvairada” (1922) de Mário de Andrade. Pauliceia Desvairada cita e recita cenas e topônimos de São Paulo numa viagem urbana meio delirante meio debochada, com exageradas metáforas e referências ao mundo da moda e do industrialismo, quando as imagens retiradas de líricas românticas soam anacrônicas, sem contexto, como lírios pálidos expostos às fuligens.
São Paulo! comoção da minha vida...
Os meus amores são flores feitas de original...
Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e Ouro...
Luz e bruma... Forno e inverno morno...
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...
Perfumes de Paria... Arys!
Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!
São Paulo! comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América!
No texto de Paranoia, os cenários se correspondem – quatro décadas depois – mas transfiguradas por mais exagero, desespero, alucinação, amargura, deboche e obscenidade. Não há espaço para o lírico que não seja agressão (tanto contra a semântica quanto a moral),
Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci
onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo seus olhos com
lágrimas invulneráveis
onde crianças católicas oferecem limões para pequenos paquidermes
que saem escondidos das tocas
onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados
estéreis e incendeiam internatos
onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam
a descarga sobre o mundo
onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha
no seu hálito
onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua
última janela
onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte
branco
onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela fotografia de peixe
escurecendo a página
onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorróidas das
beatas
onde os mortos se fixam na noite e uivam por um punhado de fracas
penas
onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da
imaginação
O Poeta dialoga com seus autores prediletos em exemplos das múltiplas referências / intertextualidades. Notamos num poema como “Meteoro” uma voz lírica que se dirige a outras vozes líricas, a outras almas expressionistas, outros seres atribulados, marginais ou não, canônicos ou não, mas todos afetados pelo mesma inquietude diante da existência, sejam filósofos, poetas, pintores, outros artistas belos e malditos,
no alto da Lapa os mosquitos me sufocam
que me importa saber se as mulheres são
férteis se Deus caiu no mar se
Kierkegaard pede socorro numa montanha
da Dinamarca?
…
eu urrava meio louco meio estarrado meio fendido
narcóticos santos ó gato azul da minha mente
Oh Antonin Artaud
Oh Garcia Lorca
com seus olhos de aborto reduzidosa retratos
A poesia com surrealismo embriagado e misantropo de um Lautréamont (Les Chants de Maldoror) ou com a morbidez de um Augusto dos Anjos (ver os quatro poemas 'contidos' “Quatro Poemas Pivianos”), onde as imagens tétricas misantropas do poète maudit se mesclam com as imagens de finitude do ser consciente nos versos sepulcrais do vate brasileiro (o 'poeta necropolitano'?),
Eu era um pouco da tua voz violenta, Maldoror,
quando os cílios do anjo verde enrugavam as
chaminés da rua onde eu caminhava
E via tuas meninas destruídas como rãs por uma
centena de pássaros fortemente de passagem
Ninguém chorava no teu reino, Maldoror, onde o
infinito pousava na palma da minha mão vazia
E meninos prodígios eram seviciados pela Alma
ausente do Criador
(em “Poema Submerso”)
Dêem-me um anestésico. A vida dói e arde.
Não sei controlar meus impulsos demoníacos.
Não acredito em forças de outro mundo.
Sou eu, meus versos e o perigo das frações.
Arranco minhas vísceras poéticas do ostracismo.
Trezentos dias e cinqüenta noites marianas.
O caracol de meus cabelos caídos no chão de espelhos.
O sangue e os olhos transformados em areia cinza.
(em “Quatro Poemas Pivianos”, IV)
O poeta em contínuo diálogo com Freud, Rimbaud e Nietzsche, autores/pensadores referenciais, lidos e relidos nos contextos da dita ‘contracultura’.
Eu aprendi com Rimbaud
& Nietszche os meus
toques de Inferno
(Anjos de Freud,
sustentai-me!)
& afirmando isto
através dos quartos sem tetos
& amores azuis
eu corro até a colher de espuma fervente
driblando-me no cemitério
faminto da última FOME
com tumbas & amantes cheios de pétalas
porque o céu foi nossa última chance
esta noite".
O poeta beatnik Ginsberg escreve um poema para Whitman (“Supermarket in California”) enquanto Piva escreve um poema influenciado a um outro poeta, Mário de Andrade (“No Parque Ibirapuera”), mostrando que uma verdadeira teia, uma rede de citações e referências se entretece entre os vários autores-leitores, afinal Piva é um Poeta leitor por excelência.
A “Ode a Fernando Pessoa” lembra a “Ode a Walt Whitman” escrita pelo próprio Fernando Pessoa-Álvaro de Campos para o bardo norte-americano. O que 'une' os quatro poetas – além da intertextualidade? - a homoafetividade. A aceitação da própria sexualidade leva a uma contestação da ordem conservadora, hipócrita e moralista, que se proclama em nome da liberdade, mas reprime os prazeres da livre sexualidade situação mais perceptível antes da ‘revolução sexual’ dos anos 60 e 70).
É impossível que não haja nenhum poema teu
escondido e adormecido no fundo deste parque
Olho para os adolescentes que enchem o gramado
de bicicletas e risos
Eu te imagino perguntando a eles:
onde fica o pavilhão da Bahia?
qual é o preço do amendoim?
é você meu girassol?
A noite é interminável e os barcos de aluguel
fundem-se no olhar tranquilo dos peixes
Agora, Mário, enquanto os anjos adormecem devo
seguir contigo de mãos dadas noite adiante
Não só o desespero estrangula nossa impaciência
Também nossos passos embebem as noite de calafrios
Não pares nunca meu querido capitão-loucura
Quero que a Paulicéia voe por cima das árvores
suspensa em teu ritmo.
Surrealismo e Xamanismo
O surrealismo – notável em Rimbaud, Lautreámont e no primeiro Murilo – é levado ao tom mais místico, aos orientalismos de um Hermann Hesse (o autor de Der Steppenwolf, “O Lobo da Estepe”, em 1927), um Gary Snyder – aliás, toda uma geração se interessou por misticismo nesta época – anos 40 aos 70 – com o movimento hippie, a New Age, etc – mas aqui um orientalismo não de apenas contracultura - anti-Iluminismo, anti-racionalismo, contra a 'Razão Instrumental' denunciada por Adorno e Horkheimer – mas um orientalismo de 'reencontro do ser humano com o animal em si-mesmo', uma volta ao xamanismo.
Xamanismo enquanto cura de si mesmo pela meditação, pela harmonia com a vida natural, numa vivência mística de nativo indígena, de ser integrado com os mistérios da natureza, pois os povos tradicionais – segundo percebemos na carta do Chefe Seattle ao presidente norte-americano - sempre viveram inseridos no meio ambiente, não contra o ambiente.
Ou seja, o poeta sentindo-se oprimido pela selva urbana – a metrópole de São Paulo – passa a idealizar o mundo natural – como faziam os românticos, vítimas das primeiras revoluções industrias e do crescimento das cidades. Assim Piva re-encena a atitude de um Wordsworth, um Coleridge, um Keats, um Shelley, um Musset, um Gonçalves Dias, quando buscam um refúgio junto a natureza.
É todo um pensamento ecológico em gestão tal como percebemos na obra de Gary Snyder, que, sendo um 'globetrotter', viveu com povos tradicionais no norte dos EUA, com monges japoneses, com místicos japoneses, a cumprir uma jornada de aprendizado e superação (ou purificação, como dizem os religiosos). Uma animalidade positiva seria o modo de relacionar-se com o mundo natural – a livre interrelação homem-natureza, onde a interseção, o elo seria justamente o animal, quando lembramos que somos 'animais civilizados', ou melhor, domesticados.
A busca de uma religiosidade, não uma religião, é uma contaste nos poetas ante-iluministas, ou pré-racionalistas, não exatamente anti-iluministas. Afinal, o xamanismo existe muito antes da 'civilização ocidental', do racionalismo cartesiano, da 'razão instrumental'. O surrealismo não é anti-religioso, pode flertar com o religioso, pois ambas as esferas são do emocionalismo, da livre fruição dos sentidos, na busca da abertura das 'portas da percepção'.
O desejo de livre fruição da consciência levou ao uso e abuso de alucinógenos, drogas e outros entorpecentes que – pensavam na época – seria uma forma de libertação, mas que se tornou apenas outra forma de alienação e lucro para criminosos (vejamos as dimensões do tráfico de drogas de hoje em dia). Entre os arautos da viagem alucinógena – toda uma cultura psicodélica se formou nos anos 60 – o doutor Timothy Leary e o escritor William Burroughs, ambos defensores das experiências de 'libertação mental'.
Contudo, a prática xamânica dos índios estava definitivamente perdida para nós homens e mulheres da civilização. Somente poderíamos ter êxtases na dimensão simbólica da Poesia – nosso canal de superação para além dos domínio dos mundo prosaico, asfaltado e concretado.
O próprio poeta Piva declara ser “o poeta NA cidade”, “não o poeta DA cidade”, afinal, por mais que ele dedique versos e mais versos a vida da metrópole, ele a rejeita, ele prefere a vida xamânica junto a natureza, numa comunidade rural. Contudo ele não pôde se libertar.
jun/11
Leonardo de Magalhaens
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Referências
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