sobre “O Médico e o Monstro”
(The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, 1886)
do escritor escocês R L Stevenson (1850-1894)
parte 4 de A Literatura enquanto Alegoria/Parábola
Convivendo intimamente com médicos e monstros
Uma novela de terror alegórico nascida de um pesadelo com o 'bicho-papão'– segundo testemunham os parentes de R L Stevenson – onde o que aterroriza está oculto pelas aparências. O nobre médico, erudito e filantropo, às voltas com experiências com o 'lado sombrio' da mente. Um terror que está por detrás das portas sempre mantidas fechadas, lacradas, seladas por séculos de 'repressão' e 'ressentimento'.
A dupla face Jekyll – Hyde mostra que o ser humano não é 'íntegro', mas 'fragmentado', é igual a Divindade de três faces, a Trindade cristã, é um ser-três-em-um, segundo a célebre teoria de S Freud, sobre sermos um conjunto de Id, Ego e SuperEgo. Instâncias psicológicas do indivíduo – não tão 'indivisível assim' – que sobrevie a todo um conflito entre o Id – primitivo e animal – e o SuperEgo – o processo civilizatório 'introjetado'. Isto é, o ser humano carrega dentro de si um 'animal enjaulado' à espera de um momento – um deslize do SuperEgo – para entrar em ação e esbravejar, pisotear, violentar, assassinar. A civilização do ser humano assim não passaria de 'verniz fino' sobre a 'besta-fera' trajada com fibras sintéticas e usando aparelhos de última tecnologia.
(Aliás, a própria tecnologia estaria nas mãos das 'bestas' – basta a ver a destruição causada pelas 'máquinas bélicas' – Guernica, uma cidadezinha espanhola, na região basca, arrasada pela aviação, ou Stalingrado, uma cidade indutrial moderna, reduzida a escombros por ondas e ondas de bombardeios de aviação, ou Hiroshima e Nagasáki, cidades japonesas devastadas e polverizadas pelas bombas atômicas, ou os submarinos que carregam, nas entranhas do mar, mísseis com ogivas que podem atingir e destruir países inteiros)
A esquizofrenia seria a 'fragmentação' manifesta do Eu em múltiplas personalidades, uma vez que os esquizofrênicos manifestam uma 'identidade dissociativa', segundo mostram os estudos do psiquiatra suiço P. E. Bleuler (1857-1939) sobre a 'mente dividida' (squizo + phrene, em grego), não apenas de 'dupla personalidade, pois existiam (e existem) pacientes com 'múltiplas' personalidades. Sobrepostas, paralelas, em paz ou em conflito, se manifestando em ocasiões de crise, ou quando do uso de certos medicamentos.
Simbolicamente (para deixarmos o terreno médico, psiquiátrico) poderíamos dizer que um artista múltiplo seria 'esquizofrênico'? Um ator a interpretar apaixonadamente vários papéis? Um artista ventríloquo num teatro de marionetes seria um 'esquizofrênico'? O poeta lusitano Fernando Pessoa era um 'esquizofrênico' ao se 'fragmentar' em tantos heterônimos? Afinal quem era F Pessoa(s)? O Bernardo Soares, o Álvaro de Campos, o Ricardo Reis, o Alberto Caeiro, etc? Quem era o 'cidadão' que assinava o nome de batismo “Fernando Pessoa”?
Não bastasse isso, além do fenômeno da 'dupla personalidade', há uma outra questão: se o indivíduo seria 'bom' ou 'mau'. Se houvesse uma 'segmentação psíquica', haveria uma 'divisão moral', um 'lado bom' separado do 'lado mau'? O ser humano é 'bom' ou é 'mau'? Nasce 'bom' – o bom selvagem, segundo Rousseau – e depois é acorrentado pela sociedade (a civilização) ou é um animal – uma besta – e a sociedade o domestica (segundo Freud) ?
Já o pensador alemão Nietzsche, sempre polêmico, defende que devemos pensar 'além do Bem e do Mal', que seriam abstrações criadas pela 'moral' no propósito de 'domesticar' os instintos humanos. A 'moral' que 'criminaliza' o forte e 'redime' o fraco, enquanto, para o pensador, o 'mau', na verdade, é tudo aquilo que enfraquece e o 'bom' é tudo aquilo fortalece. O pensamento judaico-cristão seria a 'moral do escravo' (Sklavenmoral), onde o fraco se protege do forte, 'apaziguado' pela culpa e pelo ressentimento.
Vários outros pensadores de outrora já meditaram sobre semelhante problemática. Exemplos são Montaigne e Pascal, os ensaístas pensadores franceses do século 17. Enquanto Montaigne acusa os humanos de 'loucura idealizante', Pascal vê muita pretensão quando se proclama um ser capaz de 'bondade'.
“Nosso espírito ainda não tem voluntários prontos ao que pretendem, sem dissociar-se do corpo no curto espaço de sua necessidade. Desejam colocar-se fora de si mesmos, escapar ao humano. É loucura: pois não se tornam anjos, mas, ao contrário, em feras; e não se elevam, acabam decaindo.” (Montaigne, ensaio “Da Experiência”/ De l'Experience)(“Nostre esprit n'a volontiers pas assez d'autres heures, à faire ses besongnes, sans se desassocier du corps en ce peu d'espace qu'il luy faut pour sa necessité. Ils veulent se mettre hors d'eux, et eschapper à l'homme. C'est folie : au lieu de se transformer en Anges, ils se transforment en bestes : au lieu de se hausser, ils s'abbattent.”)
“O homem não é anjo nem fera, e a infelicidade é que aquele que gostaria de agir como anjo age como fera”. (Pascal, pensée 358) (L'homme n'est ni ange ni bête, et le malheur veut que qui veut faire l'Ange fait la bête )
E quanto mais se reprime um dos lados – a 'bondade' e a 'maldade' mais se divide a 'vontade humana', mais se avoluma o 'recalque' (Verdrängung) que pode 'emergir' a qualquer momento. O que a 'moral' coletiva – de rebanho, como queiram – definiria como 'princípio' seria uma 'repressão' de um desejo individual que poderia incomodar o bem-estar coletivo. Se o sexo fora do casamento é um desejo de muitos, se coletivizado teríamos a implosão das famílias com a praga do adultério, etc.
Assim, o que não é permitido pela 'moral', é classificado como 'perversão'. Mas o tiro sai pela culatra... A perversão é aquilo que 'sendo proibido' daria maior prazer! Daí lembrarmos do sadismo, da violência sexual, das orgias fantasiadas e realizadas, até com a exploração de menores de idade (o que é caracterizado como 'crime de pedofilia', em nossa civilização) (n.b. Digo 'nossa civilização', pois existem povos que assim que a menina menstrua, logo é entregue a um homem, ou o próprio pai, ou parente próximo, a deflora... Logo não há tal conceito de 'pedofilia')
Jogando com o 'desconhecido', o 'perverso' (nada mais que o “unheimlich”, o 'sinistro', o 'estranho', o 'inquietante', o 'não-domesticado', nas teorias de Freud), em “O Médico e o Monstro”, a narrativa se constrói a partir de relatos, informações vagas, visitas, testamentos, cartas não-abertas, criando uma ambiência de 'incompletitude' que somente será solucionado no terrível final. Os amigos do respeitado médico Dr. Henry Jekyll se recusam – até o drama final – a acreditarem que tão eficiente profissional possa estar envolvido em crimes tão funestos. Mas então por que ele protegeria tanto um certo Sr. Edward Hyde?
Mas o Dr. Jekyll sofre pelos moralismos, pela castração de seus desejos, assim deseja deixar livre seu 'lado perverso' e não se preocupar em reprimi-lo. O nobre doutor deseja entregar-se às luxúrias e volúpias sem sentir 'culpa' – assim cria semelhante 'dissociação' – separa de si o 'lado perverso'.
Porém, o 'mal toma conta' – uma vez libertada a 'personalidade má' (Sr. Hyde) começa a fugir ao controle, sendo repugnante, anti-social, violento, homicida. Sofre pelo medo – a culpa (segundo encontramos em Raskólnikof, o criminoso atormentado, em “Crime e Castigo”, de Dostoiévski) que o deixa ainda mais violento (o medo de punição aumenta sua raiva contra as leis e os tabus... quanto maior o medo, mais incontrolável se mostra )
A questão do 'vício' – começa como uma experiência e torna-se uma prisão. Seja vício por droga, por sexo, por objetos de consumo... e quando não se perpetua o vício, emerge a 'dor da abstinência', o viciado sofre por não ter o objeto do vício (a droga, o ato sexual, os objetos de consumo, etc) Jekyll precisa de uma certa droga para ser Hyde e deixar de ser Hyde – mas as dosagens não são suficientes, ele perde o controle, ora percebe-se a transmutar-se em Hyde, ou então adormece sendo Jekyll e acorda tendo sido Hyde, a praticar sabe-selá que crimes...! (é quando o 'monstro' rebela-se e assume o poder sobre o 'médico')
Outro exemplo de prisioneiro dos próprios vícios: o artista e boêmio Dorian Gray (do romance de Oscar Wilde) querendo se divertir com a baixeza humana, com os instintos, e conservando (ao mesmo tempo) sua beleza e candura de adolescente! Assim, transfere o 'horrror' ao primoroso quadro e segue sua vida de 'eterna juventude'... A feiúra do viciado é que 'denunciaria' suas faltas e excessos. Assim o quadro vai se tornando cada dia mais feio enquanto Dorian mantem-se belo e elegante.
Assim também com a dupla Jekyll e Hyde, pois o médico mante-se o bom profissional – ainda que um tanto afetado e introvertido – enquanto o 'monstro' torna-se cada vez o mais o que é: um monstro. Sua figura é assustadora, segundo o relato do Sr. Enfield ao Sr. Utterson, quando passam diante de uma porta fechada, numa rua escura. Lá um estranho personagem havia pisoteado uma menina, que ao chorar atraiu os familiares,
“Eu nunca vi um círculo de faces tão cheias de ódio; e lá estava um homem, no meio delas, uma espécie de sombria e carrancuda frieza – também assustado, eu podia ver – mas mantinha tal frieza, senhor, igual ao próprio Satã.” (trad. LdeM)
I never saw a circle of such hateful faces; and there was the man in the middle,
with a kind of black, sneering coolness--frightened too, I could see that--but carrying it off, sir, really like Satan.
A cada descrição, a sombria personagem vai se delienando, a ponto de justificar a investigação do Sr. Utterson, que é o advogado – e amigo - do Dr. Jekyll, para saber qual exatamente seria a 'ligação' entre o médico e o 'monstro'. Poderia um respeitável cidadão estar 'protegendo' um vilão covarde que não hesita em maltratar as crianças? As fronteiras entre 'proteção' e 'cumplicidade' vão se desvanecendo, e surge um terrível mistério.
O fato de Jekyll haver declarado, em seu testamento, a herança de seus bens – em caso de seu 'desaparecimento' – integralmente para o Sr. Hyde (“amigo e benfeitor”), faz o Sr. Utterson suspeitar que o 'monstro' está chantageando/constrangindo o 'médico'. Afinal, por que Jekyll faria uma 'loucura' dessas? Deixar a fortuna para um vilão tão repugnante...
O Sr. Utterson vai visitar o Dr. Lanyon, médico, colega e amigo do Dr. Jekyll, mas que suspeita que o amigo está envolvido com coisas enigmáticas, restrito à atmosfera sombria do laboratório. Lanyon acha que Jekyll está exagerando em tanto 'interesse científico', assim como vários colegas alertavam o jovem Dr. Victor Frankenstein, na obra de Mary Shelley. O médico-cientista que começa a se envolver com 'enigmáticas experiências', tal um alquimista medieval, a manipular forças que logo fogem ao controle. Assim, tanto Lanyon quanto Utterson começam a ser assombrados por algo que desconhecem... o sinistro, o Unheimlich que perturba.
(Assim também o Dr. Fausto – na obra de Goethe – que perdia o controle sobre Mefistófeles, espírito demoníaco que antes o médico havia invocado e constrangido com sua magia... Esta figura do cientista que - tal um mago desastrado – cria 'monstros' está no cerne de muitas obras de terror e de ficção científica, como veremos em ensaios futuros)
A carta final do Dr. Jekyll – lida pelo Sr. Utterson – mostra todo o desespero do médico ao ver-se dominado pelo 'monstro', “Os poderes de Hyde aumentaram com a doença de Jekyll. E, sem dúvida, o ódio que a eles divide é igual em cada um. Com Jekyll, era uma questão de instinto vital. Ele tinha visto a completa deformidade daquela criatura que havia compartilhado com ele o fenômeno da consciência, e era co-herdeiro com ele até a morte: e além dessas relações comuns, que era a parte mais pungente de todo o seu desespero, ele pensava sobre Hyde, com toda aquela energia de vida, como algo não apenas infernal mas inorgânico. Eis o que era chocante: que o lodo do fundo do poço parecia vociferar e chorar; que a areia sem forma gesticulava e cometia pecados; que o que estava morto, e não tinha forma, usurparia os encargos da vida.” (trad. LdeM)
The powers of Hyde seemed to have grown with the sickiness of Jekyll. And certainly the hate that now divided them was equal on each side. With Jekyll, it was a thing of vital instinct. He had now seen the full deformity of that creature that shared with him some of the phenomena of consciousness, and was co-heir with him to death: and beyond these links of community, which in themselves made the most poignant part of his distress, he thought of Hyde, for all his energy of life, as of something not only hellish but inorganic. This was the shocking thing; that the slime of the pit seemed to utter cries and voices; that the amorphous dust gesticulated and sinned; that what was dead, and had no shape, should usurp the offices of life.
Mas encerremos aqui, sabendo que o nosso objetivo não é resumir o enredo – aliás muito bem enredado, ora analítico, ora sugestivo, quase beirando ao gótico, quando o vulto sombrio do Sr. Hyde perambula pelas ruas nevoentas de London (Londres) com sua bengala ameaçadora, transformando em vítima a primeira pessoa que ele encontrar pela frente, basta apenas um tropeção e eis um homicídio. Tétrica silhueta a espalhar sombras disformes sob os lampiões enevoados numa noite de lua fosca. Eis a atmosfera assustadora de “O Médico e o Monstro”. (Em breve trataremos dos romances góticos e de terror. Aguardem.)
jan/fev/10
Leonardo de Magalhaens