domingo, 28 de fevereiro de 2010

sobre O ALIENISTA - Machado de Assis






Sobre O ALIENISTA (1881/82)
novela de Machado de Assis ( RJ, 1839-1908)



De louco, todo mundo tem um pouco”



parte 3
de A Literatura enquanto Alegoria/Parábola




Acompanhamos, no ensaio anterior, as vicissitudes de Simplício às voltas com suas 'lunetas mágicas', na obra alegórica de J M de Macedo. De como em dado momento é 'rotulado' de 'louco' pela sociedade, e pelos próprios familiares!, como uma clara 'punição' por sua crítica à ordem social – cheia de hipocrisia e vaidades.



Pois Simplício ousou questionar a 'ordem social', que define o que é 'certo' e o que é 'errado'. Num mundo de hipócritas o 'bom tom' é ser sensatamente hipócrita. Eis a questão da Autoridade – quem definiria a 'normalidade' e a 'loucura' ? A sociedade? A elite? Muitos dizem: a Ciência! E quem faz a Ciência? A Ciência faz a si mesma – SEM os homens? Como pode uma criação humana não ter as características humanas: subjetividade e parcialidade?



Entra em foco a figura do 'homem da ciência': o cientista: auto-centrado, frio e racional – o Sr. Spock? (Aquele do “Jornada nas Estrelas”/Star Trek) Sem emoções, guiado pela lógica. Ou o Dr. Victor Frankenstein? (criador de um monstro) Ou o Dr. Jekyll? (que é ele mesmo um monstro) Ou é apenas outra 'caricatura'? Para muitos, Einstein seria considerado 'louco', pouco 'racional', pois ele aceitava o sonho, a imaginação e a intuição.

Haverá um equilíbrio neste 'positivismo' do 'culto à Razão'? Ou a 'racionalidade' é mais uma das ficções que os humanos inventaram com sua imaginação fabulosa?Afinal, a imaginação é o único encanto que sobrou para os humanos. E o 'positivismo' não hesita em 'desencantar o mundo'... Um mundo que seria sujeito a 'formulações' e 'classificações', cuidadosamente dissecado e mesurado, pronto para ser vítima da 'razão instrumental': que existe desde que 'algo funcione'. Agora, quem vai definir 'como funcione' ou 'para quê funcione' é outra questão. É um problema de ordem política e econômica.

O problema da classificação: toda classificação é arbitrária, segue os ditames (e interesses de alguém (ou grupo político e econômico). Lembramos a ironia do escritor argentino Jorge Luís Borges, num texto (1) onde os seres são encaixados em classificações prá-lá de esdrúxulas, pois "não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural. A razão é muito simples: não sabemos que coisa é o universo”(”no hay clasificación del universo que no sea arbitraria y conjetural. La razón es muy simple: no sabemos qué cosa es el universo"”).

Um dos exemplos dado é "[...] certa enciclopédia chinesa intitulada Empório celestial de conhecimentos benévolos. Em suas remotas páginas está escrito que os animais se dividem em a) pertencentes ao Imperador, b) embalsamados, c) amestrados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cachorros soltos, h) incluídos nesta classificação, i) que se agitam feito loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel finíssimo de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabaram de quebrar o jarrão, n) que de longe parecem moscas” (“(a) pertenecientes al emperador, (b) embalsamados, (c) amaestrados, (d) lechones, (e) sirenas, (f) fabulosos, (g) perros sueltos, (h) incluidos en esta clasificación, (i) que se agitan como locos, (j) innumerables, (k) dibujados con un pincel finísimo de pelo de camello, (l) etcétera, (m) que acaban de romper un jarrón, (n) que de lejos parecen moscas.”)

As classificações sempre criam divisões e subdivisões, e dentro destas mais 'sub-classificações', num processo infinito e arbitrário. (Parecendo aquelas imagens de fractais...) Onde entre a 'loucura' e a 'lucidez' haverá subdivisões, assim como dentro da próprio 'loucura' – 'quase loucura', 'alucinação', 'loucura plena', 'esquizofrenia', etc Aquele que não se encaixar em (a) precisará ser encaixado em (b) e assim por diante. Quem não entra no conjunto dos 'racionais' vai ser jogado no subconjunto dos 'quase racionais' ou dos 'loucos totais'. Mas quem define o 'racional'? O cientista? O psiquiatra? Alguém empolgado como o caricatural Dr. Simão Bacamarte?

Faz sentido. Lembramos da obra “A História da Loucura” (Histoire de la Folie à âge classique, 1961) de Michel Foucault, pensador francês (importante nas áreas mais vastas, ao transpor as cercas das disciplinas), que há (e sempre houve) toda uma questão do poder, da disciplina, da 'ordem social' excludente . Foucault refere-se até a um 'biopoder' que regula mente e corpos dos 'cidadãos' em sociedade. (qualquer semelhança com 'Admirável Mundo Novo', '1984' ou 'Matrix' será mera coincidência?)

Também lembramos as ações importantes da 'luta anti-manicomial' – inspirada nas reformas realizadas pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia (1924-1980) no sistema de saúde mental na cidade de Trieste, nos anos 70 – ao buscar impedir o confinamento dos 'loucos' em lugares que parecem verdadeiros 'campos de concentração' (inclusive lúgubre 'imagem' que Basaglia usou ao referir aos manicômios da célebre cidade mineira de Barbacena, em uma visita realizada em 1979.) Aliás, a célebre Barbacena inspirou outra figura alegórica: Geraldo Viramundo, o “Grande Mentecapto” da obra homônima (1979) de Fernando Sabino (1923-2004)(2)

Antes não era costume se 'hospedar' os loucos em casa de tratamentos (ou que se dizem 'de tratamento'), mas eles, os loucos, eram isolados, pelas próprias famílias, da convívio (e da zombaria) social. Tanto que causa estranheza o Dr. Simão Bacamarte querer 'reunir' os loucos numa casa de saúde.

O escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que não acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inútil.

- Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte não arranja nada. Quem é que viu agora meter todos os doidos dentro da mesma casa?
Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado da licença começou logo a construir a casa
. (I)

Após um período de pesquisas e observações, analisando os 'padrões' e 'excentricidades, o Dr. Bacamarte começa a questionar o que seria a 'normalidade'. O Dr. começa então a 'internar' tudo mundo, a maioria dos cidadãos tem algum distúrbio ou excentricidade, ou 'desequilíbrio das faculdades mentais', e deve assim ser 'estudado'.

O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu:
- Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha idéia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente. (IV)

Onde encontrar o equilíbrio e a 'razão' num mar de excentricidades e 'loucura'?

Simão Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse:
- Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia. (IV)

Ironias com a Revolução

Quando a 'experiência' começa a 'bater à porta' dos cidadãos – até dos 'homens bons', os magistrados, os vereadores, os dignos e honoráveis – e ninguém se sente seguro – afinal, quem seria isento de 'desequilíbrios' ou 'excentricidades'? - surgem 'movimentos populares' exigindo a 'queda' da 'Casa de Loucos' – a “Bastilha da razão humana”, segundo um slogan que a 'plebe' glorifica, logo 'conduzida' por um 'líder nato': um barbeiro com sonhos de ambição e de poder.

Ironia com as 'revoluções': Porfírio, o barbeiro, é uma mistura de Marat e Robespierre? Mas sempre há alguém mais radical? Aqui seria um outro barbeiro, João Pina, uma espécie de Babeuf. O problema da 'revolução' são os 'revolucionários'? Que transmutam o ressentimento em 'vontade de poder'? E derrubam uma elite apenas para assumir o lugar desta? (A 'direita' adora usar este argumento! Vide Pareto e sua tese do 'rodízio das Elites', que muito agradou aos fascistas)

O barbeiro tornou logo a si e, agitando o chapéu, convidou os amigos à demolição da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrocando a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por ver o seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado por não ter uma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou nunca. Demais fora tão longe na arruaça que a derrota seria a prisão, ou talvez a forca, ou o degredo. O barbeiro tornou logo a si e, agitando o chapéu, convidou os amigos à demolição da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrocando a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por ver o seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado por não ter uma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou nunca. Demais fora tão longe na arruaça que a derrota seria a prisão, ou talvez a forca, ou o degredo. (VI)

Acaba a 'revolução' sobram os 'revolucionários' – vide Cromwell nas 'revoltas parlamentares', na tumultuada Inglaterra do século 17, esforçando-se para 'conter' os Levellers ('niveladores') e os Diggers ('cavadores') que querem impulsionar a Revolução adiante – reformas sociais imediatas em prol do igualitarismo socialista e/ou anarquista.

Dentro de cinco dias, o alienista meteu na Casa Verde cerca de cinqüenta aclamadores do novo governo. O povo indignou-se. O governo, atarantado, não sabia reagir. João Pina, outro barbeiro, dizia abertamente nas ruas, que o Porfírio estava "vendido ao ouro de Simão Bacamarte", frase que congregou em torno de João Pina a gente mais resoluta da vila. Porfírio, vendo o antigo rival da navalha à testa da insurreição, compreendeu que a sua perda era irremediável, se não desse um grande golpe; expediu dois decretos, um abolindo a Casa Verde, outro desterrando o alienista. João Pina mostrou claramente, com grandes frases, que o ato de Porfírio era um simples aparato, um engodo, em que o povo não devia crer. Duas horas depois caía Porfírio! ignominiosamente e João Pina assumia a difícil tarefa do governo. Como achasse nas gavetas as minutas da proclamação, da exposição ao vice-rei e de outros atos inaugurais do governo anterior, deu-se pressa em os fazer copiar e expedir; acrescentam os cronistas, e aliás subentende-se, que ele lhes mudou os nomes, e onde o outro barbeiro falara de uma Câmara corrupta, falou este de "um intruso eivado das más doutrinas francesas e contrário aos sacrossantos interesses de Sua Majestade", etc. (X)

Quando a Virtude é loucura

Segue-se a 'restauração', volta-se à 'ordem social'. Mas há algo errado. Ainda não está definida a 'fronteira da loucura'. Todos, de algum modo, são loucos? A maioria da cidade? Se existem mais 'desequilibrados', então o desequilíbrio é que seria o 'normal', certo? Logo, o 'normal', estatisticamente falando, é ser 'louco'! Os loucos, digamos os 'anormais', seriam então os equilibrados, os virtuosos, os modestos, etc. Estes merecem ser isolados, para não 'contaminarem' os demais 'normais', que são os desequilibrados, os mesquinhos, os vaidosos, os egoístas, os maliciosos, etc.

Afinal, de que adianta o psicólogo curar o 'louco' da sua 'loucura' se vai re-ingressá-lo num mundo de 'loucos'? Ou ele 'cura' toda a sociedade – ou faz o 'louco' se adaptar à 'loucura' dominante. Ou então separar os 'loucos' dos 'quase-loucos' e dos 'pseudo-loucos'... recaindo novamente naquelas classificações esdrúxulas que Borges ironiza. A cada dia uma nova 'doença mental 'é inventada. Complexos, síndromes, paranóias e neuroses em varejo e atacado. Quem está louco – o cidadão ou a sociedade? Não será o mundo de competição e vaidades que 'enlouquece' as pessoas? Bacamarte decide libertar os 'hóspedes' (que correspondem a quatro quintos da população de Itaguaí!) e hospedar os 'equilibrados'.

Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos em quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de sinceros, etc. Naturalmente, as famílias e os amigos dos reclusos bradavam contra a teoria; e alguns tentaram compelir a Câmara a cassar a licença. A Câmara porém, não esquecera a linguagem do vereador Galvão, e, se cassasse a licença, vê-lo-ia na rua e restituído ao lugar; pelo que, recusou. Simão Bacamarte oficiou aos vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por esse ato de vingança pessoal. (XII)

Mas aprisionar os 'justos' e deixar livres os 'pecadores'? Reconhecer o 'pecado' como a 'normalidade' e elogiar os 'normais' no exercício da inveja, vaidade, desconfiança, violência, vingança? Pois, a terapia será exatamente esta! Curar o modesto com o incentivo da vaidade, o honesto com o brilho do ouro, o abstêmio com as seduções da luxúria... E todos poderão então reingressar no convívio da sociedade hipócrita e desequilibrada! E, finalmente, terá assim o Dr. Bacamarte cumprido a sua venerável missão?

Era assim que ele ia, o grande alienista, de um cabo a outro da vasta biblioteca, metido em si mesmo, estranho a todas as coisas que não fosse o tenebroso problema da patologia cerebral. Súbito, parou. Em pé, diante de uma janela, com o cotovelo esquerdo apoiado na mão direita, aberta, e o queixo na mão esquerda, fechada, perguntou ele a si:
- Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim, - ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?
E cavando por aí abaixo, eis o resultado a que chegou: os cérebros bem organizados que ele acabava de curar eram desequilibrados como os outros. Sim, dizia ele consigo, eu não posso ter a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e outra coisa existiam no estado latente, mas existiam. (XIII)

No final, apenas o Alienista, o cientista, o pesquisador, o 'acima-dos-simples-mortais' é que é o 'equilibrado'? É o 'racional'?

Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa.
- Nenhum defeito?
- Nenhum, disse em coro a assembléia.
- Nenhum vício?
- Nada.
- Tudo perfeito?
- Tudo.
- Não, impossível, bradou o alienista. Digo que não sinto em mim essa superioridade que acabo de ver definir com tanta magnificência. A simpatia é que vos faz falar. Estudo-me e nada acho que justifique os excessos da vossa bondade.
A assembléia insistiu; o alienista resistiu; finalmente o Padre Lopes. explicou tudo com este conceito digno de um observador:
- Sabe a razão por que não vê as suas elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos? É porque tem ainda uma qualidade que realça as outras: - a modéstia.
Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça, juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato continuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.
- A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.
(XIII)
Então, o Dr. Simão Bacamarte, com toda a sua erudição e sapiência, acaba por internar-se, isto é, ele é o juiz e o réu da sentença que o manterá isolado do convívio humano até sua morte plena de indagações. De repente o 'alienado' pode ser justamente o 'alienista', incapaz de encontrar o 'médico' e o 'monstro' em si mesmo.

É o que veremos no próximo ensaio.

Jan/10
notas:
(1)o conto de Borges chama-se “El idioma analítico de John Wilkins”, publicado em 1942. Texto na íntegra (online)
http://www.ldc.upenn.edu/myl/wilkins.html
(2)Geraldo Viramundo é uma personagem entre trágica e cômica, uma espécie de Don Quixote, que vive suas peripécias, entre a ausência de hipocrisia e a demência. O livro inspirou o filme “O Grande Mentecapto” (1986) do diretor Oswaldo Caldeira, com o excelente ator Diogo Vilela sendo o protagonista. Outros filmes sobre a loucura, que tratam sobre o 'confinamento' e e 'segregação', e merecem destaque: “Um Estranho no Ninho” (One Flew Over the Cuckoo's Nest, 1975), “Uma Mente Brilhante” (A Beautiful Mind, 2001),“Garota Interrompida” (Girl, Interrupted, 1999 ), “Loucuras do Rei George” (The Madness of King George, 1994)
Mais sobre o Dr. Franco Basaglia (em italiano) em
http://it.wikipedia.org/wiki/Franco_Basaglia

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Tabacaria / Tobacco Shop (Fernando Pessoa)




FERNANDO PESSOA / ÁLVARO DE CAMPOS
TABACARIA
Tobacco Shop

I am nothing.
Never I'll be anything.
I cannot wish to be anything.
Aside from this, I have within me all the dreams of the world.

Windows of my bedroom,
Of my bedroom of one of the world's millions nobody knows who is
(And if they knew who is, what would they know?)
Give access to the mystery of a street constantly crossed by people.
To a street inaccessible to all of thoughts,
Real, impossibly real, certain, unknowingly certain,
With the mystery of things beneath the stones and beings,
With death putting dampness in the walls and men's white hairs,
With Destiny driving the wagon of everything through the road of nothing.

Today I am defeated, as if I knew the truth.
Today I am lucid, as if I were about to die
And had no more brotherhood with things
Than a goodbye, becoming this house and this streetside
A row of train wagons, and a whistled departure
From inside my head,
And a jolt of my nerves and a grind of bones on the going.

Today I am perplexed, as one who wondered and found and forgot.
Today I am divided between the loyalty I owe
To the Tobacco Shop on the other side of the street, as external real thing,
And to the feeling that everything is a dream, as inward real thing.

I have failed in everything.
And since I had no purposes, maybe everything was nothing.
The learning they gave me,
I go down from this by the window at the back of the house.
I went to the open country with grand purposes.
But there I found only grass and trees,
And when there were people, they were just as other.
I move away from the window, I sit in a chair. What shall I think about ?

What know I about what I will be, I who don't know what I am?
To be hat I think? But I think to be many things!
And there are many people thinking they are the same thing then
cannot be possible there are many!
Genius? At this moment

Hundred thousand brains conceive themselves in dream as geniuses like me,
And the History won't mark, who knows?, not even one,
No, I don't believe in myself.
In all of madhouses there are madpersons insanes with so many sureties!
I, who I have not any surety, am more sure or less sure?
No, not even in myself...

In how much garrets and no-garrets of the world
At this moment are there geniuses-for-themselves dreaming?
How much high and noble and lucid aspirations -
Yes, truly high and noble and lucid -,
And who knows if realizable,
Never they will see the real sun's light nor will find people's ears?
The world is for the one who that is born to conquest it
And not for the one who dreams might can conquest it, even
the one have reason.

I have dreamed more than Napoleon did.
I have held tight to the hypothetical chest more humanities than Christ,
I have secretly created philosophies which no Kant has ever written.
But I am, and maybe always should be, the one from the garret
Although I don't live in it;
I shall always be the one not born for this;
I shall always be the one who just had qualities;
I shall always be the one who has waited for a gate to open to him
near a doorless wall

And sang the ballad of the Infinite in a poultry yard,
And heard God's voice in a covered well.
Believe in myself? No, nor in anything.
May Nature be spilled on my feverish head
Her sun, her rain, the wind that finds my hair,
And the rest, let it come if it must, or not come.
Heartly slaves to the stars,
We have conquered the whole world before leaving our beds;
But we were awakened and it was opaque,
We rose and it was indifferent,
We left the house and it was the whole earth,
Moreover the Solar System, the Milky Way and the Indefinite.

(Eat chocolates, little one;
Eat chocolates!
Know there are no metaphysics in the world but chocolates.
Know that all religions don't teach more than confectionery.
Eat, dirty little one, eat!
If only I could eat chocolates with the same truth as you do!
But I think and, when I lift the silver paper of a tin-foil leaf,
I let everything fall to the ground, as I have lost to my life.)

But, at least, remains from the bitterness of what I will never be.
The speedy calligraphy of these verses,
Broken portico to the Impossible.
But, at least, I devote to myself a despisal without tears,
Noble, at least, in this wide gesture with I throw
The dirty clothes that I am, without roll, to the course of things,
And I stay in home without shirt.
(You, who consoles, not exists and so console,
Or greek goddess, conceived as a living statue,
Or roman patrician, impossibly noble and nefast,
Or princess of minstrels, very gentil and colorful,
Or marquess of eighteenth century, décolleté and very so far,
Or famous cocote of the time od our fathers,
Or modern thing I not know – I not know what -
all of this, be what will be, what you are, if you can inspire then inspire!
My heart is a poured out bucket.
As that ones invocating spirits invocate spirits I invocate
Myself and I find nothing.
I come close to the window and I see the street with a absolute clearness.
I see the shops, I see the sidewalks, I see the passing cars,
I see the dressed living ones crossing by themselves,
I see the dogs also existing,
And all of this is foreign, as everything. )

I lived, studied, loved, and even believed,
And today there is no beggar whom I not envy just for he is not me.
I look at everyone the rags and the sores and the lie,
And I think: maybe never I had lived nor studied nor loved nor believed
(For is possible to make the reality of all of this without making nothing about this)
Maybe existed just as lizard which the tail they had cut
And the tail besides the lizard at movement.
I had made with myself what I never knew,
And what I could make with me I did not.
The domino which I dressed was wrong.
They knew me soon as who I am not and I not deny and lost myself.
When I want draw out the mask,
It was glued to the face.
When I drew out and saw myself at the mirror,
Already I had aged.
I was drunk, already I not knew how dress the domino I had not drawn out.
I threw away the mask and I slept in the cloakroom
As a dog tolerated by the manager
Because it is harmless
And I will write this history to prove I am sublime.
Musical essence of my useless verses,
If I could find you as something I had made
And not stay always in front of the Tabacco Shop in front,
Treading underfoot the consciousness of be existing,
As a carpet where a drunkard stumbles on
Or a door-mat stolen by gypsies and it worths nothing.

But the Tobacco Shop owner has come to the door and is standing there.
I look at him with the discomfort of an half-turned head
And the discomfort of a soul understanding a bit.
He shall die and I shall die.
He shall leave his signboard and I shall leave my verses.
His sign will die, and so will my verses.
And after any moment will die too the street where the signboard is,
And so will the language in which the verses are written.
And so will die the whirling planet where all of this happened.
On other satellites of other systems something like people
Will go on making something like verses and living under things like signboards,

Always one thing in front of the other,
Always one thing as useless as the other,
Always the impossible as stupid as the real,
Always the mystery of the bottom as sure as the sleep of mystery of the top.
Always this or always some other thing, or neither one nor the other,

But a man has entered the Tobacco Shop (to buy tobacco?),
And the plausible reality suddenly falls upon me.
I half rouse myself, energetic, convinced, human,
And I will try to write these verses in which I say the opposite.

I light a cigarette as I think about writing them.
And I taste in the cigarette the liberation from all thoughts.
I follow the smoke as if it were a particular course,
And enjoy, in a sensitive and competent moment,
The liberation of all the speculations
And the conscience that metaphysics is a consequence of bad disposition.

After I lie down on the chair
And continue smoking.
While Destiny allows to me, I will keep smoking.

(If I married my washwoman's daughter
Maybe I should be happy.)
Then, I rise. I go to the window.

The man has come out from the Tobacco Shop (putting change in the pocket of trousers?).
Ah, I know him: he is Esteves without metaphysics.
(The Tobacco Shop owner has come to the door.)
As if by a divine instinct, Esteves turned around and saw me.
He waved goodbye, I greet him "goodbye oh Esteves!", and the universe
Reconstructed itself for me, without ideal nor hope, and the Tobacco Shop owner smiled.

(fev/10)

Trad. livre by Leonardo de Magalhaens
..

domingo, 14 de fevereiro de 2010

sobre A LUNETA MÁGICA (J Manuel de Macedo)





Sobre “A Luneta Mágica” (1869)
de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882)

Além da Ciência do Bem e do Mal

parte 2 de Literatura enquanto Alegoria/Parábola

A Alegoria enquanto instrumento de 'desvelamento' (tirar
os véus) revelando os lados obscuros, os bastidores da
realidade. Apresenta, assim, a Aparência versus a essência.
Lembremos aqui da Alegoria de Voltaire (“Cândido, ou o
Otimismo
”) onde a contraposições eram o Otimismo e o
Pessimismo, diante de cada situação (muitas absurdas)
confrontada pelo ingênuo protagonista Cândido.

Outros contos de Voltaire abordam a questão do 'olhar'.
Exemplos: “O Carregador zarolho”, “Memnon ou a Sensatez
Humana
”, “O Ingênuo”, todos em forma alegórica, visando
a 'educação através do riso'. Destacamos apenas trechos
que nos conduzem diretamente à próxima obra a ser
comentada. Em “O Carregador zarolho” (Le Crocheteur
borgne
) encontramos um trecho interessantíssimo:
Nossos dois olhos não melhoram nosso destino. Um deles
deixa ver o bem, o outro, os males da vida. A maioria fecha
o primeiro, enquanto poucos fecham o segundo. Pois é, assim
muita gente até preferiria ser cega do que ver. Bem-aventurados
os zarolhos que são privados do olho mau que deforma tudo
o que vemos

Em outro conto (Memnon ou La Sagesse Humaine),
podemos ler “Um dia Memnon concebeu o projeto insensato
de ser de todo sensato. Loucura assim já passou pela cabeça
de muita gente
.” Seguindo tal projeto audacioso (tão despro-
positado quanto a missão de ser sempre sincero, verdadeiro,
honesto e franco...) o protagonista Memnon se envolve
numa briga, devido a dívidas de jogo, e perde um olho.
Passa a ser um zarolho que vê apenas pelo olho ruim, vê
somente as misérias da vida. Ao contrário de Mesrour, o
carregador zarolho, do outro conto. Memnon suspira:
Temo que nosso pequeno globo terrestre seja nada mais que
um dos hospícios do universo
” (qualquer semelhança com
O Alienista” será mera concidência?)

Já o jovem huron (povo rústico na França) em “L'Ingénu
(O Ingênuo) é um ser primativo, no sentido de não 'educado',
'civilizado', um camponês (igual Candide) que representa
aqui o 'bom selvagem' (imagem que Rousseau contrapõe
àquelas que mostram o ser humano primoridalmente mau)
pois sempre comete o 'deslize' de ser honesto sincero,
E o senhor, como se chama?”, perguntam ao protagonista,
que responde, “Chamaram-me sempre de Ingênuo, pois sempre
digo sinceramente o que penso e faço o que quero
.” Assim,
numa época de intolerância religiosa, marcada pelos
conflitos entre as várias convicções e seiras, o Ingênuo
vai se envolver em encrencas.

Como o olhar influencia o mundo observado? Nossas
emoções deformam a percepção do mundo? Levantar de
bom humor é essencial para um dia de sorte? Ser
pessimista ou otimismo depende tão-somente de uma
'visão do mundo'? Como não ser parcial nesta 'visão'? Como
viver além do Bem e do Mal? Em suma, é melhor ser cego
do que ver o mundo tal como este é?

Pois a obra “A Luneta Mágica” do brasileiro J M de Macedo,
é incrivelmente atual pela forma e pela força de sua Alegoria,
pois “quem vê cara não vê coração” e “o Diabo não é tão feio
como lhe pintam
”. As aparências e essências se contrastam,
o que parece bom é mau, e vice-versa. Há uma ambiguidade
de estética e ética, entre moral e prática social. O que alguém
diz ser – e o que ele é realmente.

As personagens são mais 'símbolos' do que exatamente
'representações fictícias de pessoas que poderiam ser reais'
(certamente li isto em Bakhtin), são caricaturas, são exageros,
são alegorias. A prima Anica é o 'egoísmo sublime', sendo a
mocinha casadoira que espera um marido mais rico do que
exatamente virtuoso. A tia Domingas é a 'hipócrita invejosa
e má', a religiosa que julga os outros igual ao famoso fariseu
da parábola cristã. E o irmão Américo é o 'ambicioso vulgar',
o político que diz lutar pelo 'bem-estar coletivo' mas interessado
apenas na 'ascensão social'.

Se a família já engana Simplício – o que esperar dos outros,
os estranhos? Pois abrigado no seio da família, o protagonista
está despreparado para a vida social, incapacitado por sua
miopia, que impede sua visão plena – a de que “Tudo tem um
lado bom e lado mau”. Tal qual a Alegoria de “O médico e o
monstro
”, Dr. Jekyll e Mr. Hyde (Stevenson), ou o profundo
e áspero verso de Augusto dos Anjos: “a mão que afaga é a
mesma que apedreja
”.

(A Visão do Mal )

O armênio tem razão: a visão do mal é um tormento; ver muito é um erro; ver demais e um castigo; a temperança é virtude que deve presidir e moderar os gozos de todos os sentidos do homem. (IV)

A miopia moral, a ignorância completa do mal, a inocência conservaram-me até esta manhã franco, simples, sem uma nuvem de suspeita na alma, sem desconfiança dos outros, e com o coração aberto, transparente aos olhos de todos. (VIII)

Ah! visão do mal que me estás levando a descrer da humanidade! tu me serás talvez fatal; mas eu te quero, e não te dispenso mais, porque tu és luz, embora sejas luz do inferno.
(X)

Pois a 'visão do Mal' causa a permanente desconfiança,

É ainda uma desilusão! é ainda um turvo desengano a arrastar-me à desconfiança e talvez em breve ao aborrecimento dos homens. (XI)

E desconfiança que leva ao ceticismo e à misantropia. Pois
os homens que se dizem os mais abnegados e justos são os
mais desonestos e ardilosos. E as mulheres? Vejamos...
Vaidade, inveja, necessidade de ser admirada, competição
com as outras, são provocadoras, falsas, ciumentas por rancor,
não por amor, são ressentidas, dadas ao luxo, ao capricho, etc.
Simplício não pode crer que todos são 'naturalmente' maus,
talvez tudo seja devido às circunstâncias, à uma má educação,
à ignorância. Vê uma mocinha mimada e caprichosa e tenta
explicar o motivo de tal caráter licencioso.

Coitadinha! era uma menina, que talvez tivesse nascido com excelentes disposições, branda, condescendente, alegre, assim o devo supor, pois não creio que alguém nasça mau e pervertido; mas os pais entusiasmados pela beleza da filha, quiseram fazer dela singular maravilha, e a esqueceram cinco anos em um famoso colégio, cuja diretora, antiga florista de Paris, mudara de vocação com os enjôos da viagem transatlântica, e chegada ao Rio de Janeiro, anunciou prodígios de instrução e educação de meninas. (XIV)

Mas é em vão - até na suposta Criação divina, o protagonista-
narrador pode ver o Mal! Até um belo e lépido colibri, “delicada
e gentil criatura
”, pode ser um monstro de gulodice e egoísmo,
a “devorar em cada dia dezenas de insetos inocentes, fracos e
incapazes de defender-se
”. (XVI) Ora, a Natureza mostra-se
'seleção natural' (lembrar que a “Teoria da Evolução” de
Charles Darwin, causa furor após a publicação de “A Origem
das Espécies
”, em 1859, portanto uma década antes de
A Luneta Mágica”)

Assim, Simplício finalmente desabafa:

Vi, encontrei somente o mal em tudo, e em toda a parte, nos seres orgânicos e nos inorgânicos, nas obras das ciências, e das artes, nos livros e nos monumentos.
Para escrever tudo quanto me mostrou a visão do mal me fora preciso encher com a pena molhada em fel muitos e volumosos livros, e atormentar a minha alma com o registro vivo das mais aflitivas observações
. (XVII)

Pois o jovem 'espirituoso' é debochado, sensualista, egoísta;
o jovem 'sério' é um pensador, um calculista, sem escrúpulos.
Todo discurso tem um 'interesse', um 'objetivo não revelado'
(XVIII). Assim, Tudo pois que eu via no mundo era maléfico,
pavoroso, medonho!
(XIX) e entrega-se ao julgamento moral de tudo (XX)

Para qualquer lado que me voltei, fitando a minha luneta, vi somente sob falsas aparências corações corrompidos pelos vícios, ou enegrecidos pelo crime.
Descri do advogado, do padre, do sábio, do artista, de todos e de tudo!
De repente, as pessoas ao redor começam a fugir do olhar da
luneta mágica, pois Fogem, disse rindo-me; fogem, porque lhes
doem as consciências e se reconhecem todos hipócritas e maus.
(XXIII)
E vem o ceticismo: Não creio em homem algum, em mulher alguma: sou a descrença viva, ceticismo animado. Desconfio de todos. (XXV)

A 'visão do Mal' realmente abala a sanidade de Simplício? Agora
que todos passam a declará-lo louco. Pois é a 'opinião pública que
declara a loucura alheia. Quem é sincero, quem é livre de
formalismos, é logo atacado e classificado como 'louco', pois o
normal é ser 'mera aparência', ser hipócrita.

A condição dos loucos: dignos de piedade e de temor. Os doidos
andam livremente pelas ruas – não eram recolhidos aos hospícios
(lembrar que a proposta de Simão Bacamarte, no sentido de
um recolhimento dos alineados numa casa de saúde, em pleno
início de século 19, causa estranheza na população. É a alegoria
de “O Alienista” de Machado de Assis.)

Os insetos se comparam aos políticos, o médico é um aproveitador
dos males alheios, tudo é cercado de malevolência. O que cria uma
espécie de indivíduo cínico numa narrativa sarcástica, tal qual
aquele narrador brutal e lírico de “Cantos de Maldoror” de
Lautréamont.

Na Parte II, aparece uma nova luneta, já que a outra o próprio
Simplício logo quebrou ao observar-se ao espelho e descobrir
a própria maldade. Agora, após novas magias do tal armênio,
tem o protagonista-nmarrador uma luneta mágica que permite
ver o Bem. Esta dualidade leva o narrador a novas questões
metafísicas.

Será a luneta mágica a criadora de ilusões? Os que parecem
'maus' serão, na verdade, 'bons'? Há mesmo uma 'relatividade'
do que seja 'bom' e do que seja 'mau'? (O que conduz às
reflexões de F. Nietzsche, em “Sobre a Genealogia da Moral
e “Além do Bem e do Mal”), ou o Mal e o Bem existem dentro
de cada um de nós (somos todos meio médico e meio monstro,
tal qual Dr. Jekyll & Mr. Hyde, de Stevenson?)

Após o despedaçamento da primeira luneta, os parentes de
Simplício acampam ao seu redor. O mano Américo afirma que
o moço se libertou de uma “ilusão perigosíssima” e insiste em
continuar 'a ver e a pensar' em lugar do irmão míope. Até a
tia Domingas se manifesta, beata e comovida, a dizer que “a
salvação da minha alma, e a doce tranqüilidade da minha vida
teriam tanto mais segurança, quanto mais completa e
irremediável fosse a minha miopia, que me livrara de
enormes pecados
.” (II)

Simplício, após uma semana de repouso, finalmente desce
até a rua. A memória do povo: passou-se uma semana e os
'veredictos' já mudaram. Volúvel e caprichosa cidade! o seu
juízo se modifica, e até muda completamente com o volver
de alguns dias, e o objeto das maldições pouco a pouco
se torna objeto de simpatias. (VI) Não temem mais o 'louco'.
São até indiferentes. E ele começa a se indagar o que é
pior: ser foco das atenções ou passar como se invisível
diante da opinião pública. (Tem gente que considera a
fama acima de tudo: 'falem mal, mas falem de mim”!)

(A visão do Bem)

A luneta mágica, com sua 'visão do Bem' somente encontra o
lado 'bom' de cada um, Até muda a opinião sobre a 'fria' prima
Anica. Anica é um anjo de inocência e simplicidade, e ao mesmo
tempo uma senhora de juízo reto e de exemplar virtude. O que
eu julgara nela gelo do coração era virginal recato, o que eu
tomara por cálculo material e egoísta era a reflexão e a
sabedoria instintiva de uma mulher-modelo; zelosa, sem ciúmes
rudes e ridículos, econômica sem vileza, amante sem paixão
em delício, serena, complacente, dedicada, livre do amor da
ostentação e do luxo, de costumes simples, estremecida pela
família paciente, suave, meiga, Anica é a mulher que reúne
todos os dotes para felicitar o homem que for seu esposo
. (II. V)

Também a Tia Domingas é boníssima. A tia Domingas era
a devoção, a piedade personalizada. Aos pobres negava
esmola
à nossa vista, e semeava benefícios às escondidas: era a
caridade do evangelho, o bem que fazia, só ela o sabia, e
quando rezava, mais vezes suas orações eram por seus
parentes e pelos estranhos, do que por si. No governo
da casa economizava para matar a fome à indigência,
e imaginava mil pretextos para ter mais que dar, e
encobrir o que dava.
(II. VI)

O irmão Américo é um sujeito honesto. Eu fora o mais vil
ingrato se desconhecesse o que devo ao mano Américo.
A visão do bem acaba de mostrar-mo tal qual ele é. A sua
prudência e sabedoria igualam à sua dedicação fraternal,
e aos escrúpulos de sua probidade.
(II. VI)

Assim, Simplício passa a observar tudo novamente. O que se
mostrava mau, agora se mostra bom. Ele vê somente o Bem
(assim como antes ele via apenas o Mal) E ao ver apenas o
Bem, o narrador se sente 'feliz'. Está agora iludido pelo
'supremo bem'. Se com a 'visão do Mal' até a beleza da
aurora tem um tom sombrio, agora, com a 'visão do Bem'
até um bordel (dito teatro, casa de diversões) mostra-se um
lugar de benefícios.

Que injustiça fazem ao Alcasar Lírico: vi nele o contrário do que me informavam! Vi nele o ponto de reunião de todas as classes da sociedade, o jubiloso recurso de entretimento para os homens pobres que não podem pagar outro menos barato, e para as mulheres que degradadas pelo vício são repelidas da boa sociedade; vi nele a mais eloqüente escola de moralidade pública pela exposição ampla e quase sem medida do comércio imoral e repugnante das criaturas desgraçadas que tem descido à última abjeção: melhor que as teorias e os conselhos de um pai austero, falava ali à mocidade o exemplo vivo dos perigos e das torpezas da devassidão. O Alcasar me pareceu enfim uma bela instituição filantrópica e filosófica, a Ética de Jó ensinada pelas antíteses, a ostentação da grandeza da virtude pela observação da baixeza do vicio.
Não pude compreender a razão por que o governo do Brasil ainda não concedeu subvenção ou loterias anuais para auxílio deste admirável teatro lírico francês!
(II. VII)
Ironias à parte, no 'teatro lírico' (o bordel) Simplício se apaixona
pela beleza e pela 'bondade' de uma jovem prostituta, Esmeralda,
que (segundo a 'visão do Bem') sofre com sua própria decadência.
Ela seria uma 'madalena': uma pecadora cheia de remorsos,
ainda sendo possível sua 'redenção'. “(...)despertando no meio
da perversão, Esmeralda teve remorsos, detestou sua vida, foi
mil vezes desgraçada; desejou amar e ser amada, como ama e
é amada a senhora honesta; era porém tarde: o mundo já tinha
marcado a sua fronte com o sinal negro da reprovação perpétua.
Então principiou para a mísera a vida do frenesi a que o desespero
preside."
(VII) E, subitamente, o narrador está diante de um 'dilema':
vai se envolver com a virtude (a prima Anica) ou com o vício
(a tal Esmeralda)?

Assim, se Simplício foi prejudicado pela 'visão do Mal', agora
será iludido pela Bondade de todas as pessoas. Ele se julgara
amando e sendo amado, será generoso pois todos são
generosos (empresta dinheiro e faz doações, sem esperar
retorno – e realmente, ninguém paga-lhe as dívidas), é gentil
pois todos são gentis (e não hesitam em ofendê-lo assim que
ele vira as costas) Aqui, é impossível não lembrar o Príncipe
Michkín, de “O Idiota” (1868), de F. Dostotiévski, que é incapaz
de se proteger da malícia alheia, simplesmente porque não
possui malícia em si-mesmo. É um ser ingênuo. (Tal qual o
'Ingênuo' do conto de Voltaire, que 'peca' pela sinceridade)
A 'visão do Bem' desvela, descortina, descama um outro
Nunes (aquele velhaco de antes): um homem zeloso, correto
pai de família, do qual Simplício abraça a amizade, e vem a
conhecer a filha Nicota, e obviamente vai acabar se
apaixonando (toda mulher agora é uma santa e uma deusa!)
A dúvida angustiante: qual das três mulheres divinais ele vai
desposar? Quem vai escolher: Anica, Esmeralda ou Nicota?
(Mas de repente, ele se sente atraído pela sedução de
outras 30 damas, e acha que todas estão também
apaixonadas por ele!)

Simplício não percebe que a 'visão do Bem' nada mais
é do que aquilo que ele QUER ver! Pois até a 'casa de
Correção' – a cadeia pública – é uma instituição perfeita!
Mas também vê os presos como injustiçados, começa a
nutrir pensamentos revolucionários, mas ao dobrar a
esquina e encontrar as autoridades – advogados, juízes –
julga que todos são justos, justíssimos! Como conciliar essa
contradição? Podem os presos serem injustiçados, se os
merítissimos são homens honrados?

A 'visão do Bem' é realmente mais uma ilusão ao mostrar
que tudo é BOM! Logo, o protagonista descobrirá que cada
lente até então nada mais que 'parcializou' a visão – criou
distorções e exageros – uma mostra tudo perverso, outra
um mundo perfeito. A lente ideal – a nova que o tal armênio
prometia – seria aquela capaz de equilibrar as duas visões,
compensar o Mal como Bem, e vice-versa, e mostrar assim
que todos são – AO MESMO TEMPO – 'bons' e 'maus',
médicos e monstros.

A visão do Bom Senso: nem Bem nem Mal. A filosofia de
Aristóteles: a sabedoria está no mediano. Também lembramos
os conselhos do pai de Robinson Crusoé, na obra de Daniel
Defoe, ao dizer que a infelicidade está nos extremos, ser rico
ou ser pobre, pois na 'classe média' é que está o lugar mais cômodo.
Um filosofia (e hábito) cômoda de viver, sem extremar
as visões, sem julgar pelo aparente, sem julgamentos
morais de terceiros, sem apedrejar antes de entender,
enfim, uma 'visão do bom senso', que , no entanto, não é
narrada! A visão do bom senso fica em segredo.

Não posso falar, não posso escrever, não posso dizer o que a visão do bom senso me está ensinando há um mês.
Quando o meu amigo Reis me desligar do juramento que fiz, escreverei o livro da- visão do Bom Senso.
Mas até lá... segredo.
(Epílogo, VI)

Jan/10

domingo, 7 de fevereiro de 2010

sobre "Cândido, ou o Otimismo" de Voltaire





Sobre “Cândido” (Candide ou l'Optimiste, 1759)
do escritor e filósofo francês Voltaire
(François Marie Arouet, 1694-1778)

A Literatura enquanto Alegoria/Parábola

(outras obras:
A Luneta Mágica
O Alienista
Dr. Jekyll & Mr. Hyde
Animal Farm
(já divulgado))

Já analisamos em ensaios anteriores o recurso da Paródia
e da Sátira como instrumentos literários de Narrativa,
visando obter um maior efeito sobre o Leitor ao ironizar
uma personagem ou visão-de-mundo. A Escrita seria uma
forma de 'despertar' o Leitor através de um chiste, um
mal-entendido, um mal-estar, até a risada libertadora, onde
os preconceitos seriam quebrados, e uma nova ideia – diversa
daquela ironizada – seria então apresentada.

A Alegoria – mais conhecida nas formas de Parábola, Apólogo
ou Fábula – foi sempre muito utilizada pelos autores gregos
(vide o mestre Esopo), pelos latinos (vide Apuleio e Ovídio),
pelos franceses (La Fontaine é um clássico do estilo), pelos
ingleses (vide Swift e Sterne, e depois Orwell), pelos italianos
(um exemplo é o satírico anti-fascista Trilussa (1)) para levar
uma mensagem mais moralizante através do recurso da
'fábula'. Não o chiste, mas a 'metamorfose' das personagens
em formas animalescas (quando não são os próprios animais
que falam e agem como seres humanos...) A 'moral da estória'
é sempre destacada – pois há todo um caráter de 'panfleto'
(de transmitir conteúdo moral e político) nestas fábulas
alegóricas.

A ridicularização das autoridades, a explicitação dos males
sociais, as incoerências da existência, a vaidade dos poderosos
e a inveja dos dominados, tudo serve como matéria-prima para
o estilo satírico, que através de alegorias (parábola, apólogo,
fábula) apresentam o mundo-tal-como-é de um modo caricato,
grotesco, exagerado, afetado, para ressaltar as incongruências.
Passagens bruscas de um lugar a outro, de um tempo a outro.
Situações absurdas, trocadilhos reprováveis, provocações. O
Leitor pode até rir (a sátira é mesmo para rir...) mas a alegoria
(principalmente a Parábola) deseja ensinar um conteúdo moral:
por que não agir contra esses ridículos? Por que não denunciar
o grotesco e ousar mudar a realidade?
Escrito há 250 anos, “Cândido” é um clássico da alegoria, da
sátira, do escritor e filósofo Voltaire, e por extensão do Iluminismo.
Os Iluministas adoravam disseminar suas ideias em panfletos,
alegorias, sátiras. A Literatura – fartamente distribuída em
edições simples, igual ao nosso atual 'cordel' – seria mais
um veículo panfletário – não apenas pelo formato próximo
ao panfleto – por excelência quando o escritor desejava fazer
circular suas ideias filosóficas e políticas. (Hoje é diferente:
temos o rádio e a TV)

Publicado sob o pseudônimo de Monsieur Le Docteur Ralph,
de uma suposta obra allemand (alemã), pois a narrativa inicia-
se nas terras germânicas, acompanhando a vida bucólica do
jovem e singelo Candide (Cândido), que tem tudo para ter
uma vida de realizações, sendo simplório o suficiente para não
ter inimigos em potencial (pois é a ambição que semeia
inimizades....)

O início de “Candide” já é irônico. Relaciona o nome à criança
'cândida' que vivia no castelo de um tal Barão da Vestfália
(atualmente parte da Alemanha).

Il y avait en Westphalie, dans le château de M. le baron de Thunder-ten-tronckh, un jeune garçon à qui la nature avait donné les moeurs les plus douces. Sa physionomie annonçait son âme. Il avait le jugement assez droit, avec l'esprit le plus simple ; c'est, je crois, pour cette raison qu'on le nommait Candide.
“Vivia na Vestfália, no castelo do Barão de Thunder-ten-tronckh, um jovem ao qual a natureza concedeu as maneiras mais gentis. Sua fisionomia anunciava sua alma. Combinava o jugamento correto com a simplicidade de espírito; eis, eu creio, seja a razão pela qual o chamaram de Cândido.” (trad. LdeM)
Após uma descrição igualmente irônica dos nobres alemães, o Narrador apresenta a figura caricata do Preceptor ( uma espécie de Professor particular dos filhos da nobreza) Pangloss, a educar o jovem Candide e a filha do Barão, a bela Fraulein Cunégonde. (A jovem será a 'mocinha' da estória...)

Le précepteur Pangloss était l'oracle de la maison, et le petit Candide écoutait ses leçons avec toute la bonne foi de son âge et de son caractère.
Pangloss enseignait la métaphysico-théologo-cosmolonigologie. Il prouvait admirablement qu'il n'y a point d'effet sans cause, et que, dans ce meilleur des mondes possibles, le château de monseigneur le baron était le plus beau des châteaux et madame la meilleure des baronnes possibles.
« Il est démontré, disait-il, que les choses ne peuvent être autrement : car, tout étant fait pour une fin, tout est nécessairement pour la meilleure fin. Remarquez bien que les nez ont été faits pour porter des lunettes, aussi avons-nous des lunettes. Les jambes sont visiblement instituées pour être chaussées, et nous avons des chausses. Les pierres ont été formées pour être taillées, et pour en faire des châteaux, aussi monseigneur a un très beau château ; le plus grand baron de la province doit être le mieux logé ; et, les cochons étant faits pour être mangés, nous mangeons du porc toute l'année : par conséquent, ceux qui ont avancé que tout est bien ont dit une sottise ; il fallait dire que tout est au mieux.
»
“O preceptor Pangloss era o oráculo da casa, e o pequeno Cândido escutava suas lições com toda a boa fé de sua idade e sua personalidade.
Pangloss ensinava a metafísico-teológica-cosmolonigologia. Ele provava admiravelmente que não há efeito sem uma causa, e que, neste melhor dos mundos possíveis, o castelo do senhor Barão era o mais belo dos castelos e a senhora a melhor das Baronesas possíveis.

O que demonstra, dizia ele, que as coisas não podem ser de outro jeito: pois, tudo tendia a um objetivo, tudo é necessariamente para a melhor finalidade. Observe bem que o nariz é feito para sustentar os óculos, assim temos óculos. As pernas são visivelmente formadas para usarem calcças, e nós usamos calças. As pedras são feitas para serem talhadas, e para se fazer castelos, assim o senhor Barão tem um mui belo castelo; o maior barão da província deve ser o mais louvado; e, os leitões são feitos para serem devorados, devoramos porcos o ano todo: por consequência, aqueles que asseguram que tudo é bom tem dito asneira, eles deveriam ter dito que é tudo para o melhor possível.” (trad. Livre: LdeM)
Então vivemos no 'melhor dos mundos possíveis'? Tudo é assim
porque deve ser assim – e tolice esperar algo diferente? Este
é o trunfo do Otimismo e este é o Finalismo otimista do filósofo
alemão Gottfried W. Leibniz (1646-1716), aqui visivelmente
parodiado na figura super-otimista (e oportunista) do Professor
Pangloss. (Não vamos discutir aqui a filosofia de Leibniz, até
porque não temos competência para tanto; basta informar que
Voltaire simplifica e satiriza as ideias de um dos maiores filósofos
alemães, além de virtuoso matemático)
Uma das primeiras questões relevantes é: Por que o mundo é
do jeito que é? Ou: Poderia o mundo ser diferente? É do jeito
que é porque deve ser assim? Tudo é determinado por Leis
Físicas? Leis Econômicas? Imperativos categóricos? Impulsos
fisiológicos? O 'mundo tal como é' está determinado desde a
aurora dos tempos? Nada podemos fazer para mudá-lo? Convém
apenas se resignar e aclamar a 'perfeição' do mundo?

As dúvidas de Candide logo são respondidas com o ânimo
otimista de Pangloss: “vivemos no melhor dos mundos possíveis”,
pois “tudo concorre para o nosso bem”, que anestesia as
'inquietações' num jovem tão 'cândido'. Mas não vai demorar muito
até que o mundo mostre o quanto é o 'melhor dos possíveis', pois
uma série de contratempos, conflitos, tragédias, vai assolar a
pretensa paz do mundo de Candide.

Não vamos aqui expor o enredo da Fábula e privar o Leitor do
prazer da leitura. Mas o 'melhor dos mundos possíveis' sabe
mostrar uma face tão cruel que é de se perguntar como seria
então o 'pior dos mundos possíveis'! Candide é expulso do castelo –
ao demonstrar sua afeição pela Fraulein Cunégonde – cai na mão
de recrutadores militares, marcha para a guerra – julgando-se
um 'herói' (pois se tem uma coisa que nunca faltou na Europa
essa coisa é a guerra...) entre prussianos e búlgaros, mas ele
consegue escapar durante o ferro e fogo da grande batalha,
vagueia até a Holanda, conhece outras figuras – caricaturas,
obviamente – que ora justificam, ora abalam o seu otimismo
(na verdade, a 'lábia' de Pangloss que 'lavou a mente' do
coitado...)

Em andanças, Candide reencontra o 'mestre' Pangloss, todo
'deformado', depois experimenta os tremores e temores do
Grande Terremoto de Lisboa (1755), que soterrou tanto
malditos quanto inocentes, gerando um grande trauma
popular, logo em busca de 'bodes espiatórios', as bruxas e
endemoniados para serem queimados no fogo dos 'autos-de-fé' –
e quem mais vai parar nas chamas senão o nosso 'herói'
Candide? Ou seja, tudo o que pode dar de errado – realmente
vai de mal a pior! (A “lei de Murphy”, não? “Qualquer coisa
que pode dar errado, vai dar errado
”. Pois é, esta lei Voltaire
já conhecia...)

De tormento em tormento, encrenca em encrenca, Candide
vem parar no sul da América do Sul em busca do El Dorado,
a terra de ouro, o país dos sonhos de cobiça, a “terra que
mana leite e mel
” (a 'terra prometida' das escrituras
bíblicas) – a conquista europeia está em seu auge, movendo
os colonizadores espanhóis e os bandeirantes portugueses
em expedições ao interior do continente sulamericano;
rumando às minas de prata em Potosì, entre o Peru e a Bolívia,
ou as minas de Ouro Preto, em Minas Gerais) – atraindo os
aventureiros, os degredados, os excluídos da 'ordem social'
europeia, que esperam 'fazer a américa' – enriquecer e voltar
com riquezas para se vingar das humilhações (o que, aliás,
muitos conseguiram...) El Dorado que simboliza a UTOPIA –
que também estava na moda naquels época, com os escritos
de Morus, Campanella, F. Bacon, J. Harrington, etc – o espaço
público, social, humano idealizado (com fartura de riquezas,
sem carência e penúrias, sem padres, sem reis-carrascos, etc)
Mas a busca por El Dorado reserva mais infortúnios (aos quais
nos eximimos de resumir) até que Candide se vê obrigado a
retornar ao velho mundo, a Europa, na companhia da amada
(reencontrada!) Cunégonde, e um filósofo pessimista (o contra-
ponto ao otimista Leibniz), um tal Martin, que tenta desconstruir
todo aquele discurso do 'mestre' Pangloss.

-- Mais à quelle fin ce monde a-t-il donc été formé ? dit Candide. -- Pour nous faire enrager, répondit Martin. -
-Mas por qual motivo foi o mundo formado? Disse Candide. - Para nos irritar, respondeu Martin.
E
-- Croyez-vous, dit Candide, que les hommes se soient toujours mutuellement massacrés comme ils font aujourd'hui ? qu'ils aient toujours été menteurs, fourbes, perfides, ingrats, brigands, faibles, volages, lâches, envieux, gourmands, ivrognes, avares, ambitieux, sanguinaires, calomniateurs, débauchés, fanatiques, hypocrites et sots ? -- Croyez-vous, dit Martin, que les éperviers aient toujours mangé des pigeons quand ils en ont trouvé ? -- Oui, sans doute, dit Candide. -- Eh bien ! dit Martin, si les éperviers ont toujours eu le même caractère, pourquoi voulez-vous que les hommes aient changé le leur ? -- Oh ! dit Candide, il y a bien de la différence, car le libre arbitre... » En raisonnant ainsi, ils arrivèrent à Bordeaux.
-Acreditas, disse Candide, que os homens sejam sempre mutualmente massacrados como fazem atualmente, que eles sejam sempre mentirosos, fraudulentos, pérfidos, ingratos, briguentos, idiotas, ladrões, invejosos, glutões, beberrões, ávaros, ambiciosos, sanguinários, caluniadores, debochadores, fanáticos, hipócritas e imbecis? - Acreditas, disse Martin, que os gaviões sempre devoram as pombas que encontram? -Sim, sem dúvida, disse Candide. -Pois bem!, disse Martin, se os gaviões tem sempre o mesmo caráter por que esperas que os homens mudem os deles? -Oh! disse Candide, há uma diferença e tanto, pois o livre arbítrio...” E meditando assim, eles chegaram a Bordeaux.
De volta à Europa, outras aventuras se iniciam. O Narrador da
Fábula de Voltaire prossegue com seu 'esprit de finesse'
('espírito de sutileza', segundo Pascal), sua ironia ácida, seus
epigramas, sua demolição do senso-comum, sua pregação dos
ideais iluministas (muitos dos quais são os nossos atualmente...),
mostrando que os poderosos são aqueles mais carniceiros, que
os grandes generais são os que mais assassinaram, que as
riquezas de uns são as carências de outros. Cada vez mais
desiludido, Candide volta para o seu mundo, sua terrinha,
tentando conservar o que ainda não perdeu: sua amada, seu lar
e seu jardim. Mesmo que tenha que ouvir, vez ou outra, as
lenga-lengas de Pangloss.

et Pangloss disait quelquefois à Candide : « Tous les événements sont enchaînés dans le meilleur des mondes possibles ; car enfin, si vous n'aviez pas été chassé d'un beau château à grands coups de pied dans le derrière pour l'amour de Mlle Cunégonde, si vous n'aviez pas été mis à l'Inquisition, si vous n'aviez pas couru l'Amérique à pied, si vous n'aviez pas donné un bon coup d'épée au baron, si vous n'aviez pas perdu tous vos moutons du bon pays d'Eldorado, vous ne mangeriez pas ici des cédrats confits et des pistaches. -- Cela est bien dit, répondit Candide, mais il faut cultiver notre jardin. »

E Pangloss dizia, vez ou outra, a Candide: “Todos os acontecimentos estão concatenados no melhor dos mundos possíveis; pois, afinal, se não fostes chutado do magnífico castelo por amor à senhorita Cunégonde, se fostes preso pela Inquisição, se não tiveste percorrido a América à pé, se não tiveste dado um bom golpe de espada no Barão, se tiveste perdido tuas ovelhas do belo país do Eldorado, não estarias aqui agora a desfrutar limas e pistaches. - Está certo, respondia Candide, mas é preciso cultivar o nosso jardim.”
jan/10
"Candide" (français) on line
mais sobre alegoria, parábola, paródia em
http://recantodasletras.uol.com.br/teorialiteraria/98721
Notas:

(1)Trilussa (Carlo Alberto Salustri, 1871- 1950) é poeta pouco conhecido no Brasil. Deixemos aqui uma pérola de sua lavra:
All'ombra

Mentre me leggo er solito giornale
spaparacchiato all'ombra d'un pajaro,
vedo un porco e je dico. Addio, majale!
vedo un ciuccio e je dico. Addio, somaro!

Forse ste bestie nun me caperanno,
ma provo armeno la soddisfazzione
de potè di' le cose come stanno
senza paura de fini in priggione.

da Giove e le bestie, 1932

À sombra

Enquanto eu lia um jornal de costume
relaxado à sombra de uma palha,
vejo um porco e digo: Adeus, leitão!
Vejo um burro e digo: Adeus, asno!

Talvez estas bestas não me entendam
mas, ao menos, tenho a satisfação
de poder dizer as coisas dessa forma
sem medo de acabar na prisão.

(trad. Livre: LdeM)

Mais poesia de Trilussa
em http://www.0web.it/poesia/trilussa/

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Ginsberg - A Sutra do Girassol / Sunflower Sutra





opa! tradução dedicada
aos poetas a la 'beatnik' LPS, VFC e WS/JP...


Allen Ginsberg

Sutra do Girassol

Caminhei nas margens do cais de banana enlatada e
sentei à sombra imensa de uma locomotiva
da Southern Pacific a olhar o poente sobre
os morros de casas-caixas e chorar.
Jack Kerouac sentou-se junto a mim sobre um mastro
de ferro partido, companheiro, pensávamos os mesmos
pensamentos da alma, deprimidos, com olhos tristes,
rodeados pelas raízes de aço dos maquinários.
A água oleosa do rio espelhava o céu rubro, o sol
caía nas alturas finais de San Francisco, sem qualquer
peixe nessas águas, sem qualquer ermitão nos montes,
só nós mesmos, com olhos pregados de ressaca, como
uns vagabundos às margens do rio, cansados e atentos.
Olha aí um girassol, ele disse, havia uma sombra
cinzenta e morta, contra o céu, grande tal um homem,
sentado árido num antigo monte de pó de serragem.-
-Fiquei extasiado -- era o meu primeiro girassol,
as lembranças de Blake - minhas visões - o Harlem
e Infernos dos rios do leste, pontos ressoando sanduíches
do Joe Grisalho, carrinhos de bebês mortos, escuros pneus
carecas esquecidos e não-recauchutados, o
poema das margens, camisinhas e penicos,
canivetes, todos em ferrugem, apenas o lixo úmido
e os aparelhos de lâminas de fios afiados a
virarem coisa do passado -
e o cinzento girassol suspenso ao sol-poente,
quebrado, desolado empoeirado com fuligem e fumaça
e névoa de velhas locomotivas em seu olho -
corola de espigas turvas dobradas e quebradas
como coroa golpeada, sementes caídas de sua face,
uma boca em breve sem dentes, ao ar ensolarado,
raios de sol apagados em seus cabelos ressecados
como teia de aranhas feita de arame,
folhas salientes iguais braços saídos do caule, gestos
das raízes de pó de serragem, pedaços quebrados
de gesso, caídos dos ramos escuros, uma mosca
morta nos ouvidos,
Velha coisa profana e abatida, era você meu girassol, ó
minha alma! Eu te amei então!
O sujo não era sujeira de homem, mas da morte e das
locomotivas humanas,
todos aqueles trajes de poeira, aquele véu da escurecida
pele de ferrovia, aquela névoa do rosto, aquelas pálpebras
de miséria sombria, aquela fuliginosa mão ou falo ou
protuberância do artificial – do mais-do-que-sujo industrial ---
moderno – daquilo tudo a civilização manchando tua
louca coroa dourada --
e esses turvos pensamentos de morte e olhos empoeirados e
sem amor e pontas e raízes murchas abaixo, no lar-
pilha de areia e pó de serragem, notas de dólar
feitas de borracha, pele dos maquinários, os amos
e imos dos carentes carros adoecidos, as latas vazias e
solitárias com línguas enferrujadas que triste!, o que mais
eu poderia nomear, as cinzas enfumaçadas de um
charuto-fálico, a boceta de um carrinho-de-mão, ou
os peitos leitosos dos carros, o cu estourado das
cadeiras, o esfíncter dos dínamos – tudo isso
misturado nas raízes mumificadas – e você lá
diante de mim erguida ao sol poente, em
toda a glória de sua formosura!
A perfeita beleza de um girassol! A perfeita
excelente amável existência de girassol!
um doce olho natural na nova lua louca,
desperto vivo excitado segurando no poente
a sombra da aurora dourada brisa mensal!
Quantas moscas zuniam inocentes de tua sujeira,
enquanto você profanava o céu da ferrovia e
tua própria alma de flor?
Pobre flor morta? quando você esqueceu
que é uma flor? quando você olhou para a tua pele
e decidiu que era uma velha locomotiva impotente e suja?
o fantasma de uma locomotiva? o espectro e sombra
de uma já poderosa e louca locomotiva americana?
Você nunca foi uma locomotiva, Girassol! você era um
girassol!
E você, locomotiva, você é a locomotiva, então não vá
esquecer!
Então agarrei o grosso esqueleto de girassol e o
finquei ao meu lado como um cetro,
e fiz o meu sermão à minha alma, e à de Jack também,
e à de todos que ouvirem,
-Não somos a pele de sujeira, não somos nossa locomotiva
medonha desolada e empoeirada sem imaginação, nós
somos por dentro todos belos girassóis dourados,
abençoados por nossas próprias sementes & corpos
em perfeição nus de cabeleiras douradas crescendo
como formas e sombras de girassóis ao sol poente,
observados por nossos olhos à sombra da louca
locomotiva à margem do rio no poente de
San Francisco montes de latas ao entardecer
lá sentado em visão.


Trad. Livre by Leonardo de Magalhaens

jan/10



Sunflower Sutra


Original poem in
http://www.boppin.com/sunflower.html


Vídeos
com Sunflower Sutra

http://www.youtube.com/watch?v=Y5gKZ8vI8Gk&feature=related

http://www.youtube.com/watch?v=ePcZpATw2Vg


http://www.youtube.com/watch?v=nzWai_QkYrk&feature=related