sábado, 26 de setembro de 2009

As VIAGENS DE GULLIVER / Swift (parte 2)







sobre a sátira Viagens de Gulliver
(Gulliver's Travels, de 1726/35)
do irlandês/inglês Jonathan Swift (1667-1745)

(a partir das adaptações de
Clarice Lispector (1973)
Cláudia Lopes (1998, 13a ed.)
e do original inglês em

http://publicliterature.org/books/gullivers_travels/xaa.php


A Literatura enquanto paródia e sátira

(ou como educar os leitores através do riso)


Parte 2

Após novamente arriscar sua fortuna (e a própria vida) em viagens
além-mar, o narrador de Gulliver's Travels, o médico-cirurgião-
navegador Lemuel Gulliver vem descrever sua viagem aos mares
indianos, a bordo do navio Hopewell (sob o comando do capitão
William Robinson – possível referência ao “Robinson Crusoé” de
Defoe), e novamente é atingido pelas fatalidades: um ataque
pirata! Os mercenários deixam o pobre narrador numa balsa à
deriva, até que ele alcance a segurança numa ilha.

De repente, o sol desaparece. Uma nuvem? Um eclipse? Um dragão
engolindo o sol? Não, nada mais que uma ilha flutuante que se
desloca sobre a praia, onde perambula o náufrago. Tem início outra
fantástica narração: o que era aquela ilha flutuante, chamada de
Laputa. (Um jogo com o español 'la puta', 'the whore', da expressão
A Grande Meretriz”- que para Martinho Lutero, o reformista, era
a Razão, “aquela grande prostituta, a Razão”) Uma ilha de cientistas,
filósofos, astrônomos, metafísicos, que andam ensimesmados em
meditações e cálculos, a ponto de tropeçarem e caírem nas sarjetas,
a menos que sejam despertados por servos atentos (certamente
porque os proletários não se perdem em elucubrações metafísicas,
vivem o aqui e agora...)

Os reinos terrestres, dispersos, estão submetidos ao terror de
Laputa (a ilha flutuante), dominando com ameaças de bombardeio
aéreo ou eclipse artificial (a ponto de obscurecer a superfície e
frustrar as colheitas...), abafando revoltas (com destaque para a
rebelde cidade de Lindalino, numa alegoria para a resistência dos
irlandeses contra os ingleses) flutuando sobre os vassalos,
impulsionada e dirigida por enormes imãs artificiais, ora repelindo
ora atraindo a terra, assim subindo ou descendo. Um toque de
(digamos) science fiction (ficção científica), e antes de Shelley, Verne,
Wells, Clarke e Asimov!

Science fiction reforçada pelas personagens de Laputa e de Lagado.
Na ilha flutuante, a Astronomia, a Geometria, a Metafísica, são as
preocupações profissionais e existenciais, sempre no plano estético
ou teórico, a ponto de Matemática, na prática, ser desmerecida (daí
a bizarra Arquitetura do lugar, onde a Engenharia é mais abstrata
do que aplicada...). Já na cidade continental, temos a Academia dos
Sábios (paródia da Royal Society),perdidos em mil invenções e mil
pesquisas, para aprimorar as técnicas e salvar o povo (enquanto isso
o povo vai morrendo de fome e doenças...), totalmente imersos no
'mundo acadêmico', incapazes de discutir com quem pensa diferente
(a ponto de Gulliver, nosso bom narrador, ser considerado ignorante!)

O excesso de Ciência cria a mesma ignorância da falta de Ciência:
uma elite separada do povo, uma dicotomia entre Pensar e Agir, onde
os especialistas dizem ao povo até como fazer as refeições! (E querem
ir além do possível: ao cômico e risível de preparem bolachas com
equações escritas em tinta corante, para o lanche dos alunos, no
propósito de assim aprenderem a sublime Matemática! Por digestão!
Ou, quem sabe, por osmose! (como tanto desejam os nossos
estudantes...) O risível se instala quando o único cidadão sensato
naquele país, um parente do rei (por isso ainda continua vivo!), é
considerado o mais ignorante. (Ignorante, entenda-se, da 'sapiência'
da Academia...)

Temendo perder a sanidade (e a cabeça), Lemuel Gulliver resolve
abandonar aqueles sábios sapientíssimos e conseguir algum navio
com rota para as ilhas holandesas (hoje Indonésia) ou Japão; rota
que passa por outras regiões exóticas, povos estranhíssimos, como
é o caso dos feiticeiros da Glubbdrubdrib, ou Ilha dos Mágicos,
onde os serviçais são os espíritos dos mortos, invocados de todas
as eras. Quantos servos tem o Governador do lugar? “Não sei. Imagine
quantas pessoas já viveram e morreram desde o início dos tempos
...”

Apesar de assustado pelos poderosos necromantes, Gulliver aproveita
a estadia no país, até a partida do navio para o Japão, numa espécie de
'pesquisa histórica', ao solicitar a presença de certos espíritos, de
líderes e guerreiros, filósofos e poetas, para explicarem os absurdos
e desmandos de suas épocas, entrevistando as figuras polêmicas,
Homero e Aristóteles, 'colhendo as informações' na fonte, tudo para
depois ironizar os intérpretes e os historiadores de obras clássicas,
que mais distorcem do que explicam a sabedoria da Antiguidade.

Mais horrorizado Gulliver vai ficar quando conhecer os Struldbrugs,
os Imortais, na terra de Luggnagg, onde literalmente o visitante lambe
as botas do rei (além de todo o salão do trono!). Lá os Imortais são
inexplicado fenômeno – vez ou outroa ocorre, sem razão ou explicação –
quando algumas crianças (com certa mancha rubra na testa) são
notadamente imortais, contudo envelhecem. Para Gulliver a
imortalidade seria um sonho – não morrer nunca! - mas logo descobre
ser um pesadelo: a eterna velhice.“Lamentamos o senhor não ter
a permissão para levar um ou dois Imortais para o vosso país.
Certamente que em breve o vosso povo perderia o medo da morte
!”,
diz a irônica Vossa Majestade.

No final do Livro III, Gulliver faz um solene juramento de não me se
deixar seduzir para viagens, sempre tão custosas e extraordinárias.
Ingênuo o leitor que acredita. (Senão, não haveria o Livro IV.) O
mais consciente e irônico, um micro-resumo da Obra toda, não
poupando ninguém, nem nobre nem burguês. Ironizando a
ignorância sapientíssima dos Eruditos, a irracional ambição dos
burgueses e a ignorância ignorantíssima dos proletários, que sem
educação (nos dois sentidos) acabam por regredir ao estado de
subhumanos, semi-selvagens.


De repente, após um motim, Gulliver, o então capitão de navio
(o Adventure), é deixado ao mar, à deriva, até atingir a praia de
uma ilha distante, não localizada em mapas. Quem ele encontra?
Seres semi-humanos, selvagens e hostis, e belos cavalos que
parecem domesticados, mas é só aparência. É a terra dos cavalos
civilizados (os Houyhnhnm) e os quase-humanos selvagens (os
Yahoos), onde os quadrúpedes são sábios, e os hominídeos são
irracionais trogloditas. Mais sarcástico, impossível!

Os cavalos civilizados (os Houyhnhnm, 'a perfeição da natureza')
vivem tranquilos, numa vida simples, sem conhecerem a intriga,
a ambição, a má-fé, a mentira deliberada. Tranquilos, exceto pela
presença hostil e asquerosa dos Yahoos, seres quase-humanos que
vivem em conflito, em mesquinharias, em depredações. Inclusive
a palavra 'mau'(=ruim), até então inexistente, passa a ser
justamente Yahoo – a imperfeição (ainda mais em comparação
com a perfeição, os próprios Houyhnhnm. E são modestos, os
cavalos!)

O nosso bom narrador, Lemuel Gulliver passa a admirar os cavalos
sábios e gentis, e adotar os modos deles, enquanto cresce sua náusea
diante dos Yahoos (aos quais ele é ainda comparado pelos cavalos)
e de si-mesmo. “Atingi o ponto de preferir ver um Yahoo do que a
mim mesmo, tal foi a aversão que sentia por mim mesmo
.” Ao final,
os Houyhnhnm decidem – numa assembleia onde todos tem direito
a falar e a expressar opinião – que um Yahoo, mesmo que mais gentil
e civilziado, é uma ameaça a paz. Decidem que o melhor é exilar o
forasteiro.

Neste ponto da narrativa, Gulliver (e sabemos que é Swift, o Autor)
passa a horrorizar-se com a perspectiva de um retorno ao mundo
civilizado humano (que agora ele sabe ser uma pseudo-civilização)
e clama aos cavalos que permitam sua estadia no país (já quase
um Paraíso terrestre! uma Pasárgada!). Em vão. Ele precisa partir,
e é a primeira vez que não deseja retornar para a casa.

Mas, Gulliver voltou (caso contrário, não teríamos o Livro IV), não
antes de sofrer ataque de nativos e as dores de uma flechada.
Lembra seu retorno a bordo do navio do capitão português Pedro de
Mendez, navegante sério e gentil, que tenta entender o estado físico
(e psicológico) do náufrago – coisa rara! - e reanima o pobre narrador
a re-adaptar-se ao convívio com os Yahoos (sic) quase-civilizados. E
qual a primeira providência de Gulliver? Ampliar o estábulo e
adquirir belos cavalos, com os quais ele poderia conversar sem
recorrer ao uso de lisonjas e mentiras.


set/09


por Leonardo de Magalhaens


http://leoliteratura.zip.net/

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

As VIAGENS DE GULLIVER / Swift (parte1)





sobre a sátira Viagens de Gulliver
(Gulliver's Travels, de 1726/35)
do irlandês/inglês Jonathan Swift (1667-1745)

(a partir das adaptações de
Clarice Lispector (1973)
Cláudia Lopes (1998, 13a ed.)
e do original inglês em
http://publicliterature.org/books/gullivers_travels/xaa.php


A Literatura enquanto paródia e sátira

(ou como educar os leitores através do riso)

Parte 1

O uso de paródias e sátiras como um modo de educar, ao se
apresentar fatos negativos e ridículos, vem desde os clássicos
latinos, mas foi revivido pelos humanistas, após o Renascimento,
no intuito de seguir o mesmo “ridendo castigat mores” (ou seja,
rindo castigas a moral), trazendo através do riso a cura (e a
superação) dos males sociais e morais.

O 'gênero' sátira é facilmente reconhecido. Apresenta os ilustres
governantes em esboços grotescos, superlativizando as situações
bizarras, e superdimensionando as intrigas, onde todos os
protagonistas e figurantes surgem como caricaturas de defeitos
humanos, demasiadamente humanos. Os títulos são conhecidos.
Lembramos aqui os exemplos de sátiras e paródias, tais como
Don Quijote” (1604) de Miguel de Cervantes; “Pantagruel”(1532)
e “Gargântua”(1534) de Rabelais; “Cândido” (1759) de Voltaire;
os clássicos, até um “Animal Farm/Revolução dos Bichos” (1945)
de G. Orwell . Numa longa sequência de utopistas e fabulistas –
de T. Morus a S. Lem, de La Fontaine a Exupéry (autor de
Pequeno Príncipe”)(1)

Segundo a própria apresentação de Lemuel Gulliver, médico-
cirurgião e 'viciado' em viagens, sabemos que trata-se de um
narrador inquieto, observador, irônico e um tanto mentiroso
(ainda que deseje provar o contrário!), mas sem perder o charme
inglês de narrar estórias (Swift, Sterne e Defoe, são os grandes
prosadores ingleses, inspiração para toda a literatura posterior,
merecendo paródias por parte de ninguém menos que James
Joyce, nos episódios finais de “Ulysses” e na concepção labiríntica
e fragmentada de “Finnegans Wake”)

Este narrador declara ter sofrido naufrágio, e despertado numa
praia, preso por cordas poderosas (ou meros barbantes) sob o
poder de um povo de pigmeus (ou antes, seres com 1/12 do nosso
tamanho), os habitantes de Liliput, ilha-país ainda não localizado
nos mapas de navegação. Na terra dos pequenos, Gulliver é o
gigante, a causar sensação pelo tamanho e força, log o é usado
como instrumento de guerra (quando arrasta os navios da nação
vizinha – também de pequeninos – chamada Blefuscu), ou diversão
para o povo (quando as tropas desfilam sob as suas pernas, como
se ele fosse um 'arco do triunfo'!)

Vivendo entre os pequeninos e examinando o mundo deles de cima,
Gulliver percebe o problema das perspectivas. E quando os
problemas deles também são mesquinhos, insignificantes. Quem usa
salto alto ou salto baixo, ou quem quebra o ovo pela ponta maior ou
pela ponta menor. Meras insignificâncias que causam guerras. Assim
as rivalidades entre Whigs e Tories (questões partidárias), ou entre
os ingleses e os irlandeses (questões territoriais) ou entre britânicos
e franceses (questões de domínio imperialista) são ironizadas e
ridicularizadas como meras mesquinharias. (E não 'alta política'
como se vangloriam os políticos, diplomatas e líderes...)

Quando Gulliver se acostuma com seu 'tamanho' (apenas parece
'maior' em relação aos 'menores'), percebe-se no meio de uma
intriga palaciana (o rei de Liliput deseja que ele, o bom narrador,
seja o carrasco do povo de Blefuscu), e decide fugir para a ilha
vizinha. Lá, ele novamente tenta se adaptar, mas uma sorte repentina
o acolhe: um bote virado na praia é o seu transporte de volta de volta
para casa (ou pelo menos, até encontrar um navio...)

Mas, como Gulliver mesmo declara, ele é louco (literalmente?) por
viagens e desta vez encontra-se, abandonado pelos marujos em fuga,
num país onde os habitantes tem mais de 70 metros de altura!
Gigantes gigantescos, verdadeiros gargântuas e pantagruels, a
devorarem – numa refeição – lavouras inteiras daquelas dos
minúsculos liliputianos!

Aquele que foi gigante em Liliput pode ser o quase inseto em
Brobdingnag, e somente agora parece entender o que os liliputianos
sentiam sem sua presença! “Ah, como sou insignificante!” O tamanho
gigantesco também realça os mil defeitos, as mil arrogâncias daquele
povo, ainda que o rei passe a considerar – depois dos relatos de
Gulliver sobre sociedades e políticas, intrigas e batalhas de além-mar -
os europeus os “seres mais perniciosos que já rastejaram sobre a
terra”( "the most pernicious race of little odious vermin that nature ever
suffered to crawl upon the surface of the earth
." )

É esta questão das perspectivas – não há um lugar privilegiado,
uma posição ideal, para ver o mundo. O que temos é uma pluralidade
de visões: a visão do nobre versus a visão do plebeu – a visão do anão
versus a visão do gigante – a visão de cima para baixo ou a de baixo
para cima. Ora o protagnista é gigante, ora é inseto, ora é considerado
culto, ora é um mero ignorante. As referências do novo meio social
determinam seu 'status', ou seja, seu valor é social (isto é, dado
socialmente, não em si-mesmo). O que Gulliver pensa de si-mesmo
está em constante modificação, e, assim, sua sanidade está em risco.

É o custo a se pagar, pelo desejo de 'conhecer novos mundos'.
Navegar e descobrir novos mundos – é ampliar a visão que temos de
nós mesmos – as navegações trouxeram estranhamentos aos europeus
(vide os escritos de Montaigne, Hans Staden, etc, que mostrou um
outro mundo, novo e exótico – de forma que para os europeus os povos
precisavam ser 'civilizados', isto é, invadidos e explorados pela 'cultura'
europeia), que passaram a repensar o conceito formulados sobre
si-mesmos.

Enquanto a Inglaterra (e também a Espanha, Portugal e Holanda)
enviou navegadores (e piratas) ao mundo todo, o povo de Brobdingnag
não vai além da praia. Imersos em tal 'provincianismo' julgam serem
os únicos habitantes do mundo todo! (O mesmo que dizer “a terra é
o único planeta habitado no universo
”) A presença de Gulliver é a
primeira prova (que muito incomoda) de mundos outros.

Fantástico movie baseado em Gulliver's Travels
foi produzido em 1996, vejam uma apresentação em
continua...


por Leonardo de Magalhaens

http://leoleituraescrita.blogspot.com/

domingo, 6 de setembro de 2009

sobre ANIMAL FARM (A Revolução dos Bichos) de George Orwell





Sobre Animal Farm (A Revolução dos Bichos)(1945)
de George Orwell

Uns mais iguais do que outros

Conhecido por seu idealismo e por sua atuação prática, o escritor
britânico George Orwell, nascido Eric Blair, deixou uma obra literária
modesta, mas essencial. Ao abordar assuntos de interesse social e
político, deixou na História o seu nome como referência de luta
contra os sistemas de opressão. Celebrizado por sua obra-prima
1984”, onde o todo-poderoso e pleno-vigilante Grande Irmão,
Big Brother”, acaba de ser vulgarizado numa série de televisivos
reality shows da mediocridade midiática.

A obra literária de Orwell reflete a vivência real do autor na vida
política, além da luta física nos campos de batalha, tendo servido
na terrível e fraticida Guerra Civil Espanhola (1936-39), quando
as Esquerdas miseravelmente divididas perderam para as Direitas
heterogêneas, mas medonhamente unidas. Através de novas
experiências de organização, os Anarquistas, principalmente,
enfrentaram os 'ditos' Comunistas, centralistas e estalinizados,
enquanto os Socialistas hesitavam entre defender a República
burguesa e apoiar uma esperada (mas impossibilitada) 'revolução
proletária'. Enquanto isso, os Monarquistas, os Militares
nacionalistas, os Falangistas fascistas, os latifundiários, os clérigos
se uniam numa rebelião contra o governo democraticamente eleito
em fevereiro de 1936.

A experiência na Espanha marcou o pensamento e obra de Orwell
(assim também abalou Ernest Hemingway, que escreveu sua
obra-prima “For whom the bells tolls”/Por quem os sinos dobram,
em 1940, mostrando as perdas humanas no conflito) que passou a
defender uma espécie de 'socialismo libertário' contra o centralismo
dito comunista, enquanto resiste ao liberalismo burguês e o
autoritarismo fascista. Assim cercado por todos os lados, o homem
Orwell vem desabafar em suas obras uma série de paranóias sobre
o controle, a vigilância, as violências e sutilezas do poder. Tal um
novo Kafka, mais politizado, mas ainda alegórico, o escritor Orwell
deixa no papel suas suspeitas quanto a uma possível 'libertação
humana' caso não seja possível uma superação da exploração do
homem pelo homem.

Estas alegorias são a base de “Animal Farm”, a Revolução dos Bichos,
onde os animais se revoltam contra os patrões humanos e resolveram
gerenciar eles mesmos a Granja onde habitam. Ao ouvirem as sábias
palavras do velho porco Major (que pode ser um símbolo para Marx e
também Lenin) os animais fazem uma revolução guiada pela 'liberdade',
em prol da 'igualdade'. Mas devem aprender a 'gerenciar' as duas
instâncias metafísicas, que se limitam, que se constrangem. (O fato
de não sermos nem livres, nem iguais, é assunto para outro ensaio!)

Em Animal Farm, o Sr. Jones é a figura do opressivo poder czarista,
autocrático e atrasado, e também do capitalista explorador, que
domina a 'Granja do Solar', um espaço que podemos identificar
como a Rússia, lugar de servidão. Os animais não suportam mais
trabalhar para o conforto dos humanos e ouvem as exortações do
velho porco Major, a lembrar que todo o esforço dos bichos é roubado
pelos humanos, o inimigo de classe, isto é, dos demais animais. Num
momento de 'convulsão social', a revolução tem início, com a emoção
e idealismo a redimir as violências, até a expulsão dos exploradores.

E depois? Os grupos revolucionários podem chegar num acordo
apesar de todas as diferenças? Afinal, temos aqui porcos, ovelhas,
cães, galinhas, gansos, cabras, cavalos, burros, etc, que precisam viver
em harmonia através de regras criadas por eles mesmos e não 'dadas'
por um ser 'dito' superior. Estas regras são os Sete Mandamentos
que dizem:

"Whatever goes upon two legs is an enemy: Whatever goes upon four
legs, or has wings, is a friend; No animal shall wear clothes; No animal
shall sleep in a bed: No animal shall drink alcohol; No animal shall kill
any other animal; All animals are equal."
(O que anda sobre duas pernas é um inimigo; O que anda sobre quatro
pernas, ou tem asas, é um amigo; Nenhum animal deve vestir roupa;
Nenhum animal deve dormir em cama; Nenhum animal deve beber
álcool; Nenhum animal deve matar outro animal; Todos os animais
são iguais)

O que mostra bem que nenhuma sociedade é possível sem as leis,
os Mandamentos, desde uma tribo nômade, ou uma aldeia de
pescadores até as modernas socieades cheias de preceitos, códigos,
estatutos, leis orgânicas, constituições. O problema é: quem cria
as leis? Quem aplica as leis? Quem defende as leis? A quem as leis
acabam favorecendo? De repente as mesmas leis que 'libertam'
passam a ser novas cadeias! (É assim que Legisladores e especialistas
jurídicos se elevam acima dos demais e constituem uma 'casta
administrativa' a exigir privilégios)

As proclamações de 'todos são iguais' vem esconder que uns acabam
se tornando 'mais iguais', os porcos que se destacam por brutalidade
e velhacaria, nominalmente Napoleon, uma figura claramente
estalinista, Snowball (Bola-de-Neve), o organizador que acaba sendo
excluído, Squealer (Garganta), o relações-públicas, que usa a palavra
como instrumento de doutrinação e coerção, e assim Minimus (Mínimo),
o porco poeta, que exalta as novas regras (e os novos líderes). São
os porcos que arregimentam outros porcos (que depois serão
excluídos e condenados junto com Bola-de-Neve), além de cães de
caça (as novas forças de vigilância e repressão), para manterem
submissas as massas de produtores e proletários (as vacas, as
galinhas, as ovelhas).

Dentre os explorados, existem os que se esforçam para agradar (o
cavalo Sansão), como bons stakhanovistas, os que exercem uma
desconfiança prudente (a égua Quitéria, a cabra Maricota, o burro
Benjamin), os que seguem por vaidade ou oportunismo (a égua Mimosa,
o gato), os que buscam consolo nas crenças religiosas (ou instrumen-
talizam estas crenças, a prometer um Paraíso ou ameaçar com um
Inferno, como faz o corvo Moisés). Nesta nova “Granja dos Bichos”,
onde a liberdade e a igualdade são exaltadas, novas classes passam a
se formar, novos privilegiados se elevam assim dos demais 'iguais'.
“Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”
(“All animals are equal but some animals are more equal than others”)

Cada animal na sua função: a divisão social do trabalho possibilita
maior produção, porém cria 'nichos de especialização', de diferenciação
e poder. Uns trabalham e outros administram o trabalho. Muitos vendem
o suor, uns poucos planejam, calculam, consomem. A maioria se aliena
enquanto uns privilegiados criam novas estatísticas e metas de produção.
O operário cada vez pensa mais como operário e o administrador cada
vez como administrador. A divisão do trabalho aumenta a desigualdade.
(Se a Identidade de cada indivíduo não se prendesse a cada função
social, a cada departamento ou atividade, seria possível superar a
desigualdade e a exploração? Se uma pessoa fosse estudante num dia,
policial no outro, jardineiro no final de semana, ele seria estudante,
policial ou jardineiro? Seria uma pessoa, numa uma 'ocupação social'.
Não defenderia 'interesses de classe', pois conheceria vários tipos de
trabalho, sem se especializar, sem se alienar)

Porém tendo Napoleon se proclamado o 'líder infalível', e afastado os
demais concorrentes dentre os corruptos porcos, na lama da 'nova
classe', passa então a negociar seu 'império' com os inimigos em
potencial – os humanos! A ameaça tem nomes: o Sr. Pilkington, de
Foxwood (uma alegoria dos anglo-saxões, Grã-Bretanha e Estados
Unidos da América), e o Sr. Frederick, de Pinchfield (a representar
a Alemanha, potência imperialista, então sob o chicote nazista.)
A Revolução agora está à venda! Em acordos mediados pelo
Sr. Whymper, o negociante entre os humanos e os animais, ou entre
os capitalistas e os 'socialistas'. Napoleon dá um golpe dentro da
Revolução e negocia com Frederick (Pacto Germano-Soviético,
ou Ribbentrop-Molotov), mostrando amizade por Pilkington (os
anglo-saxões querem comércio, não?). Mas é Frederick (aqui, o
Führer) quem engana Napoleon, com fraudes, e depois vem
invadir a Granja (a invasão nazista da Rússia, a Operação
Barbarossa
), sendo derrotado na Batalha do Moinho (as batalhas
de Moscow e Stalingrado)

Mas, depois de tudo, depois de expulsar Frederick, Napoleon fica
ainda mais poderoso! Os cães fazem parte de uma ampla rede de
coerção militarizada, a inspirar suspeita e medo a todos os animais –
que se julgavam livres e iguais – enquanto as leis fundamentais vão
sendo sutilmente alteradas – para favorecer os porcos. (Quem
percebe as mudanças? Os animais mais atentos e prudentes, a
cabra Maricota, principalmente, que sabe que as coisas não são
exatamente como proclamadas pelo retórico Garganta. Por que?
Ora, os 'revolucionários' de ontem, são os 'conservadores' de amanhã.
Uma 'nova classe' de 'mais iguais que outros' sobe ao poder e
novamente aliena os 'demais iguais'.

É contra essa usurpação do poder, essa traição do ideal socialista,
que se eleva a voz de Orwell, não a favor de manter a poder dito
liberal da burguesia e sua ditadura sutil do Mercado livre (livre?
A raposa livre no galinheiro livre?) Usar as obras de Orwell como
forma de desacreditar a Revolução é uma forma de reacionarismo
burguês – vamos manter tudo igual, pois podia ser pior
! (Afinal
não 'vivemos no melhor dos mundos possíveis'? Não é assim que
insistia o Dr Pangloss a cada miséria do pobre Cândido, na obra
irônica de Voltaire?) Orwell, mesmo acreditando em 'liberdade',
insiste na igualdade de oportunidades e de acesso às rodadas de
decisão política. (Difícil é a convivência de 'livre' e 'igual' – ambas
aspirações ideais, que se inviabilizam na prática social. Ser livre
para ser desigual? Agir coletivo em funções iguais?)

O socialismo almeja ser melhor que o capitalismo – não um sistema
de produção, de estatismo, de centralismo, de planificação, de
concorrência – mas de superação da Alienação e da Mais-Valia,
dois flagelos que destroem as potencialidades humanas e reduzem
todos à condição de engrenagens servis de uma sistema mercenário
de exploração e oportunidades desiguais. Os bens já não existem
para todos (devido à carência) e para piorar um grupo se apodera
em prejuízo dos demais! Uns mais iguais do que outros, uns mais 'livres'
do que outros, uns mais 'sublimes' do que outros, de forma cruel, da
qual certamente os animais se envergonhariam, até mesmo os porcos.


Ago/09


Por Leonardo de Magalhaens

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