sobre a sátira Viagens de Gulliver
(Gulliver's Travels, de 1726/35)
do irlandês/inglês Jonathan Swift (1667-1745)
(a partir das adaptações de
Clarice Lispector (1973)
Cláudia Lopes (1998, 13a ed.)
e do original inglês em
http://publicliterature.org/books/gullivers_travels/xaa.php
A Literatura enquanto paródia e sátira
(ou como educar os leitores através do riso)
Parte 1
O uso de paródias e sátiras como um modo de educar, ao se
apresentar fatos negativos e ridículos, vem desde os clássicos
latinos, mas foi revivido pelos humanistas, após o Renascimento,
no intuito de seguir o mesmo “ridendo castigat mores” (ou seja,
rindo castigas a moral), trazendo através do riso a cura (e a
superação) dos males sociais e morais.
O 'gênero' sátira é facilmente reconhecido. Apresenta os ilustres
governantes em esboços grotescos, superlativizando as situações
bizarras, e superdimensionando as intrigas, onde todos os
protagonistas e figurantes surgem como caricaturas de defeitos
humanos, demasiadamente humanos. Os títulos são conhecidos.
Lembramos aqui os exemplos de sátiras e paródias, tais como
“Don Quijote” (1604) de Miguel de Cervantes; “Pantagruel”(1532)
e “Gargântua”(1534) de Rabelais; “Cândido” (1759) de Voltaire;
os clássicos, até um “Animal Farm/Revolução dos Bichos” (1945)
de G. Orwell . Numa longa sequência de utopistas e fabulistas –
de T. Morus a S. Lem, de La Fontaine a Exupéry (autor de
“Pequeno Príncipe”)(1)
Segundo a própria apresentação de Lemuel Gulliver, médico-
cirurgião e 'viciado' em viagens, sabemos que trata-se de um
narrador inquieto, observador, irônico e um tanto mentiroso
(ainda que deseje provar o contrário!), mas sem perder o charme
inglês de narrar estórias (Swift, Sterne e Defoe, são os grandes
prosadores ingleses, inspiração para toda a literatura posterior,
merecendo paródias por parte de ninguém menos que James
Joyce, nos episódios finais de “Ulysses” e na concepção labiríntica
e fragmentada de “Finnegans Wake”)
Este narrador declara ter sofrido naufrágio, e despertado numa
praia, preso por cordas poderosas (ou meros barbantes) sob o
poder de um povo de pigmeus (ou antes, seres com 1/12 do nosso
tamanho), os habitantes de Liliput, ilha-país ainda não localizado
nos mapas de navegação. Na terra dos pequenos, Gulliver é o
gigante, a causar sensação pelo tamanho e força, log o é usado
como instrumento de guerra (quando arrasta os navios da nação
vizinha – também de pequeninos – chamada Blefuscu), ou diversão
para o povo (quando as tropas desfilam sob as suas pernas, como
se ele fosse um 'arco do triunfo'!)
Vivendo entre os pequeninos e examinando o mundo deles de cima,
Gulliver percebe o problema das perspectivas. E quando os
problemas deles também são mesquinhos, insignificantes. Quem usa
salto alto ou salto baixo, ou quem quebra o ovo pela ponta maior ou
pela ponta menor. Meras insignificâncias que causam guerras. Assim
as rivalidades entre Whigs e Tories (questões partidárias), ou entre
os ingleses e os irlandeses (questões territoriais) ou entre britânicos
e franceses (questões de domínio imperialista) são ironizadas e
ridicularizadas como meras mesquinharias. (E não 'alta política'
como se vangloriam os políticos, diplomatas e líderes...)
Quando Gulliver se acostuma com seu 'tamanho' (apenas parece
'maior' em relação aos 'menores'), percebe-se no meio de uma
intriga palaciana (o rei de Liliput deseja que ele, o bom narrador,
seja o carrasco do povo de Blefuscu), e decide fugir para a ilha
vizinha. Lá, ele novamente tenta se adaptar, mas uma sorte repentina
o acolhe: um bote virado na praia é o seu transporte de volta de volta
para casa (ou pelo menos, até encontrar um navio...)
Mas, como Gulliver mesmo declara, ele é louco (literalmente?) por
viagens e desta vez encontra-se, abandonado pelos marujos em fuga,
num país onde os habitantes tem mais de 70 metros de altura!
Gigantes gigantescos, verdadeiros gargântuas e pantagruels, a
devorarem – numa refeição – lavouras inteiras daquelas dos
minúsculos liliputianos!
Aquele que foi gigante em Liliput pode ser o quase inseto em
Brobdingnag, e somente agora parece entender o que os liliputianos
sentiam sem sua presença! “Ah, como sou insignificante!” O tamanho
gigantesco também realça os mil defeitos, as mil arrogâncias daquele
povo, ainda que o rei passe a considerar – depois dos relatos de
Gulliver sobre sociedades e políticas, intrigas e batalhas de além-mar -
os europeus os “seres mais perniciosos que já rastejaram sobre a
terra”( "the most pernicious race of little odious vermin that nature ever
suffered to crawl upon the surface of the earth." )
É esta questão das perspectivas – não há um lugar privilegiado,
uma posição ideal, para ver o mundo. O que temos é uma pluralidade
de visões: a visão do nobre versus a visão do plebeu – a visão do anão
versus a visão do gigante – a visão de cima para baixo ou a de baixo
para cima. Ora o protagnista é gigante, ora é inseto, ora é considerado
culto, ora é um mero ignorante. As referências do novo meio social
determinam seu 'status', ou seja, seu valor é social (isto é, dado
socialmente, não em si-mesmo). O que Gulliver pensa de si-mesmo
está em constante modificação, e, assim, sua sanidade está em risco.
É o custo a se pagar, pelo desejo de 'conhecer novos mundos'.
Navegar e descobrir novos mundos – é ampliar a visão que temos de
nós mesmos – as navegações trouxeram estranhamentos aos europeus
(vide os escritos de Montaigne, Hans Staden, etc, que mostrou um
outro mundo, novo e exótico – de forma que para os europeus os povos
precisavam ser 'civilizados', isto é, invadidos e explorados pela 'cultura'
europeia), que passaram a repensar o conceito formulados sobre
si-mesmos.
Enquanto a Inglaterra (e também a Espanha, Portugal e Holanda)
enviou navegadores (e piratas) ao mundo todo, o povo de Brobdingnag
não vai além da praia. Imersos em tal 'provincianismo' julgam serem
os únicos habitantes do mundo todo! (O mesmo que dizer “a terra é
o único planeta habitado no universo”) A presença de Gulliver é a
primeira prova (que muito incomoda) de mundos outros.
(Gulliver's Travels, de 1726/35)
do irlandês/inglês Jonathan Swift (1667-1745)
(a partir das adaptações de
Clarice Lispector (1973)
Cláudia Lopes (1998, 13a ed.)
e do original inglês em
http://publicliterature.org/books/gullivers_travels/xaa.php
A Literatura enquanto paródia e sátira
(ou como educar os leitores através do riso)
Parte 1
O uso de paródias e sátiras como um modo de educar, ao se
apresentar fatos negativos e ridículos, vem desde os clássicos
latinos, mas foi revivido pelos humanistas, após o Renascimento,
no intuito de seguir o mesmo “ridendo castigat mores” (ou seja,
rindo castigas a moral), trazendo através do riso a cura (e a
superação) dos males sociais e morais.
O 'gênero' sátira é facilmente reconhecido. Apresenta os ilustres
governantes em esboços grotescos, superlativizando as situações
bizarras, e superdimensionando as intrigas, onde todos os
protagonistas e figurantes surgem como caricaturas de defeitos
humanos, demasiadamente humanos. Os títulos são conhecidos.
Lembramos aqui os exemplos de sátiras e paródias, tais como
“Don Quijote” (1604) de Miguel de Cervantes; “Pantagruel”(1532)
e “Gargântua”(1534) de Rabelais; “Cândido” (1759) de Voltaire;
os clássicos, até um “Animal Farm/Revolução dos Bichos” (1945)
de G. Orwell . Numa longa sequência de utopistas e fabulistas –
de T. Morus a S. Lem, de La Fontaine a Exupéry (autor de
“Pequeno Príncipe”)(1)
Segundo a própria apresentação de Lemuel Gulliver, médico-
cirurgião e 'viciado' em viagens, sabemos que trata-se de um
narrador inquieto, observador, irônico e um tanto mentiroso
(ainda que deseje provar o contrário!), mas sem perder o charme
inglês de narrar estórias (Swift, Sterne e Defoe, são os grandes
prosadores ingleses, inspiração para toda a literatura posterior,
merecendo paródias por parte de ninguém menos que James
Joyce, nos episódios finais de “Ulysses” e na concepção labiríntica
e fragmentada de “Finnegans Wake”)
Este narrador declara ter sofrido naufrágio, e despertado numa
praia, preso por cordas poderosas (ou meros barbantes) sob o
poder de um povo de pigmeus (ou antes, seres com 1/12 do nosso
tamanho), os habitantes de Liliput, ilha-país ainda não localizado
nos mapas de navegação. Na terra dos pequenos, Gulliver é o
gigante, a causar sensação pelo tamanho e força, log o é usado
como instrumento de guerra (quando arrasta os navios da nação
vizinha – também de pequeninos – chamada Blefuscu), ou diversão
para o povo (quando as tropas desfilam sob as suas pernas, como
se ele fosse um 'arco do triunfo'!)
Vivendo entre os pequeninos e examinando o mundo deles de cima,
Gulliver percebe o problema das perspectivas. E quando os
problemas deles também são mesquinhos, insignificantes. Quem usa
salto alto ou salto baixo, ou quem quebra o ovo pela ponta maior ou
pela ponta menor. Meras insignificâncias que causam guerras. Assim
as rivalidades entre Whigs e Tories (questões partidárias), ou entre
os ingleses e os irlandeses (questões territoriais) ou entre britânicos
e franceses (questões de domínio imperialista) são ironizadas e
ridicularizadas como meras mesquinharias. (E não 'alta política'
como se vangloriam os políticos, diplomatas e líderes...)
Quando Gulliver se acostuma com seu 'tamanho' (apenas parece
'maior' em relação aos 'menores'), percebe-se no meio de uma
intriga palaciana (o rei de Liliput deseja que ele, o bom narrador,
seja o carrasco do povo de Blefuscu), e decide fugir para a ilha
vizinha. Lá, ele novamente tenta se adaptar, mas uma sorte repentina
o acolhe: um bote virado na praia é o seu transporte de volta de volta
para casa (ou pelo menos, até encontrar um navio...)
Mas, como Gulliver mesmo declara, ele é louco (literalmente?) por
viagens e desta vez encontra-se, abandonado pelos marujos em fuga,
num país onde os habitantes tem mais de 70 metros de altura!
Gigantes gigantescos, verdadeiros gargântuas e pantagruels, a
devorarem – numa refeição – lavouras inteiras daquelas dos
minúsculos liliputianos!
Aquele que foi gigante em Liliput pode ser o quase inseto em
Brobdingnag, e somente agora parece entender o que os liliputianos
sentiam sem sua presença! “Ah, como sou insignificante!” O tamanho
gigantesco também realça os mil defeitos, as mil arrogâncias daquele
povo, ainda que o rei passe a considerar – depois dos relatos de
Gulliver sobre sociedades e políticas, intrigas e batalhas de além-mar -
os europeus os “seres mais perniciosos que já rastejaram sobre a
terra”( "the most pernicious race of little odious vermin that nature ever
suffered to crawl upon the surface of the earth." )
É esta questão das perspectivas – não há um lugar privilegiado,
uma posição ideal, para ver o mundo. O que temos é uma pluralidade
de visões: a visão do nobre versus a visão do plebeu – a visão do anão
versus a visão do gigante – a visão de cima para baixo ou a de baixo
para cima. Ora o protagnista é gigante, ora é inseto, ora é considerado
culto, ora é um mero ignorante. As referências do novo meio social
determinam seu 'status', ou seja, seu valor é social (isto é, dado
socialmente, não em si-mesmo). O que Gulliver pensa de si-mesmo
está em constante modificação, e, assim, sua sanidade está em risco.
É o custo a se pagar, pelo desejo de 'conhecer novos mundos'.
Navegar e descobrir novos mundos – é ampliar a visão que temos de
nós mesmos – as navegações trouxeram estranhamentos aos europeus
(vide os escritos de Montaigne, Hans Staden, etc, que mostrou um
outro mundo, novo e exótico – de forma que para os europeus os povos
precisavam ser 'civilizados', isto é, invadidos e explorados pela 'cultura'
europeia), que passaram a repensar o conceito formulados sobre
si-mesmos.
Enquanto a Inglaterra (e também a Espanha, Portugal e Holanda)
enviou navegadores (e piratas) ao mundo todo, o povo de Brobdingnag
não vai além da praia. Imersos em tal 'provincianismo' julgam serem
os únicos habitantes do mundo todo! (O mesmo que dizer “a terra é
o único planeta habitado no universo”) A presença de Gulliver é a
primeira prova (que muito incomoda) de mundos outros.
Fantástico movie baseado em Gulliver's Travels
foi produzido em 1996, vejam uma apresentação em
continua...
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