sobre a sátira Viagens de Gulliver
(Gulliver's Travels, de 1726/35)
do irlandês/inglês Jonathan Swift (1667-1745)
(a partir das adaptações de
Clarice Lispector (1973)
Cláudia Lopes (1998, 13a ed.)
e do original inglês em
http://publicliterature.org/books/gullivers_travels/xaa.php
A Literatura enquanto paródia e sátira
(ou como educar os leitores através do riso)
Parte 2
Após novamente arriscar sua fortuna (e a própria vida) em viagens
além-mar, o narrador de Gulliver's Travels, o médico-cirurgião-
navegador Lemuel Gulliver vem descrever sua viagem aos mares
indianos, a bordo do navio Hopewell (sob o comando do capitão
William Robinson – possível referência ao “Robinson Crusoé” de
Defoe), e novamente é atingido pelas fatalidades: um ataque
pirata! Os mercenários deixam o pobre narrador numa balsa à
deriva, até que ele alcance a segurança numa ilha.
De repente, o sol desaparece. Uma nuvem? Um eclipse? Um dragão
engolindo o sol? Não, nada mais que uma ilha flutuante que se
desloca sobre a praia, onde perambula o náufrago. Tem início outra
fantástica narração: o que era aquela ilha flutuante, chamada de
Laputa. (Um jogo com o español 'la puta', 'the whore', da expressão
“A Grande Meretriz”- que para Martinho Lutero, o reformista, era
a Razão, “aquela grande prostituta, a Razão”) Uma ilha de cientistas,
filósofos, astrônomos, metafísicos, que andam ensimesmados em
meditações e cálculos, a ponto de tropeçarem e caírem nas sarjetas,
a menos que sejam despertados por servos atentos (certamente
porque os proletários não se perdem em elucubrações metafísicas,
vivem o aqui e agora...)
Os reinos terrestres, dispersos, estão submetidos ao terror de
Laputa (a ilha flutuante), dominando com ameaças de bombardeio
aéreo ou eclipse artificial (a ponto de obscurecer a superfície e
frustrar as colheitas...), abafando revoltas (com destaque para a
rebelde cidade de Lindalino, numa alegoria para a resistência dos
irlandeses contra os ingleses) flutuando sobre os vassalos,
impulsionada e dirigida por enormes imãs artificiais, ora repelindo
ora atraindo a terra, assim subindo ou descendo. Um toque de
(digamos) science fiction (ficção científica), e antes de Shelley, Verne,
Wells, Clarke e Asimov!
Science fiction reforçada pelas personagens de Laputa e de Lagado.
Na ilha flutuante, a Astronomia, a Geometria, a Metafísica, são as
preocupações profissionais e existenciais, sempre no plano estético
ou teórico, a ponto de Matemática, na prática, ser desmerecida (daí
a bizarra Arquitetura do lugar, onde a Engenharia é mais abstrata
do que aplicada...). Já na cidade continental, temos a Academia dos
Sábios (paródia da Royal Society),perdidos em mil invenções e mil
pesquisas, para aprimorar as técnicas e salvar o povo (enquanto isso
o povo vai morrendo de fome e doenças...), totalmente imersos no
'mundo acadêmico', incapazes de discutir com quem pensa diferente
(a ponto de Gulliver, nosso bom narrador, ser considerado ignorante!)
O excesso de Ciência cria a mesma ignorância da falta de Ciência:
uma elite separada do povo, uma dicotomia entre Pensar e Agir, onde
os especialistas dizem ao povo até como fazer as refeições! (E querem
ir além do possível: ao cômico e risível de preparem bolachas com
equações escritas em tinta corante, para o lanche dos alunos, no
propósito de assim aprenderem a sublime Matemática! Por digestão!
Ou, quem sabe, por osmose! (como tanto desejam os nossos
estudantes...) O risível se instala quando o único cidadão sensato
naquele país, um parente do rei (por isso ainda continua vivo!), é
considerado o mais ignorante. (Ignorante, entenda-se, da 'sapiência'
da Academia...)
Temendo perder a sanidade (e a cabeça), Lemuel Gulliver resolve
abandonar aqueles sábios sapientíssimos e conseguir algum navio
com rota para as ilhas holandesas (hoje Indonésia) ou Japão; rota
que passa por outras regiões exóticas, povos estranhíssimos, como
é o caso dos feiticeiros da Glubbdrubdrib, ou Ilha dos Mágicos,
onde os serviçais são os espíritos dos mortos, invocados de todas
as eras. Quantos servos tem o Governador do lugar? “Não sei. Imagine
quantas pessoas já viveram e morreram desde o início dos tempos...”
Apesar de assustado pelos poderosos necromantes, Gulliver aproveita
a estadia no país, até a partida do navio para o Japão, numa espécie de
'pesquisa histórica', ao solicitar a presença de certos espíritos, de
líderes e guerreiros, filósofos e poetas, para explicarem os absurdos
e desmandos de suas épocas, entrevistando as figuras polêmicas,
Homero e Aristóteles, 'colhendo as informações' na fonte, tudo para
depois ironizar os intérpretes e os historiadores de obras clássicas,
que mais distorcem do que explicam a sabedoria da Antiguidade.
Mais horrorizado Gulliver vai ficar quando conhecer os Struldbrugs,
os Imortais, na terra de Luggnagg, onde literalmente o visitante lambe
as botas do rei (além de todo o salão do trono!). Lá os Imortais são
inexplicado fenômeno – vez ou outroa ocorre, sem razão ou explicação –
quando algumas crianças (com certa mancha rubra na testa) são
notadamente imortais, contudo envelhecem. Para Gulliver a
imortalidade seria um sonho – não morrer nunca! - mas logo descobre
ser um pesadelo: a eterna velhice.“Lamentamos o senhor não ter
a permissão para levar um ou dois Imortais para o vosso país.
Certamente que em breve o vosso povo perderia o medo da morte!”,
diz a irônica Vossa Majestade.
No final do Livro III, Gulliver faz um solene juramento de não me se
deixar seduzir para viagens, sempre tão custosas e extraordinárias.
Ingênuo o leitor que acredita. (Senão, não haveria o Livro IV.) O
mais consciente e irônico, um micro-resumo da Obra toda, não
poupando ninguém, nem nobre nem burguês. Ironizando a
ignorância sapientíssima dos Eruditos, a irracional ambição dos
burgueses e a ignorância ignorantíssima dos proletários, que sem
educação (nos dois sentidos) acabam por regredir ao estado de
subhumanos, semi-selvagens.
De repente, após um motim, Gulliver, o então capitão de navio
(o Adventure), é deixado ao mar, à deriva, até atingir a praia de
uma ilha distante, não localizada em mapas. Quem ele encontra?
Seres semi-humanos, selvagens e hostis, e belos cavalos que
parecem domesticados, mas é só aparência. É a terra dos cavalos
civilizados (os Houyhnhnm) e os quase-humanos selvagens (os
Yahoos), onde os quadrúpedes são sábios, e os hominídeos são
irracionais trogloditas. Mais sarcástico, impossível!
Os cavalos civilizados (os Houyhnhnm, 'a perfeição da natureza')
vivem tranquilos, numa vida simples, sem conhecerem a intriga,
a ambição, a má-fé, a mentira deliberada. Tranquilos, exceto pela
presença hostil e asquerosa dos Yahoos, seres quase-humanos que
vivem em conflito, em mesquinharias, em depredações. Inclusive
a palavra 'mau'(=ruim), até então inexistente, passa a ser
justamente Yahoo – a imperfeição (ainda mais em comparação
com a perfeição, os próprios Houyhnhnm. E são modestos, os
cavalos!)
O nosso bom narrador, Lemuel Gulliver passa a admirar os cavalos
sábios e gentis, e adotar os modos deles, enquanto cresce sua náusea
diante dos Yahoos (aos quais ele é ainda comparado pelos cavalos)
e de si-mesmo. “Atingi o ponto de preferir ver um Yahoo do que a
mim mesmo, tal foi a aversão que sentia por mim mesmo.” Ao final,
os Houyhnhnm decidem – numa assembleia onde todos tem direito
a falar e a expressar opinião – que um Yahoo, mesmo que mais gentil
e civilziado, é uma ameaça a paz. Decidem que o melhor é exilar o
forasteiro.
Neste ponto da narrativa, Gulliver (e sabemos que é Swift, o Autor)
passa a horrorizar-se com a perspectiva de um retorno ao mundo
civilizado humano (que agora ele sabe ser uma pseudo-civilização)
e clama aos cavalos que permitam sua estadia no país (já quase
um Paraíso terrestre! uma Pasárgada!). Em vão. Ele precisa partir,
e é a primeira vez que não deseja retornar para a casa.
Mas, Gulliver voltou (caso contrário, não teríamos o Livro IV), não
antes de sofrer ataque de nativos e as dores de uma flechada.
Lembra seu retorno a bordo do navio do capitão português Pedro de
Mendez, navegante sério e gentil, que tenta entender o estado físico
(e psicológico) do náufrago – coisa rara! - e reanima o pobre narrador
a re-adaptar-se ao convívio com os Yahoos (sic) quase-civilizados. E
qual a primeira providência de Gulliver? Ampliar o estábulo e
adquirir belos cavalos, com os quais ele poderia conversar sem
recorrer ao uso de lisonjas e mentiras.
set/09
por Leonardo de Magalhaens
http://leoliteratura.zip.net/
(Gulliver's Travels, de 1726/35)
do irlandês/inglês Jonathan Swift (1667-1745)
(a partir das adaptações de
Clarice Lispector (1973)
Cláudia Lopes (1998, 13a ed.)
e do original inglês em
http://publicliterature.org/books/gullivers_travels/xaa.php
A Literatura enquanto paródia e sátira
(ou como educar os leitores através do riso)
Parte 2
Após novamente arriscar sua fortuna (e a própria vida) em viagens
além-mar, o narrador de Gulliver's Travels, o médico-cirurgião-
navegador Lemuel Gulliver vem descrever sua viagem aos mares
indianos, a bordo do navio Hopewell (sob o comando do capitão
William Robinson – possível referência ao “Robinson Crusoé” de
Defoe), e novamente é atingido pelas fatalidades: um ataque
pirata! Os mercenários deixam o pobre narrador numa balsa à
deriva, até que ele alcance a segurança numa ilha.
De repente, o sol desaparece. Uma nuvem? Um eclipse? Um dragão
engolindo o sol? Não, nada mais que uma ilha flutuante que se
desloca sobre a praia, onde perambula o náufrago. Tem início outra
fantástica narração: o que era aquela ilha flutuante, chamada de
Laputa. (Um jogo com o español 'la puta', 'the whore', da expressão
“A Grande Meretriz”- que para Martinho Lutero, o reformista, era
a Razão, “aquela grande prostituta, a Razão”) Uma ilha de cientistas,
filósofos, astrônomos, metafísicos, que andam ensimesmados em
meditações e cálculos, a ponto de tropeçarem e caírem nas sarjetas,
a menos que sejam despertados por servos atentos (certamente
porque os proletários não se perdem em elucubrações metafísicas,
vivem o aqui e agora...)
Os reinos terrestres, dispersos, estão submetidos ao terror de
Laputa (a ilha flutuante), dominando com ameaças de bombardeio
aéreo ou eclipse artificial (a ponto de obscurecer a superfície e
frustrar as colheitas...), abafando revoltas (com destaque para a
rebelde cidade de Lindalino, numa alegoria para a resistência dos
irlandeses contra os ingleses) flutuando sobre os vassalos,
impulsionada e dirigida por enormes imãs artificiais, ora repelindo
ora atraindo a terra, assim subindo ou descendo. Um toque de
(digamos) science fiction (ficção científica), e antes de Shelley, Verne,
Wells, Clarke e Asimov!
Science fiction reforçada pelas personagens de Laputa e de Lagado.
Na ilha flutuante, a Astronomia, a Geometria, a Metafísica, são as
preocupações profissionais e existenciais, sempre no plano estético
ou teórico, a ponto de Matemática, na prática, ser desmerecida (daí
a bizarra Arquitetura do lugar, onde a Engenharia é mais abstrata
do que aplicada...). Já na cidade continental, temos a Academia dos
Sábios (paródia da Royal Society),perdidos em mil invenções e mil
pesquisas, para aprimorar as técnicas e salvar o povo (enquanto isso
o povo vai morrendo de fome e doenças...), totalmente imersos no
'mundo acadêmico', incapazes de discutir com quem pensa diferente
(a ponto de Gulliver, nosso bom narrador, ser considerado ignorante!)
O excesso de Ciência cria a mesma ignorância da falta de Ciência:
uma elite separada do povo, uma dicotomia entre Pensar e Agir, onde
os especialistas dizem ao povo até como fazer as refeições! (E querem
ir além do possível: ao cômico e risível de preparem bolachas com
equações escritas em tinta corante, para o lanche dos alunos, no
propósito de assim aprenderem a sublime Matemática! Por digestão!
Ou, quem sabe, por osmose! (como tanto desejam os nossos
estudantes...) O risível se instala quando o único cidadão sensato
naquele país, um parente do rei (por isso ainda continua vivo!), é
considerado o mais ignorante. (Ignorante, entenda-se, da 'sapiência'
da Academia...)
Temendo perder a sanidade (e a cabeça), Lemuel Gulliver resolve
abandonar aqueles sábios sapientíssimos e conseguir algum navio
com rota para as ilhas holandesas (hoje Indonésia) ou Japão; rota
que passa por outras regiões exóticas, povos estranhíssimos, como
é o caso dos feiticeiros da Glubbdrubdrib, ou Ilha dos Mágicos,
onde os serviçais são os espíritos dos mortos, invocados de todas
as eras. Quantos servos tem o Governador do lugar? “Não sei. Imagine
quantas pessoas já viveram e morreram desde o início dos tempos...”
Apesar de assustado pelos poderosos necromantes, Gulliver aproveita
a estadia no país, até a partida do navio para o Japão, numa espécie de
'pesquisa histórica', ao solicitar a presença de certos espíritos, de
líderes e guerreiros, filósofos e poetas, para explicarem os absurdos
e desmandos de suas épocas, entrevistando as figuras polêmicas,
Homero e Aristóteles, 'colhendo as informações' na fonte, tudo para
depois ironizar os intérpretes e os historiadores de obras clássicas,
que mais distorcem do que explicam a sabedoria da Antiguidade.
Mais horrorizado Gulliver vai ficar quando conhecer os Struldbrugs,
os Imortais, na terra de Luggnagg, onde literalmente o visitante lambe
as botas do rei (além de todo o salão do trono!). Lá os Imortais são
inexplicado fenômeno – vez ou outroa ocorre, sem razão ou explicação –
quando algumas crianças (com certa mancha rubra na testa) são
notadamente imortais, contudo envelhecem. Para Gulliver a
imortalidade seria um sonho – não morrer nunca! - mas logo descobre
ser um pesadelo: a eterna velhice.“Lamentamos o senhor não ter
a permissão para levar um ou dois Imortais para o vosso país.
Certamente que em breve o vosso povo perderia o medo da morte!”,
diz a irônica Vossa Majestade.
No final do Livro III, Gulliver faz um solene juramento de não me se
deixar seduzir para viagens, sempre tão custosas e extraordinárias.
Ingênuo o leitor que acredita. (Senão, não haveria o Livro IV.) O
mais consciente e irônico, um micro-resumo da Obra toda, não
poupando ninguém, nem nobre nem burguês. Ironizando a
ignorância sapientíssima dos Eruditos, a irracional ambição dos
burgueses e a ignorância ignorantíssima dos proletários, que sem
educação (nos dois sentidos) acabam por regredir ao estado de
subhumanos, semi-selvagens.
De repente, após um motim, Gulliver, o então capitão de navio
(o Adventure), é deixado ao mar, à deriva, até atingir a praia de
uma ilha distante, não localizada em mapas. Quem ele encontra?
Seres semi-humanos, selvagens e hostis, e belos cavalos que
parecem domesticados, mas é só aparência. É a terra dos cavalos
civilizados (os Houyhnhnm) e os quase-humanos selvagens (os
Yahoos), onde os quadrúpedes são sábios, e os hominídeos são
irracionais trogloditas. Mais sarcástico, impossível!
Os cavalos civilizados (os Houyhnhnm, 'a perfeição da natureza')
vivem tranquilos, numa vida simples, sem conhecerem a intriga,
a ambição, a má-fé, a mentira deliberada. Tranquilos, exceto pela
presença hostil e asquerosa dos Yahoos, seres quase-humanos que
vivem em conflito, em mesquinharias, em depredações. Inclusive
a palavra 'mau'(=ruim), até então inexistente, passa a ser
justamente Yahoo – a imperfeição (ainda mais em comparação
com a perfeição, os próprios Houyhnhnm. E são modestos, os
cavalos!)
O nosso bom narrador, Lemuel Gulliver passa a admirar os cavalos
sábios e gentis, e adotar os modos deles, enquanto cresce sua náusea
diante dos Yahoos (aos quais ele é ainda comparado pelos cavalos)
e de si-mesmo. “Atingi o ponto de preferir ver um Yahoo do que a
mim mesmo, tal foi a aversão que sentia por mim mesmo.” Ao final,
os Houyhnhnm decidem – numa assembleia onde todos tem direito
a falar e a expressar opinião – que um Yahoo, mesmo que mais gentil
e civilziado, é uma ameaça a paz. Decidem que o melhor é exilar o
forasteiro.
Neste ponto da narrativa, Gulliver (e sabemos que é Swift, o Autor)
passa a horrorizar-se com a perspectiva de um retorno ao mundo
civilizado humano (que agora ele sabe ser uma pseudo-civilização)
e clama aos cavalos que permitam sua estadia no país (já quase
um Paraíso terrestre! uma Pasárgada!). Em vão. Ele precisa partir,
e é a primeira vez que não deseja retornar para a casa.
Mas, Gulliver voltou (caso contrário, não teríamos o Livro IV), não
antes de sofrer ataque de nativos e as dores de uma flechada.
Lembra seu retorno a bordo do navio do capitão português Pedro de
Mendez, navegante sério e gentil, que tenta entender o estado físico
(e psicológico) do náufrago – coisa rara! - e reanima o pobre narrador
a re-adaptar-se ao convívio com os Yahoos (sic) quase-civilizados. E
qual a primeira providência de Gulliver? Ampliar o estábulo e
adquirir belos cavalos, com os quais ele poderia conversar sem
recorrer ao uso de lisonjas e mentiras.
set/09
por Leonardo de Magalhaens
http://leoliteratura.zip.net/