terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Memória da cidade no olhar de Pedro Nava






















Memória da cidade no olhar de Pedro Nava






Médico dedicado, poeta bissexto e romancista postergado, o memorialista Pedro Nava deixou uma obra extensa e profunda sobre os resgates possíveis do tempo já passado (e perdido), sobre os caminhos e desvios da vida, sobre os amigos que se foram e sobre as feridas que não cicatrizam. Tudo descrito em tentativa de recuperação, de peleja com a saudade.

Sobretudo, Nava deixou um testemunho, um depoimento sobre o ‘mundo antigo’, sobre a vida no início do século 20, sobre as cidades em crescimento – Rio de Janeiro, Juiz de Fora e Belo Horizonte – futuras metrópoles regionais e nacionais. É um olhar sobre a mudança, sobre o que se conservou na memória, sobre o que só existe enquanto lembrança. Sua infância em período conturbado – golpes e revoluções -, seu apego aos amigos e lugares – uma verdadeira ‘geografia sentimental’ -, sua denúncia dos mandos e desmandos, em suma, um documento valioso para retratar meio século de cultura brasileira.

Em nosso breve ensaio vamos nos concentrar sobre as evocações de Nava quanto à cidade de Belo Horizonte nos anos 1910 e 1920, imediatamente antes da Revolução de 1930, época de coronelismo, tenentismo, fraudes eleitorais, voto de cabresto, alternância Minas-São-Paulo no plano político num metafórico ‘café-com-leite’, inovação modernista, polarizações esquerda-direita entre comunistas e integralistas, quando da consolidação do Stalinismo e da ascensão do Nazismo.

Dentro de tal contexto vamos nos localizar nas ruas de Belo Horizonte, no Capítulo II – Serra do Curral – de Balão Cativo [BC], com a mudança da família de Pedro Nava – de Juiz de Fora para a nova capital mineira (antiga Cidade de Minas, antes Curral del Rey). Nava morou com a família em casas nos bairros da Floresta e da Serra, e frequentava os bares junto aos abrigos de bondes, juntamente com os literatos Carlos Drummond de Andrade (vindo de Itabira/ MG), Cyro dos Anjos (vindo de Montes Claros/ MG) e Emílio Moura (natural de Dores do Indaiá / MG), dentre outros. O volume de memórias Balão Cativo foi escrito no Rio de Janeiro, entre outubro de 1970 e junho de 1973, e publicado neste ano, pela José Olympio Editora. Portanto meio século após as vivências e vicissitudes do jovem estudante de Medicina.

As personagens relembradas por Nava se situam numa geografia bem demarcada, em ruas da cidade cercada por montanhas, ainda sem as ascensões dos arranha-céus, ainda mais provinciana que metropolitana, aos cidadãos meio deslocados na nova geometria,

A urbe poeirenta e pobre acabava no Quartel, na Rua Maranhão, na Avenida Paraúna [atual Av. Getúlio Vargas], na Rua Tomé de Sousa, na rua dos Tupis, na Avenida Paraná, no Mercado, no Arrudas, nos leitos da Central e da Oeste. A Avenida Amazonas só tinha quatro quarteirões e a cidade mandava tímidos prolongamentos para a Serra, a Barroca, o Calafate, o Bonfim, a Floresta. Mais tarde vieram as enceintes de Carlos V, a de Luís XIII, do Dr. Artur Bernardes, do Coronel Cristo, da Olímpia, do Dr. Melo Viana, da Elza Brunatti, da Petronilha (Petró), do Dr. Antônio Carlos, da Leonídia (Lió), da sessão Fox no Odeon, dos porres de cerveja gelada, da decadência do Clube Belo Horizonte e esplendor do Automóvel Clube, da Universidade, da sua invasão, dum moço baleado chamado Viana, da retirada do Reitor e da dispersão dos Pimentéis. Era ainda uma cidade triste, de donzelas enclausuradas, de estudantes desmandados, de agiotas insaciáveis (o duto Murta, o gélido Moreira), de funcionários contidos e carentes, dos primeiros desfalques, das negociatas inaugurais e quase honestas … Entretanto crescera para além do Cruzeiro, materializara o círculo da Avenida do Contorno, tomara conta do Barro Preto, canalizara o Córrego Leitão, asfaltara o Centro e ligava-se, sem descontinuidade, ao Calafate, ao Carlos Prates, ao Bonfim, à Lagoinha. Estendeu-se mais ainda, em todas as direções; pulou os limites dos fermiers généraux, dos interventores da Ditadura, dos enriquecimentos mirabolantes, dos imensos negócios. Excedeu a de Thiers, a de Milton Campos (este – dizia Rodrigo – é um prêmio que Minas não merecia!), a de Juscelino, Bias, Magalhães Pinto, Israel, está na de Rondon, mas não vai parar! Porque a cidade sem limites continuará, passará a Baleia, as Mangabeiras, o Curral, o Rola-Moça, o Pindorama, a Pampulha, a Providência, Santo Agostinho, a Severa... Está livre dos velhos complexos sexuais do tempo de Totônio Pacheco, é a mais linda do sertão, a terceira do Brasil, passou aos pileques de uísque, tem inferninhos, instalou a livre-fodança, mas jamais, ah! Jamais sacudirá o jugo do velho crepúsculo, daquela tristeza da tarde morrendo varrida de ventos, da lembrança submarina dos fícus e dos moços que subiam e desciam a Rua da Bahia. Não a Rua da Bahia de hoje. A de ontem. A dos anos vinte. A de todos os tempos, a sem fim no espaço, a inconclusa nos amanhãs. Nela andarão sempre as sombras de Carlos Drummond de Andrade, de seus sequazes, cúmplices, amigos, acólitos, satélites... (BC, pp. 144-45)




Encontramos no texto certa referência ao protagonista “Totônio Pacheco” do romance (publicado em 1935) de João Alphonsus de Guimaraens (1901-1944), também referência a Loira do Bonfim (que figura também na poética de Drummond de Andrade), quando da expansão das linhas de bonde,
 
Em 1905 inauguram-se as linhas das Ruas do chumbo e Pouso Alegre. Estavam lançados os bondes Serra e Floresta. Em 1906 o Quartel corre até a Santa Casa e em pouco iria até a Praça Marechal Floriano. Em 1909 começam o Prado e o Bonfim – este logo mal-assombrado com uma passageira defunta que se desfazia aos poucos e entrava, na meia-noite mineira, as portas fechadas do cemitério. Em 1910 está feita a volta de Pernambuco e logo depois completa-se a de Ceará. A primeira saía do Bar do Ponto, tomava Afonso Pena, entrava na rua Pernambuco, subia Cristóvão Colombo (onde ficava o Abrigo Pernambuco), seguia, costeando. O altiplano da Praça da Liberdade, descia Bahia até chegar novamente ao Bar do Ponto. Às vezes ia mais longe porque os bondes deslizavam, sem freios que os contivessem, até os para lá dos Correios. Nessas ocasiões havia sempre cavalheiros e senhoras despedaçados, por pularem dos veículos de freio nos dentes. O que estamos contando era a volta de Pernambuco – via Afonso Pena. Porque quando era via Bahia, o trajeto era inverso e os tobogãs soltavam-se nas ladeiras de Cristóvão Colombo. A volta de Ceará começava no Bar do Ponto, como a outra. Ia por Afonso Pena, mas, em vez de virar à direita, fazia-o para a esquerda, entrando por Guajajaras e tomando Ceará depois de ladear o Colégio Arnaldo. Seguia essa rua até seu encontro com Afonso pena (onde ficava o Abrigo Ceará), descia Paraúna, entrava em Rio Grande do Norte, por esta chegava a Contorno, prosseguia até encontrar Cristóvão Colombo, subi-la, rentear o Palácio e as Secretarias, descer Bahia. Isto era a via Afonso Pena. Porque, como para a volta de Pernambuco – havia também um bonde Ceará, via Bahia. Esses trajetos eram extremamente românticos e permitiam aos namorados passar e repassar nas casas das eleitas janelando; multiplicar essas passagens mediante trajetos retomados quando os via Bahia e via Afonso Pena se encontravam nos abrigos. Esses abrigos eram barracões de madeira por onde se engolfavam as ventanias soltas e as chuvas. (BC, pp. 146-147)



Em seu saudosismo de memorialista, de reevocador de névoas passadas, o autor Nava realça as belezas de outrora, da cidade de sua juventude, ainda cheia das saudades dos funcionários ouro-pretanos, ainda não superpovoada, ainda sem o trânsito caótico, com seu ar parisiense de avenidas largas e boulevards, com abundância de verde e amplidão de horizonte – antes das podas e dos avanços verticais,

A beleza da praça da Estação, a árida subida da Caetés, os oito renques de árvores da Afonso Pena: no centro da avenida corriam duas filas de palmeiras-imperiais, as primeiras sacrificadas. Nos passeios, nas sarjetas, outras filas vegetais. Entre estas e as palmeiras, a teoria gloriosa dos fícus recentemente assassinados. Morte! aos prefeitos, cuja carapaça lhes impede a percepção das paisagens impregnadas do passado das cidades que eles desgovernam. Baldeação no Bar do Ponto. […] Contornava-se a praça do tempo das rosas e do tempo em que diante da Secretaria da Agricultura levantava-se miniatura em cimento do Itacolomi, diante da qual se reuniam em protesto gandiano (todo 12 de dezembro, aniversário da negregada instalação!) os antimudancistas ferrenhos. Saudades do Ouro Preto … Frente àquele Muro das Lamentações, choravam os manos Felicíssimos, [etc] […] Mas … larga essa valsa, Pedro! E toca o teu bonde. […] O bonde continuava e quer em Ceará, quer em Pernambuco – cada esquina era um buquê de meninas, um buquê de moças … Aimorés, Timbiras, Inconfidentes, Bernardo Guimarães. Vinde a mim! ruas do passado, vinde a mim! com vossos nomes de poetas do passado... Rua Gonçalves Dias … Rua Cláudio Manuel … Rua Santa Rita Durão... Onde estais? Ruas dantanho com vossas flores de neve e vossas moças do tempo jadis, Bertas, Beatrizes, Alices e as rainhas Brancas, como lis, cantando serenas com voz de sereia... (BC, pp. 148-49)



Para melhor entendermos a ‘geografia sentimental’ de Nava, precisamos situar Belo Horizonte rememorada também em Chão de Ferro [CF] , onde no Cap. II – Rua Major Ávila – é reevocada a central rua da Bahia, ponto de encontro e de despedida, de pertença e de deslocamento,

Quando se descia Bahia, depois da esquina da Caixa Econômica, se era noite deserta, logo que se punha o pé fora da calçada, no encontro da rua mencionada com Álvares Cabral e Guajajaras, ouviam-se vaias, gemidos e feias gargalhadas saindo do chão. Eram os membros mortos da família do curralense Francisco Cândido Fernandes (cuja velha casa do Cercado tinha sido derrubada para abrir passagem para aqueles logradouros da nova capital – apupando os belorizontinos intrusos). Tudo cessava quando, depois de se passar a casa de Bernardo Monteiro, se punha o pé no passeio do outro quarteirão – o do Diário de Minas, órgão oficial do famigerado Partido Republicano Mineiro. Descendo até a esquina de Paraopeba (depois Augusto de Lima) encontravam-se duas edificações ilustres na história de Belo Horizonte. De um lado, o Grande Hotel. Do outro, o Conselho Deliberativo. Esse palacete, absurdamente manuelino, que seria um dia cantado por Mário de Andrade, abrigava a Biblioteca Municipal que eu logo comecei a frequentar, nas tardes em que não ia encher a família do Dr. Bernardino. (CF, pp. 106-107)



Quando se descia Bahia, depois da esquina da Caixa Econômica, se era noite

Hoje o Conselho Deliberativo – de estilo manuelino - é o Centro Cultural, vulgo Castelinho, antes Câmara Municipal e Museu de Mineralogia (atualmente no Rainha da Sucata, na Praça da Liberdade), cuja biblioteca tem o nome do memoralista Pedro Nava, frequentador e divulgador de tal centro nevrálgico da intelectualidade belorizontina.

Mas continuemos, descendo Bahia. Já a cidade se adensava e o outro quarteirão dava-nos o Colosso, onde debochados comiam e bebiam em caramanchões cobertos de palha; quase em frente, o Café Estrela que nosso grupo ligaria depois à história do Modernismo em Minas; na esquina, no encontro Goiás, Goitacases, Bahia, fronteavam-se a Casa Poni, a Casa Narciso e o Teatro Municipal – hoje Cinema Metrópole. Finalmente era o trecho definitivo, do Cinema Odeon, do Giacomo Alluoto com suas cadeiras de engraxate, seus bilhetes de loteria; da casa do Cônsul da Rússia, depois dos Países Baixos, o sempre amável e cumprimentador Seu Arthur Haas – a cara do Imperador Ferdinando da Bulgária (Bonjour! Jeune homme) e finalmente as esquinas de Afonso Pena, Tupis, com as árvores do Parque, os seis renques das da rua, todos assassinados (dois centrais, de palmeiras, dois dos fícus (saudade), dois das calçadas, a linda Estação de Bondes com suas torrinhas, verde e seu relógio, a Sapataria Central, a Livraria (onde logo eu descobri ao fundo, a gaveta dos livrinhos de putaria e comprei o folheto com as obras-primas de Bernardo Guimarães que são o 'Elixir do Pagé' e 'A Origem do Mênstruo') e mais o 'umbigo do mundo' – o famoso Bar-do-Ponto, cujo nome transbordou de suas portas e passou a designar toda uma zona da cidade. (CF, pp. 107-108)


Em trechos do Capítulo IV – Rua da Bahia - BH ressurge na memória, a partir de certos lugares especiais, de convívio e amizade, estudo e trabalho, num itinerário que reativa antigas paisagens tal uma Madeleine mergulhada em chá – na obra do memorialista francês Marcel Proust – a despertar flashes involuntários, rua após rua, na avenida despojada de árvores e no parque municipal gradativamente reduzido,

Fecho os olhos para recuperar cada detalhes desta época. Belo Horizonte me vem em vagas. Elas me atiram pra lá pra cá, a este, àquele, a cada recanto da cidade e da nossa Serra. Ia a todos com os amigos, ora uns, ora outros, ora todos. Ao Banheiro. Ao bosque da Caixa de Areia, ao Pico, às veredas que subiam até ao muro do Curral. Levantava poeiras de outrora, [...] Pela primeira vez, nessas andanças senti que um passado me seguia e comecei a explorá-lo detalhe por detalhe. Logo uma saudade, saudade de mim, de meus eus sucessivos começou naquela ocasião, uma saudade vácuo como a que tenho de meus mortos e que me surpreendi, dando ao mim mesmo também irrecuperável, como se eu fosse sendo uma enfiada de mortos – eu. Tudo tão recente mas já tão longe e logo deformado. (CF, p. 287)

Jamais poderei esquecer-me de ti Belo Horizonte, de ti nos teus anos vinte. E, se isso acontecer, que, como no salmo, minha mão direita se resseque e que a língua se me pegue no céu da boca. Belo, belo – Belorizonte. Minas – minha confissão. (CF, pp. 306-307)

Nas plantas primitivas de Belo Horizonte o Parque Municipal era um vasto quadrilátero limitado por Mantiqueira; Francisco Sales; pelos logradouros ocupados hoje pelo viaduto Santa Teresa, Rua Assis Chateaubriand; e Afonso Pena. Seus ângulos eram cortados ligeiramente (o que lhe conferia aspecto octogonal) por Bahia, pelo trecho desaparecido do quarteirão limitado por Itambé, Itatiaia, Assis Chateaubriand e Francisco Sales, por Bernardo Monteiro e Carandaí. Hoje ele ocupa a quarta parte do espaço previsto para essa zona verde central e está reduzido ao triângulo demarcado pela Alameda Ezequiel Dias, Avenida dos Andradas e sua velha marca anterior de Afonso Pena. Parabéns aos senhores Prefeitos progressistas. Pêsames à população de Belo Horizonte, particularmente às crianças residentes nos arranha-céus do centro. A invasão foi sendo lenta e sorrateira. (CF, p. 315)




A rua da Bahia, com sua paisagem urbana, é sempre exumada do passado como um umbigo do mundo, de BH enquanto microcosmo, ou cidade-modelo, que se expandia sem controles, inchada pelo êxodo rural e pelo superpovoamento, procurada como abrigo de deslocados e despossuídos, 

Todos os caminhos iam à Rua da Bahia. Da Rua da Bahia partiam vias para os fundos do fim do mundo, para os tramontes dos acabaminas... A simples reta urbana … Mas seria uma reta? Ou antes, a curva? Era a reta, a reta sem tempo, a reta continente dos segredos dos infinitos paralelos. E era a curva. A imarcescível curva, épura dos passos projetados, imanências das ciclóides, círculo infinito… Nós sabíamos, o Carlos [Drummond de Andrade] tinha dito. A Rua da Bahia era uma rua sem princípio nem fim. Descíamos. Cada um de nós era um dos moços do poema. Subíamos. 'Um moço subia a Rua da Bahia... (CF, p. 352)
 


O próximo livro de memórias tem por título Beira-mar [BM] , mas não fala do Rio, fala de Minas Gerais, assim trata-se de uma continuação temática e espacial de Chão de Ferro, no período da BH dos anos 1920. No capítulo 2 [Rua da Bahia], Nava entra em detalhes sobre a chamada caravana paulista, em visita por Minas Gerais, em 1924, com as ilustres presenças dos modernistas Oswald e Mário de Andrade, da pintura Tarsila do Amaral, do poeta franco-suíço Blaise Cendrars (mutilado na Grande Guerra de 1914-18), e acompanhantes. Desta visita resultou o longo poema “Noturno de Belo Horizonte” , de Mário ‘Macunaíma’ de Andrade, com seus versos longos, suas paisagens cubistas e surrealistas, de imagética bizarras e invocatórias. “Maravilha de milhares de brilhos e vidrilhos, / Calma do noturno de Belo Horizonte... / O silêncio fresco desfolha das árvores
E orvalha o jardim só. / Larguezas. / Enormes coágulos de sombra. / A polícia entre rosas..
.”

Da Praça da Liberdade ao Parque Municipal, da zona boêmia ao Bar do Ponto, da Igreja São José ao Quartel militar, do alto do Cruzeiro ao viaduto Santa Teresa, a geografia se estende aos pontos cardeais, colaterais, sentimentais de uma cidade que se expande, deitando tentáculos rumo a serra e o horizonte, a manter um núcleo de referência na parada dos bondes, antes de se dispersarem,

Ponto – porque era o local da Estação dos Bondes. Vejo-a ainda, construção meio de tijolo, meio de madeira, com três entradas sem portas, pintada a óleo e dotada dum torreão para o relógio. Seu verde era semelhante ao dos pistaches e contrastava, qual outra cor, com os verdes dos seis renques de árvores da Avenida Afonso Pena e com os mais numerosos do Parque. Porque a estação debruçava-se sobre ele, naquele ponto de inflexão da rua da Bahia. […] O café chamado Bar do Ponto estava para Belo Horizonte como a Brahma para o Rio. Servia de referência. No Bar do Ponto. Em frente ao Bar do Ponto. Na esquina do Bar do Ponto. Encontros de amigos, encontros de obrigação. (BM, p. 5)

Quem queria ir até as lindes do Grande Bar do Ponto podia descer um pouco de Bahia, renteando o triângulo ocupado pelo Correio antigo. Era justamente o lado onde se abria o portão que dava entrada ao misterioso Colis-Postaux e logo se batia de cara com a reta do Viaduto Santa Teresa. (BM, p. 8)

Quem chegava às larguras da travessia de Espírito Santo e Tamoios sobre a avenida [Afonso Pena] contemplava dali as cercaduras – dum lado, do Templo Protestante e do outro, da Matriz de São José. Essa igreja é bem proporcionada e antigamente suas três torres destacavam-se no céu livre de Belo Horizonte. Hoje ela encolheu, perdeu altura, esmagada pela paliçada de arranha-céus construída nas suas costas. Da via pública subia-se ao adro por escadaria imponente – trinta e oito degraus, interrompidos por três patamares. (BM, p. 9)



As amizades literárias de Nava incluíam os poetas futuristas do chamado Grupo do Estrela, que logo publicariam A Revista, a serem motivos de escândalos entre as gerações conservadoras do meio literário na nova capital. Os moços, que desciam e subiam a rua da Bahia em meditações estéticas e metafísicas, se reuniam no ambiente belle époque do Estrela e depois flanavam pela provinciana capital.

Belo Horizonte era uma capital profundamente quieta e bem-pensante. Amava o soneto, deleitava-se com sua operazinha em tempos de temporada, acatava o Santo Ofício que censurava por sua conta os filmes, suas moças liam Ardel, Delly; a Bibliothèque de ma Fille, a Collection Rose, não conversavam com rapazes e faziam que acreditavam que as crianças pussavam nas hortas entre pés de couve, raminhos de salsa, serralha, bertalha e talos de taioba. Havia uma literatura oficial. Os discursos de suas excelências eram obras antológicas. (BM, p. 199)





Em suas memórias, longas e detalhistas, Pedro Nava, médico e literato, relembra seus estudos de Medicina, seus amigos e colegas médicos, além dos seus passeios na zona boêmia com amigos e literatos. Todo um novo mundo se abria para o jovem interiorano (ele nasceu em Juiz de Fora, tendo vivido certo tempo no Rio de Janeiro, ainda criança) na nova capital, tão profundamente vivida e descrita, marcada com amor e indignação na mente do jovem, que meio século depois vem a resgatá-la em forma de narrativa autobiográfica e historiográfica, além dos dramas pessoais ao abarcar os panoramas coletivos. Afinal, o saudosista memorialista nada é sem sua ‘geografia sentimental’ no xadrez das ruas belorizontinas.













By Leonardo de Magalhaens




junho/2013



















Referências




CHIARA, Ana Cristina. Pedro Nava, um homem no limiar. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001.

LE MOING, Monique. A solidão povoada. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

NAVA, Pedro. Balão Cativo. Memórias 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
(2ª ed, J. Olympio, 1974)

_________ . Chão de Ferro. Memórias 3. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1976.

_________ . Beira-mar. Memórias 4. São Paulo: Ateliê Editorial : Giordano, 2003.

PANICHI, Edna Regina Pugas. Pedro Nava e a construção do texto. Londrina, PR: Eduel; São São Paulo: Ateliê Ed., 2003.




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