Fonte
da imagem:
http://educarparacrescer.abril.com.br/leitura/bau-ossos-402132.shtml
Memória
da cidade no olhar de Pedro Nava
Médico dedicado, poeta bissexto e
romancista postergado, o memorialista Pedro Nava deixou uma obra
extensa e profunda sobre os resgates possíveis do tempo já passado
(e perdido), sobre os caminhos e desvios da vida, sobre os amigos que
se foram e sobre as feridas que não cicatrizam. Tudo descrito em
tentativa de recuperação, de peleja com a saudade.
Sobretudo, Nava deixou um testemunho,
um depoimento sobre o ‘mundo antigo’, sobre a vida no início do
século 20, sobre as cidades em crescimento – Rio de Janeiro, Juiz
de Fora e Belo Horizonte – futuras metrópoles regionais e
nacionais. É um olhar sobre a mudança, sobre o que se conservou na
memória, sobre o que só existe enquanto lembrança. Sua infância
em período conturbado – golpes e revoluções -, seu apego aos
amigos e lugares – uma verdadeira ‘geografia sentimental’ -,
sua denúncia dos mandos e desmandos, em suma, um documento valioso
para retratar meio século de cultura brasileira.
Em nosso breve ensaio vamos nos
concentrar sobre as evocações de Nava quanto à cidade de Belo
Horizonte nos anos 1910 e 1920, imediatamente antes da Revolução
de 1930, época de coronelismo, tenentismo, fraudes eleitorais,
voto de cabresto, alternância Minas-São-Paulo no plano político
num metafórico ‘café-com-leite’, inovação modernista,
polarizações esquerda-direita entre comunistas e integralistas,
quando da consolidação do Stalinismo e da ascensão do Nazismo.
Dentro de tal contexto vamos nos
localizar nas ruas de Belo Horizonte, no Capítulo II – Serra do
Curral – de Balão Cativo [BC], com a mudança da
família de Pedro Nava – de Juiz de Fora para a nova capital
mineira (antiga Cidade de Minas, antes Curral del Rey). Nava morou
com a família em casas nos bairros da Floresta e da Serra, e
frequentava os bares junto aos abrigos de bondes, juntamente com os
literatos Carlos Drummond de Andrade (vindo de Itabira/ MG), Cyro dos
Anjos (vindo de Montes Claros/ MG) e Emílio Moura (natural de Dores
do Indaiá / MG), dentre outros. O volume de memórias Balão
Cativo foi escrito no Rio de Janeiro, entre outubro de 1970 e
junho de 1973, e publicado neste ano, pela José Olympio Editora.
Portanto meio século após as vivências e vicissitudes do jovem
estudante de Medicina.
As personagens relembradas por Nava se
situam numa geografia bem demarcada, em ruas da cidade cercada por
montanhas, ainda sem as ascensões dos arranha-céus, ainda mais
provinciana que metropolitana, aos cidadãos meio deslocados na nova
geometria,
A urbe poeirenta e pobre acabava no
Quartel, na Rua Maranhão, na Avenida Paraúna [atual Av. Getúlio
Vargas], na Rua Tomé de Sousa, na rua dos Tupis, na Avenida Paraná,
no Mercado, no Arrudas, nos leitos da Central e da Oeste. A Avenida
Amazonas só tinha quatro quarteirões e a cidade mandava tímidos
prolongamentos para a Serra, a Barroca, o Calafate, o Bonfim, a
Floresta. Mais tarde vieram as enceintes de Carlos V, a de
Luís XIII, do Dr. Artur Bernardes, do Coronel Cristo, da Olímpia,
do Dr. Melo Viana, da Elza Brunatti, da Petronilha (Petró), do Dr.
Antônio Carlos, da Leonídia (Lió), da sessão Fox no Odeon, dos
porres de cerveja gelada, da decadência do Clube Belo Horizonte e
esplendor do Automóvel Clube, da Universidade, da sua invasão, dum
moço baleado chamado Viana, da retirada do Reitor e da dispersão
dos Pimentéis. Era ainda uma cidade triste, de donzelas
enclausuradas, de estudantes desmandados, de agiotas insaciáveis (o
duto Murta, o gélido Moreira), de funcionários contidos e carentes,
dos primeiros desfalques, das negociatas inaugurais e quase honestas
… Entretanto crescera para além do Cruzeiro, materializara o
círculo da Avenida do Contorno, tomara conta do Barro Preto,
canalizara o Córrego Leitão, asfaltara o Centro e ligava-se, sem
descontinuidade, ao Calafate, ao Carlos Prates, ao Bonfim, à
Lagoinha. Estendeu-se mais ainda, em todas as direções; pulou os
limites dos fermiers généraux, dos interventores da
Ditadura, dos enriquecimentos mirabolantes, dos imensos negócios.
Excedeu a de Thiers, a de Milton Campos (este – dizia Rodrigo – é
um prêmio que Minas não merecia!), a de Juscelino, Bias, Magalhães
Pinto, Israel, está na de Rondon, mas não vai parar! Porque a
cidade sem limites continuará, passará a Baleia, as Mangabeiras, o
Curral, o Rola-Moça, o Pindorama, a Pampulha, a Providência, Santo
Agostinho, a Severa... Está livre dos velhos complexos sexuais do
tempo de Totônio Pacheco, é a mais linda do sertão, a terceira do
Brasil, passou aos pileques de uísque, tem inferninhos, instalou a
livre-fodança, mas jamais, ah! Jamais sacudirá o jugo do velho
crepúsculo, daquela tristeza da tarde morrendo varrida de ventos, da
lembrança submarina dos fícus e dos moços que subiam e desciam a
Rua da Bahia. Não a Rua da Bahia de hoje. A de ontem. A dos anos
vinte. A de todos os tempos, a sem fim no espaço, a inconclusa nos
amanhãs. Nela andarão sempre as sombras de Carlos Drummond de
Andrade, de seus sequazes, cúmplices, amigos, acólitos,
satélites... (BC, pp. 144-45)
Encontramos no texto certa referência
ao protagonista “Totônio Pacheco” do romance (publicado
em 1935) de João Alphonsus de Guimaraens (1901-1944), também
referência a Loira do Bonfim (que figura também na poética de
Drummond de Andrade), quando da expansão das linhas de bonde,
Em 1905 inauguram-se as linhas das
Ruas do chumbo e Pouso Alegre. Estavam lançados os bondes Serra e
Floresta. Em 1906 o Quartel corre até a Santa Casa e em pouco iria
até a Praça Marechal Floriano. Em 1909 começam o Prado e o Bonfim
– este logo mal-assombrado com uma passageira defunta que se
desfazia aos poucos e entrava, na meia-noite mineira, as portas
fechadas do cemitério. Em 1910 está feita a volta de Pernambuco e
logo depois completa-se a de Ceará. A primeira saía do Bar do
Ponto, tomava Afonso Pena, entrava na rua Pernambuco, subia Cristóvão
Colombo (onde ficava o Abrigo Pernambuco), seguia, costeando. O
altiplano da Praça da Liberdade, descia Bahia até chegar novamente
ao Bar do Ponto. Às vezes ia mais longe porque os bondes deslizavam,
sem freios que os contivessem, até os para lá dos Correios. Nessas
ocasiões havia sempre cavalheiros e senhoras despedaçados, por
pularem dos veículos de freio nos dentes. O que estamos contando era
a volta de Pernambuco – via Afonso Pena. Porque quando era
via Bahia, o trajeto era inverso e os tobogãs soltavam-se nas
ladeiras de Cristóvão Colombo. A volta de Ceará começava
no Bar do Ponto, como a outra. Ia por Afonso Pena, mas, em vez de
virar à direita, fazia-o para a esquerda, entrando por Guajajaras e
tomando Ceará depois de ladear o Colégio Arnaldo. Seguia essa rua
até seu encontro com Afonso pena (onde ficava o Abrigo Ceará),
descia Paraúna, entrava em Rio Grande do Norte, por esta chegava a
Contorno, prosseguia até encontrar Cristóvão Colombo, subi-la,
rentear o Palácio e as Secretarias, descer Bahia. Isto era a via
Afonso Pena. Porque, como para a volta de Pernambuco – havia
também um bonde Ceará, via Bahia. Esses trajetos eram
extremamente românticos e permitiam aos namorados passar e repassar
nas casas das eleitas janelando; multiplicar essas passagens mediante
trajetos retomados quando os via Bahia e via Afonso Pena
se encontravam nos abrigos. Esses abrigos eram barracões de madeira
por onde se engolfavam as ventanias soltas e as chuvas. (BC, pp.
146-147)
Em seu saudosismo de memorialista, de
reevocador de névoas passadas, o autor Nava realça as belezas de
outrora, da cidade de sua juventude, ainda cheia das saudades dos
funcionários ouro-pretanos, ainda não superpovoada, ainda sem o
trânsito caótico, com seu ar parisiense de avenidas largas e
boulevards, com abundância de verde e amplidão de horizonte
– antes das podas e dos avanços verticais,
A beleza da praça da Estação, a
árida subida da Caetés, os oito renques de árvores da Afonso Pena:
no centro da avenida corriam duas filas de palmeiras-imperiais, as
primeiras sacrificadas. Nos passeios, nas sarjetas, outras filas
vegetais. Entre estas e as palmeiras, a teoria gloriosa dos fícus
recentemente assassinados. Morte! aos prefeitos, cuja carapaça lhes
impede a percepção das paisagens impregnadas do passado das cidades
que eles desgovernam. Baldeação no Bar do Ponto. […]
Contornava-se a praça do tempo das rosas e do tempo em que diante da
Secretaria da Agricultura levantava-se miniatura em cimento do
Itacolomi, diante da qual se reuniam em protesto gandiano (todo 12 de
dezembro, aniversário da negregada instalação!) os antimudancistas
ferrenhos. Saudades do Ouro Preto … Frente àquele Muro das
Lamentações, choravam os manos Felicíssimos, [etc] […] Mas …
larga essa valsa, Pedro! E toca o teu bonde. […] O bonde continuava
e quer em Ceará, quer em Pernambuco – cada esquina era um buquê
de meninas, um buquê de moças … Aimorés, Timbiras,
Inconfidentes, Bernardo Guimarães. Vinde a mim! ruas do passado,
vinde a mim! com vossos nomes de poetas do passado... Rua Gonçalves
Dias … Rua Cláudio Manuel … Rua Santa Rita Durão... Onde
estais? Ruas dantanho com vossas flores de neve e vossas moças do
tempo jadis, Bertas, Beatrizes, Alices e as rainhas Brancas, como
lis, cantando serenas com voz de sereia... (BC, pp. 148-49)
Para melhor entendermos a ‘geografia
sentimental’ de Nava, precisamos situar Belo Horizonte
rememorada também em Chão de Ferro [CF] , onde no Cap. II
– Rua Major Ávila – é reevocada a central rua da Bahia,
ponto de encontro e de despedida, de pertença e de deslocamento,
Quando se descia Bahia, depois da
esquina da Caixa Econômica, se era noite deserta, logo que se punha
o pé fora da calçada, no encontro da rua mencionada com Álvares
Cabral e Guajajaras, ouviam-se vaias, gemidos e feias gargalhadas
saindo do chão. Eram os membros mortos da família do curralense
Francisco Cândido Fernandes (cuja velha casa do Cercado tinha sido
derrubada para abrir passagem para aqueles logradouros da nova
capital – apupando os belorizontinos intrusos). Tudo cessava
quando, depois de se passar a casa de Bernardo Monteiro, se punha o
pé no passeio do outro quarteirão – o do Diário de Minas, órgão
oficial do famigerado Partido Republicano Mineiro. Descendo até a
esquina de Paraopeba (depois Augusto de Lima) encontravam-se duas
edificações ilustres na história de Belo Horizonte. De um lado, o
Grande Hotel. Do outro, o Conselho Deliberativo. Esse palacete,
absurdamente manuelino, que seria um dia cantado por Mário de
Andrade, abrigava a Biblioteca Municipal que eu logo comecei a
frequentar, nas tardes em que não ia encher a família do Dr.
Bernardino. (CF, pp. 106-107)
Quando se descia Bahia, depois da
esquina da Caixa Econômica, se era noite
Hoje o Conselho Deliberativo – de
estilo manuelino - é o Centro Cultural, vulgo Castelinho, antes
Câmara Municipal e Museu de Mineralogia (atualmente no Rainha da
Sucata, na Praça da Liberdade), cuja biblioteca tem o nome do
memoralista Pedro Nava, frequentador e divulgador de tal centro
nevrálgico da intelectualidade belorizontina.
Mas continuemos, descendo Bahia. Já a
cidade se adensava e o outro quarteirão dava-nos o Colosso,
onde debochados comiam e bebiam em caramanchões cobertos de palha;
quase em frente, o Café Estrela que nosso grupo ligaria
depois à história do Modernismo em Minas; na esquina, no encontro
Goiás, Goitacases, Bahia, fronteavam-se a Casa Poni, a Casa
Narciso e o Teatro Municipal – hoje Cinema Metrópole.
Finalmente era o trecho definitivo, do Cinema Odeon, do
Giacomo Alluoto com suas cadeiras de engraxate, seus bilhetes de
loteria; da casa do Cônsul da Rússia, depois dos Países Baixos, o
sempre amável e cumprimentador Seu Arthur Haas – a cara do
Imperador Ferdinando da Bulgária (Bonjour! Jeune homme) e finalmente
as esquinas de Afonso Pena, Tupis, com as árvores do Parque, os seis
renques das da rua, todos assassinados (dois centrais, de palmeiras,
dois dos fícus (saudade), dois das calçadas, a linda Estação de
Bondes com suas torrinhas, verde e seu relógio, a Sapataria Central,
a Livraria (onde logo eu descobri ao fundo, a gaveta dos livrinhos de
putaria e comprei o folheto com as obras-primas de Bernardo Guimarães
que são o 'Elixir do Pagé' e 'A Origem do Mênstruo') e mais o
'umbigo do mundo' – o famoso Bar-do-Ponto, cujo nome
transbordou de suas portas e passou a designar toda uma zona da
cidade. (CF, pp. 107-108)
Em trechos do Capítulo IV – Rua
da Bahia - BH ressurge na memória, a partir de certos lugares
especiais, de convívio e amizade, estudo e trabalho, num itinerário
que reativa antigas paisagens tal uma Madeleine mergulhada em chá –
na obra do memorialista francês Marcel Proust – a despertar
flashes involuntários, rua após rua, na avenida despojada de
árvores e no parque municipal gradativamente reduzido,
Fecho os olhos para recuperar cada
detalhes desta época. Belo Horizonte me vem em vagas. Elas me atiram
pra lá pra cá, a este, àquele, a cada recanto da cidade e da
nossa Serra. Ia a todos com os amigos, ora uns, ora outros, ora
todos. Ao Banheiro. Ao bosque da Caixa de Areia, ao Pico, às veredas
que subiam até ao muro do Curral. Levantava poeiras de outrora,
[...] Pela primeira vez, nessas andanças senti que um passado me
seguia e comecei a explorá-lo detalhe por detalhe. Logo uma saudade,
saudade de mim, de meus eus sucessivos começou naquela ocasião, uma
saudade vácuo como a que tenho de meus mortos e que me surpreendi,
dando ao mim mesmo também irrecuperável, como se eu fosse sendo uma
enfiada de mortos – eu. Tudo tão recente mas já tão longe e logo
deformado. (CF, p. 287)
Jamais poderei esquecer-me de ti Belo
Horizonte, de ti nos teus anos vinte. E, se isso acontecer, que, como
no salmo, minha mão direita se resseque e que a língua se me pegue
no céu da boca. Belo, belo – Belorizonte. Minas – minha
confissão. (CF, pp. 306-307)
Nas plantas primitivas de Belo
Horizonte o Parque Municipal era um vasto quadrilátero
limitado por Mantiqueira; Francisco Sales; pelos logradouros ocupados
hoje pelo viaduto Santa Teresa, Rua Assis Chateaubriand; e Afonso
Pena. Seus ângulos eram cortados ligeiramente (o que lhe conferia
aspecto octogonal) por Bahia, pelo trecho desaparecido do quarteirão
limitado por Itambé, Itatiaia, Assis Chateaubriand e Francisco
Sales, por Bernardo Monteiro e Carandaí. Hoje ele ocupa a quarta
parte do espaço previsto para essa zona verde central e está
reduzido ao triângulo demarcado pela Alameda Ezequiel Dias, Avenida
dos Andradas e sua velha marca anterior de Afonso Pena. Parabéns aos
senhores Prefeitos progressistas. Pêsames à população de Belo
Horizonte, particularmente às crianças residentes nos arranha-céus
do centro. A invasão foi sendo lenta e sorrateira. (CF, p. 315)
A rua da Bahia, com sua paisagem
urbana, é sempre exumada do passado como um umbigo do mundo, de BH
enquanto microcosmo, ou cidade-modelo, que se expandia sem controles,
inchada pelo êxodo rural e pelo superpovoamento, procurada como
abrigo de deslocados e despossuídos,
Todos os caminhos iam à Rua da Bahia.
Da Rua da Bahia partiam vias para os fundos do fim do mundo, para os
tramontes dos acabaminas... A simples reta urbana … Mas seria uma
reta? Ou antes, a curva? Era a reta, a reta sem tempo, a reta
continente dos segredos dos infinitos paralelos. E era a curva. A
imarcescível curva, épura dos passos projetados, imanências das
ciclóides, círculo infinito… Nós sabíamos, o Carlos [Drummond
de Andrade] tinha dito. A Rua da Bahia era uma rua sem princípio nem
fim. Descíamos. Cada um de nós era um dos moços do poema.
Subíamos. 'Um moço subia a Rua da Bahia... (CF, p. 352)
O próximo livro de memórias tem por
título Beira-mar [BM] , mas não fala do Rio, fala de Minas
Gerais, assim trata-se de uma continuação temática e espacial de
Chão de Ferro, no período da BH dos anos 1920. No capítulo
2 [Rua da Bahia], Nava entra em detalhes sobre a chamada caravana
paulista, em visita por Minas Gerais, em 1924, com as ilustres
presenças dos modernistas Oswald e Mário de Andrade, da pintura
Tarsila do Amaral, do poeta franco-suíço Blaise Cendrars (mutilado
na Grande Guerra de 1914-18), e acompanhantes. Desta visita resultou
o longo poema “Noturno de Belo Horizonte” , de Mário
‘Macunaíma’ de Andrade, com seus versos longos, suas
paisagens cubistas e surrealistas, de imagética bizarras e
invocatórias. “Maravilha de milhares de brilhos e vidrilhos, /
Calma do noturno de Belo Horizonte... / O silêncio fresco desfolha
das árvores
E orvalha o jardim só. / Larguezas. / Enormes coágulos de sombra. / A polícia entre rosas...”
E orvalha o jardim só. / Larguezas. / Enormes coágulos de sombra. / A polícia entre rosas...”
Da Praça da Liberdade ao Parque
Municipal, da zona boêmia ao Bar do Ponto, da Igreja São
José ao Quartel militar, do alto do Cruzeiro ao viaduto Santa
Teresa, a geografia se estende aos pontos cardeais, colaterais,
sentimentais de uma cidade que se expande, deitando tentáculos rumo
a serra e o horizonte, a manter um núcleo de referência na parada
dos bondes, antes de se dispersarem,
Ponto – porque era o local da
Estação dos Bondes. Vejo-a ainda, construção meio de tijolo, meio
de madeira, com três entradas sem portas, pintada a óleo e dotada
dum torreão para o relógio. Seu verde era semelhante ao dos
pistaches e contrastava, qual outra cor, com os verdes dos seis
renques de árvores da Avenida Afonso Pena e com os mais numerosos do
Parque. Porque a estação debruçava-se sobre ele, naquele ponto de
inflexão da rua da Bahia. […] O café chamado Bar do Ponto
estava para Belo Horizonte como a Brahma para o Rio. Servia de
referência. No Bar do Ponto. Em frente ao Bar do Ponto. Na esquina
do Bar do Ponto. Encontros de amigos, encontros de obrigação. (BM,
p. 5)
Quem queria ir até as lindes do
Grande Bar do Ponto podia descer um pouco de Bahia, renteando o
triângulo ocupado pelo Correio antigo. Era justamente o lado onde se
abria o portão que dava entrada ao misterioso Colis-Postaux e
logo se batia de cara com a reta do Viaduto Santa Teresa. (BM, p. 8)
Quem chegava às larguras da travessia
de Espírito Santo e Tamoios sobre a avenida [Afonso Pena]
contemplava dali as cercaduras – dum lado, do Templo Protestante e
do outro, da Matriz de São José. Essa igreja é bem proporcionada e
antigamente suas três torres destacavam-se no céu livre de Belo
Horizonte. Hoje ela encolheu, perdeu altura, esmagada pela paliçada
de arranha-céus construída nas suas costas. Da via pública
subia-se ao adro por escadaria imponente – trinta e oito degraus,
interrompidos por três patamares. (BM, p. 9)
As amizades literárias de Nava
incluíam os poetas futuristas do chamado Grupo do Estrela,
que logo publicariam A Revista, a serem motivos de escândalos
entre as gerações conservadoras do meio literário na nova capital.
Os moços, que desciam e subiam a rua da Bahia em meditações
estéticas e metafísicas, se reuniam no ambiente belle époque
do Estrela e depois flanavam pela provinciana capital.
Belo Horizonte era uma capital
profundamente quieta e bem-pensante. Amava o soneto, deleitava-se com
sua operazinha em tempos de temporada, acatava o Santo Ofício que
censurava por sua conta os filmes, suas moças liam Ardel, Delly; a
Bibliothèque de ma Fille, a Collection Rose, não
conversavam com rapazes e faziam que acreditavam que as crianças
pussavam nas hortas entre pés de couve, raminhos de salsa, serralha,
bertalha e talos de taioba. Havia uma literatura oficial. Os
discursos de suas excelências eram obras antológicas. (BM, p. 199)
Em suas memórias, longas e
detalhistas, Pedro Nava, médico e literato, relembra seus estudos de
Medicina, seus amigos e colegas médicos, além dos seus passeios na
zona boêmia com amigos e literatos. Todo um novo mundo se abria para
o jovem interiorano (ele nasceu em Juiz de Fora, tendo vivido certo
tempo no Rio de Janeiro, ainda criança) na nova capital, tão
profundamente vivida e descrita, marcada com amor e indignação na
mente do jovem, que meio século depois vem a resgatá-la em forma de
narrativa autobiográfica e historiográfica, além dos dramas
pessoais ao abarcar os panoramas coletivos. Afinal, o saudosista
memorialista nada é sem sua ‘geografia sentimental’ no xadrez
das ruas belorizontinas.
By
Leonardo de Magalhaens
junho/2013
Referências
CHIARA,
Ana Cristina. Pedro Nava, um homem no limiar. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2001.
LE
MOING, Monique. A solidão povoada. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1996.
NAVA,
Pedro. Balão Cativo. Memórias 2. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986.
(2ª
ed, J. Olympio, 1974)
_________ . Chão de Ferro.
Memórias 3. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1976.
_________ . Beira-mar. Memórias 4.
São Paulo: Ateliê Editorial : Giordano, 2003.
PANICHI,
Edna Regina Pugas. Pedro Nava e a construção do texto.
Londrina, PR: Eduel; São São Paulo: Ateliê Ed., 2003.
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário