terça-feira, 13 de maio de 2014

2 textos de Gustavo Czekster






Gustavo Melo Czekster


POR  UMA  LITERATURA  MAIS  FEIA

Por ossos do ofício, estou lendo muita literatura contemporânea. Não tem sido uma experiência agradável. Quanto mais leio a produção atual, mais retorno aos clássicos. Sinto saudade quase física de ler uma obra que não esteja submetida às normas das políticas editoriais e do lucro fácil. Vontade de ler literatura, e não livros.

Estou cansado de livros bonitos. Sim, é sério. Livros com capas lindas, com editorações fantásticas, com letras e recursos gráficos que são dignos de figurarem em galerias de arte. Em alguns momentos, os recursos são tão fantásticos que chego a me desconcentrar da história. E se existe algo trágico que aprendi é que, quanto mais bonito o livro, mais frágil e inconstante é a sua trama. Se eu quisesse ver uma escultura ou uma pintura, iria a um museu, e não compraria um livro, mas respeito quem mata dois coelhos com uma única cajadada estética.

Se a beleza se limitasse às produções gráficas, seria algo possível de se sobreviver. Sei que as editoras precisam atrair leitores, e fazer capas maravilhosas é parte desta sedução. Não sou tão ingênuo a ponto de achar que a literatura se sustenta sem o mercado e suas tarefas árduas de fascinar e encantar consumidores.

O que me causa desconforto é que os livros também possuem conteúdos lindos: as histórias são perfeitas, milimetricamente corrigidas e irretocáveis. Quem sabe técnica literária ou teoria consegue ver com clareza as escolhas narrativas do autor, o motivo da personagem principal ser uma criança ou um rapaz da classe média, a razão do tempo da narrativa ser no presente ou no futuro, a escolha do cenário urbano ou rural. São livros que não mexem com o leitor e o respeitam, talvez até demais. Ler também é ser desafiado pelo autor e pela visão do mundo que ele descreve, e os livros atuais evitam confrontar o leitor, como se ele fosse feito de cristal. São obras que morrem de medo do público, temendo que ele se desconcentre em alguma linha, em alguma troca de parágrafo, em algum desagrado com o fim abrupto de uma frase.

Então chegamos no pior problema de todos. Eu chamo de preguiça autoral, mas pode ser considerado como uma espécie de covardia. Os escritores tecem narrativas burocráticas e sem grandes novidades criativas. Entre contar a história que querem e aquela que o mercado deseja, optam pela segunda alternativa e se acomodam. Suas tramas são perfeitas e edificantes; impossível chegar ao final de um livro sem que alguma lição de vida não encha nossos olhos de lágrimas. Lembrando daquilo que falou sobre catarse e epifania, Aristóteles levantaria para aplaudir de pé, sem sufocar os soluços. As histórias são lindas, e qualquer ser humano se sentiria mais elevado por experimentar sentimentos tão dignos.

No entanto, isto não é arte. O que está matando a literatura contemporânea é a beleza. O excesso de beleza transforma o mundo todo em um local anódino e sem sentimentos. De tanto tentar agradar o público com uma overdose estética representada pelo aspecto físico do livro, acrescido de construções técnicas nada ousadas e de tramas superficiais, os livros estão todos iguais e sem alma.

Facilmente esquecíveis. São cascas desprovidas de essência, e não existe nada mais irritante do que ler uma história em que se percebe que o autor estava mais preocupado com as susceptibilidades do leitor do que com a sua trama.

Nietzsche abordou este tema, quando, discorrendo sobre a arte da alma feia, escreveu: “Traça-se à arte limites muito estreitos, se se exige que nela só se possa exprimir a alma ordenada, moralmente equilibrada. Como nas artes plásticas, assim também na música e na poesia há uma arte da alma feia, ao lado das belas almas; e os efeitos mais poderosos da arte, quebrar as almas, mover as pedras e transformar os animais em homens, talvez tenha sido precisamente essa arte que mais os conseguiu”.

A literatura não foi feita para ser bonita. A arte necessita do feio, do desagradável, do grotesco, do repugnante, do malfeito. A beleza eleva o espírito, mas a feiura nos fala a verdade. Qualquer um pode escrever um livro lindo, mas poucos conseguem fazer um livro feio e verdadeiro. Talvez por desconhecimento de conceitos básicos, alguns autores buscam o feio da forma mais primária possível, qual seja, tratar de temas revoltantes e de fácil apelo popular, encher as obras de palavrões e descrições chulas de sexo ou distorcer a linguagem com a utilização de termos usados no dia a dia. A simples ideia de usar imagens ou itens feios para fazer uma “arte feia” envolve uma estilização do próprio conceito de beleza e, pior ainda, um viés muito pessoal daquilo que o autor pensa ser feio. Toda vez que leio obras que tentam abordar temas considerados feios me passa a desagradável impressão de que, ao tentar transformar o feio em arte, ele se torna esteticamente apreciável e, por conseguinte, falso como uma nota de três reais.

A literatura feia não trata de assuntos feios. É fiel à sua trama e à visão de mundo do autor; ela desconsidera o leitor, quer afundar as mãos na realidade e mostrar a angústia que se esconde atrás da fricção de cada átomo que forma o mundo. Charles Baudelaire é horrível; os poemas dele são detestáveis e, por isto mesmo, inesquecíveis e brilhantes. Chorderlos de Laclos escreveu um livro abominável, colocando toda a podridão da alma humana atrás de adjetivos e cenários de extrema beleza. William Faulkner possui uma linguagem irritante, mas, quando a compreensão falha, alguma corda desconhecida no mais fundo do leitor consegue decodificar aquele amontoado de letras e uma sinfonia poderosa surge no meio do deserto.

Os escritores (e o mercado) superestimam o leitor, dando-lhe mais importância e carinho do que ele merece. O leitor não sabe o que quer; prova disto é que boa parte das maiores obras de arte só foram reconhecidas depois da morte do seu criador. O autor nunca pode afastar o olho da sua trama, não pode deixar ela escapar, por mais sedutores que sejam os gritos e chamados dos leitores que lhe cercam. A literatura feia é aquela que não dá atenção alguma para o leitor: ela não é César entrando em Roma em triunfo, coroa de louros sobre a cabeça, recebendo aplausos e gritos de júbilo; a verdadeira literatura é o anônimo centurião que, sujo de barro e de sangue dos inimigos, arranca a cabeça do rei adversário com um golpe do gládio e, com este gesto, vence a guerra inteira.

Gustavo Czekster - 20/04/2014








O roubo impossível


Semana passada fui acusado de roubar o meu próprio livro.

Como geralmente estou carregando e transportando livros de um lado para o outro, tenho o desagradável hábito de, às vezes, entrar em livrarias esquecido de que estou com um deles nas mãos. Este fato subverte a ordem natural das coisas: as pessoas tiram livros de livrarias, não os levam para o seu interior.

Estava com meu livro, levando-o para uma pessoa, e entrei na livraria Saraiva. Quando fui sair, sem ter achado aquele que buscava, os seguranças se aproximaram e pediram para que eu devolvesse o que estava nas minhas mãos.

Argumentei que o livro me pertencia. Os dois seguranças trocaram olhares, sem acreditar muito nas minhas palavras: se o livro era meu, por que eu estava levando-o para dar uma volta justo na livraria? Para ver seus irmãos aprisionados? Mostrei o interior do livro, onde não estava nenhum selo identificador da Saraiva, mas eles disseram que os livros recentes não eram cadastrados. Mostrei que a porta não buzinou quando eu passei com o livro, eles contra-argumentaram que nem todos os livros apitam quando passam pela porta.

Estava sem ideias do que dizer quando resolvi apelar para o último argumento: “o livro é meu mesmo, fui eu quem o escrevi”.

Descrença foi a primeira reação. “Como assim, tu escreveu este livro?”. Eu concordei. Nos olhares de absoluto descrédito que os seguranças trocaram entre si, percebi que eles nunca imaginaram que, por trás de cada livro, existe uma pessoa de carne e espírito que o escreveu. Os livros surgem na livraria, são etiquetados, manuseados e vendidos, mas a ideia de um livro sair de um homem de carne e osso – não uma figura oculta nas sombras, um Verbo semovente – era quase ficção científica. Um deles – que parecia o mais paternal – deu uma risadinha e perguntou: “Se tu escreveu mesmo, por qual motivo sairia por aí carregando o próprio livro, se já sabe toda a história dele?”

Diante de tal encruzilhada, onde deveria escolher entre ser o ladrão de um livro que me pertence ou o autor neurótico que passeia por livrarias carregando a própria obra, resolvi a situação como deveria ter agido desde o começo: identifiquei-me formalmente com a minha carteira da OAB e deixei a magia e o entendimento se espalharem pelo mundo diante de tal visão. Pediram-me desculpas, mudaram os meus títulos (virei “senhor” e “doutor” em questão de segundos) e me liberaram.

Longe de irritar, a situação me divertiu. Como alguém faz para provar que é ele mesmo? Um documento não parece ser um meio muito confiável. E como um escritor faz para demonstrar que é um escritor? Senta em uma cadeira e escreve um parágrafo que as pessoas devem dizer se é literatura ou não? Fala sobre as vicissitudes de Hamlet ou das glórias de Aquiles? Usa palavras empoladas e de difícil entendimento? Se pedissem para dizer um trecho do meu livro, eu estaria em uma bela enrascada, pois já aconteceu de citarem partes do que escrevi, eu elogiar e perguntar de onde a pessoa tinha retirado a referência… Não sei como é ter cara de escritor, mas definitivamente não tenho.

Quando me perguntam por qual motivo escrevo, a resposta é simples: escrevo as histórias que gostaria de ler. Tenho o sonho do esquecimento. Um dia, irei numa livraria, pegarei o meu próprio livro, folhearei as suas páginas e pensarei “é exatamente isto que sempre sonhei em ler!”. Será o momento mais feliz de todos, o dia em que conseguir esquecer quem fui.

O meu leitor favorito, aquele com quem sonho e escrevo para ele, sou eu mesmo.
Enquanto a memória ficar me atormentando, a felicidade é impossível. Por isto escrevo bastante, talvez o esquecimento venha mais rápido. Ainda assim, não descarto a hipótese de, um dia, ser preso tentando libertar meu livro de alguma livraria ou biblioteca. É o único roubo que vai valer a pena: um homem recapturando a sua verdadeira identidade através das palavras que deixou para trás como migalhas a marcarem o caminho.

Eu não escrevo histórias; estou deixando rastros.


Gustavo Czekster




mais info em








Nenhum comentário:

Postar um comentário