Gustavo
Melo Czekster
POR
UMA LITERATURA MAIS FEIA
Por
ossos do ofício, estou lendo muita literatura contemporânea. Não
tem sido uma experiência agradável. Quanto mais leio a produção
atual, mais retorno aos clássicos. Sinto saudade quase física de
ler uma obra que não esteja submetida às normas das políticas
editoriais e do lucro fácil. Vontade de ler literatura, e não
livros.
Estou
cansado de livros bonitos. Sim, é sério. Livros com capas lindas,
com editorações fantásticas, com letras e recursos gráficos que
são dignos de figurarem em galerias de arte. Em alguns momentos, os
recursos são tão fantásticos que chego a me desconcentrar da
história. E se existe algo trágico que aprendi é que, quanto mais
bonito o livro, mais frágil e inconstante é a sua trama. Se eu
quisesse ver uma escultura ou uma pintura, iria a um museu, e não
compraria um livro, mas respeito quem mata dois coelhos com uma única
cajadada estética.
Se
a beleza se limitasse às produções gráficas, seria algo possível
de se sobreviver. Sei que as editoras precisam atrair leitores, e
fazer capas maravilhosas é parte desta sedução. Não sou tão
ingênuo a ponto de achar que a literatura se sustenta sem o mercado
e suas tarefas árduas de fascinar e encantar consumidores.
O
que me causa desconforto é que os livros também possuem conteúdos
lindos: as histórias são perfeitas, milimetricamente corrigidas e
irretocáveis. Quem sabe técnica literária ou teoria consegue ver
com clareza as escolhas narrativas do autor, o motivo da personagem
principal ser uma criança ou um rapaz da classe média, a razão do
tempo da narrativa ser no presente ou no futuro, a escolha do cenário
urbano ou rural. São livros que não mexem com o leitor e o
respeitam, talvez até demais. Ler também é ser desafiado pelo
autor e pela visão do mundo que ele descreve, e os livros atuais
evitam confrontar o leitor, como se ele fosse feito de cristal. São
obras que morrem de medo do público, temendo que ele se desconcentre
em alguma linha, em alguma troca de parágrafo, em algum desagrado
com o fim abrupto de uma frase.
Então
chegamos no pior problema de todos. Eu chamo de preguiça autoral,
mas pode ser considerado como uma espécie de covardia. Os escritores
tecem narrativas burocráticas e sem grandes novidades criativas.
Entre contar a história que querem e aquela que o mercado deseja,
optam pela segunda alternativa e se acomodam. Suas tramas são
perfeitas e edificantes; impossível chegar ao final de um livro sem
que alguma lição de vida não encha nossos olhos de lágrimas.
Lembrando daquilo que falou sobre catarse e epifania, Aristóteles
levantaria para aplaudir de pé, sem sufocar os soluços. As
histórias são lindas, e qualquer ser humano se sentiria mais
elevado por experimentar sentimentos tão dignos.
No
entanto, isto não é arte. O que está matando a literatura
contemporânea é a beleza. O excesso de beleza transforma o mundo
todo em um local anódino e sem sentimentos. De tanto tentar agradar
o público com uma overdose estética representada pelo aspecto
físico do livro, acrescido de construções técnicas nada ousadas e
de tramas superficiais, os livros estão todos iguais e sem alma.
Facilmente
esquecíveis. São cascas desprovidas de essência, e não existe
nada mais irritante do que ler uma história em que se percebe que o
autor estava mais preocupado com as susceptibilidades do leitor do
que com a sua trama.
Nietzsche
abordou este tema, quando, discorrendo sobre a arte da alma feia,
escreveu: “Traça-se à arte limites muito estreitos, se se
exige que nela só se possa exprimir a alma ordenada, moralmente
equilibrada. Como nas artes plásticas, assim também na música e na
poesia há uma arte da alma feia, ao lado das belas almas; e os
efeitos mais poderosos da arte, quebrar as almas, mover as pedras e
transformar os animais em homens, talvez tenha sido precisamente essa
arte que mais os conseguiu”.
A
literatura não foi feita para ser bonita. A arte necessita do feio,
do desagradável, do grotesco, do repugnante, do malfeito. A beleza
eleva o espírito, mas a feiura nos fala a verdade. Qualquer um pode
escrever um livro lindo, mas poucos conseguem fazer um livro feio e
verdadeiro. Talvez por desconhecimento de conceitos básicos, alguns
autores buscam o feio da forma mais primária possível, qual seja,
tratar de temas revoltantes e de fácil apelo popular, encher as
obras de palavrões e descrições chulas de sexo ou distorcer a
linguagem com a utilização de termos usados no dia a dia. A simples
ideia de usar imagens ou itens feios para fazer uma “arte feia”
envolve uma estilização do próprio conceito de beleza e, pior
ainda, um viés muito pessoal daquilo que o autor pensa ser feio.
Toda vez que leio obras que tentam abordar temas considerados feios
me passa a desagradável impressão de que, ao tentar transformar o
feio em arte, ele se torna esteticamente apreciável e, por
conseguinte, falso como uma nota de três reais.
A
literatura feia não trata de assuntos feios. É fiel à sua trama e
à visão de mundo do autor; ela desconsidera o leitor, quer afundar
as mãos na realidade e mostrar a angústia que se esconde atrás da
fricção de cada átomo que forma o mundo. Charles Baudelaire é
horrível; os poemas dele são detestáveis e, por isto mesmo,
inesquecíveis e brilhantes. Chorderlos de Laclos escreveu um livro
abominável, colocando toda a podridão da alma humana atrás de
adjetivos e cenários de extrema beleza. William Faulkner possui uma
linguagem irritante, mas, quando a compreensão falha, alguma corda
desconhecida no mais fundo do leitor consegue decodificar aquele
amontoado de letras e uma sinfonia poderosa surge no meio do deserto.
Os
escritores (e o mercado) superestimam o leitor, dando-lhe mais
importância e carinho do que ele merece. O leitor não sabe o que
quer; prova disto é que boa parte das maiores obras de arte só
foram reconhecidas depois da morte do seu criador. O autor nunca pode
afastar o olho da sua trama, não pode deixar ela escapar, por mais
sedutores que sejam os gritos e chamados dos leitores que lhe cercam.
A literatura feia é aquela que não dá atenção alguma para o
leitor: ela não é César entrando em Roma em triunfo, coroa de
louros sobre a cabeça, recebendo aplausos e gritos de júbilo; a
verdadeira literatura é o anônimo centurião que, sujo de barro e
de sangue dos inimigos, arranca a cabeça do rei adversário com um
golpe do gládio e, com este gesto, vence a guerra inteira.
…
O
roubo impossível
Semana
passada fui acusado de roubar o meu próprio livro.
Como
geralmente estou carregando e transportando livros de um lado para o
outro, tenho o desagradável hábito de, às vezes, entrar em
livrarias esquecido de que estou com um deles nas mãos. Este
fato subverte a ordem natural das coisas: as pessoas tiram livros de
livrarias, não os levam para o seu interior.
Estava
com meu livro, levando-o para uma pessoa, e entrei na livraria
Saraiva. Quando fui sair, sem ter achado aquele que buscava, os
seguranças se aproximaram e pediram para que eu devolvesse o que
estava nas minhas mãos.
Argumentei
que o livro me pertencia. Os dois seguranças trocaram olhares, sem
acreditar muito nas minhas palavras: se o livro era meu, por que eu
estava levando-o para dar uma volta justo na livraria? Para ver seus
irmãos aprisionados? Mostrei o interior do livro, onde não estava
nenhum selo identificador da Saraiva, mas eles disseram que os livros
recentes não eram cadastrados. Mostrei que a porta não buzinou
quando eu passei com o livro, eles contra-argumentaram que nem todos
os livros apitam quando passam pela porta.
Estava
sem ideias do que dizer quando resolvi apelar para o último
argumento: “o livro é meu mesmo, fui eu quem o escrevi”.
Descrença
foi a primeira reação. “Como assim, tu escreveu este livro?”.
Eu concordei. Nos olhares de absoluto descrédito que os seguranças
trocaram entre si, percebi que eles nunca imaginaram que, por trás
de cada livro, existe uma pessoa de carne e espírito que o escreveu.
Os livros surgem na livraria, são etiquetados, manuseados e
vendidos, mas a ideia de um livro sair de um homem de carne e osso –
não uma figura oculta nas sombras, um Verbo semovente – era quase
ficção científica. Um deles – que parecia o mais paternal –
deu uma risadinha e perguntou: “Se tu escreveu mesmo, por qual
motivo sairia por aí carregando o próprio livro, se já sabe toda a
história dele?”
Diante
de tal encruzilhada, onde deveria escolher entre ser o ladrão
de um livro que me pertence ou o autor neurótico que passeia por
livrarias carregando a própria obra, resolvi a situação como
deveria ter agido desde o começo: identifiquei-me formalmente com a
minha carteira da OAB e deixei a magia e o entendimento se
espalharem pelo mundo diante de tal visão. Pediram-me desculpas,
mudaram os meus títulos (virei “senhor” e “doutor” em
questão de segundos) e me liberaram.
Longe
de irritar, a situação me divertiu. Como alguém faz para provar
que é ele mesmo? Um documento não parece ser um meio muito
confiável. E como um escritor faz para demonstrar que é um
escritor? Senta em uma cadeira e escreve um parágrafo que as pessoas
devem dizer se é literatura ou não? Fala sobre as vicissitudes de
Hamlet ou das glórias de Aquiles? Usa palavras empoladas e de
difícil entendimento? Se pedissem para dizer um trecho do meu livro,
eu estaria em uma bela enrascada, pois já aconteceu de citarem
partes do que escrevi, eu elogiar e perguntar de onde a pessoa tinha
retirado a referência… Não sei como é ter cara de escritor, mas
definitivamente não tenho.
Quando
me perguntam por qual motivo escrevo, a resposta é simples: escrevo
as histórias que gostaria de ler. Tenho o sonho do esquecimento. Um
dia, irei numa livraria, pegarei o meu próprio livro, folhearei as
suas páginas e pensarei “é exatamente isto que sempre sonhei em
ler!”. Será o momento mais feliz de todos, o dia em que conseguir
esquecer quem fui.
O
meu leitor favorito, aquele com quem sonho e escrevo para ele, sou eu
mesmo.
Enquanto
a memória ficar me atormentando, a felicidade é impossível. Por
isto escrevo bastante, talvez o esquecimento venha mais rápido.
Ainda assim, não descarto a hipótese de, um dia, ser preso tentando
libertar meu livro de alguma livraria ou biblioteca. É o único
roubo que vai valer a pena: um homem recapturando a sua verdadeira
identidade através das palavras que deixou para trás como migalhas
a marcarem o caminho.
Eu
não escrevo histórias; estou deixando rastros.
Gustavo
Czekster
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