segunda-feira, 13 de maio de 2013

Sociologias (ou: conversa com meu professor) - conto LdeM






Sociologias (ou: Conversa com meu professor)


Isso foi o que o Thalis me contou. Vou anotar tudo. Ele fala demais, eu vou resumir. Vou ouvindo Everyday is like Sunday” do Morrissey. Vai ser um conto. Isso. Ordenar as ideias, direto ao ponto. Para ele não dizer que mulher é que fala demais.

Thalis recebe um telefonema de um amigo. O Denio. Sobre um documentário lá no Palácio das Artes. Sobre a África, cultura africana, literatura.

Era uma noite chuvosa. E Thalis está sem carro, logo vai de ônibus. E ele vai e erra o ônibus, não era o itinerário da Afonso Pena, mas o da Amazonas. Foi isso. Quando ele percebeu ele já estava ao lado da praça Raul Soares. Desceu. Tratou de atravessar a praça, sozinho sozinho, a admirar o chafariz, as silhuetas dos edifícios, o letreiro no alto do Edifício JK, quantas horas, etc.

Aí o Thalis segue a Augusto de Lima, e vai que vai, a admirar o ar greco-romano do Minascentro, os reflexos no lençol d'água, as palmeiras, etc. E as ladies e os gentlemen junto às colunas e pilares. Era noite de gala. Formatura, certamente.

Quem é o Thalis? Um professor de História. Mestrado em História do Século 20. O chamado 'Era dos Extremos'. Um sujeito de classe média, solteirão, por mais que tenha alunas de olho nele. Não gosta de pobreza e despreza a riqueza. Ou melhor, não quer que os pobres continuem pobres, não quer dever nada aos ricos. Gostaria que o mundo fosse mais uniforme economicamente. É um socialista reformista – não apoiaria qualquer revolução. Entenda-se: algum levante armado, subversivo. Ele acredita nos meios políticos. É um cara com pé no chão. Seu passado é que é utopista.

Pois o Thalis seguia a Augusto de Lima, avenida da Imprensa Oficial, e do Edifício Maletta, por isso ele olha ao redor, procura conhecidos nos bares. Algum boêmio a iniciar a jornada noturna de bar em bar. Do Edifício Maletta ele poderia chegar à Rua da Bahia, aos bares, a ladeira que sobe para a Praça da Liberdade, passando pela porta da Academia de Letras. Mas ele segue rumo a Faculdade de Direito, passa diante do 'Castelinho', hoje um Centro de Cultura. Algo de gótico e exagerado no mini-castelo que já foi Câmara Municipal e Museu de Minerologia. Cartão-postal, claro.

Thalis passa diante da Faculdade de Direito, e desce na lateral do Automóvel Clube. Ali estão mais ladies e mais gentlemen, sim, damas e cavalheiros andando sobre tapete vermelho, ao som de orquestra, não!, de uma bossa nova, e lá estão os porteiros, corvos elegantes, enormes afro-descendentes mal-encarados, os homens-guarda-roupas, sim!, ali os pobres a protegerem os privilégios dos ricos. Palavras de Thalis, que acrescentava, Agora os burgueses estão mesmo posando de nobres, o que mais tem é madame com pose de Maria Antonieta, “que comam brioches”!

Ele seguia e seguia, passou assim diante da figura neo-clássica do Conservatório de Música. Diante do Palácio das Artes. Enfim, o Palácio. O centro da Arte burguesa, ele dizia. Ali a fila para os ingressos. Aquelas figuras de nobres, de burgueses e de plebeus. Alguns proletários e estudantes desgarrados. Uma classificação não apenas sócio-econômica, ele se dizia. Um tipo pode ser pobre, mas carregado de um ar, digamos, aristocrático. E outro sujeito pode ser rico, e ser um tremendo de um vulgar.

E os burgueses podem ser de dois tipos, ele dizia. Aqueles integrados, de família tradicional, em pena carreira. E aqueles descolados, que são mais jovens, com dinheiro mas aparentam um ar marginal, como se fossem todos uns artistas boêmios, afro-culturalistas ou neo-hippies, ou neo-beatniks, sabe-se lá.

Já os nobres, Thalis assim dizia, bem, estes são os de porte nobre, óbvio assim! Mantêm um ar digno, olham de cima para baixo, são superiores, independentes, não ficam se mostrando como os burgueses, mas preferem perambular, observando, sim, apenas observam. Enquanto os plebeus são os inquietos, os irônicos, os que chamam atenção – junto com os jovens burgueses descolados. Uma teoria e tanto, a do Thalis. Ele amava as aulas de Sociologia, percebe-se.

Assim a tipologia social e assim a decadência, ele continuava, sem se empolgar, como se fosse uma aula. Os nobres são motivos para ironias, os burgueses dispensam a dignidade, pensam apenas em ostentar, e os plebeus passam a querer o poder – daí ocorre o rodízio das elites. Acho que ele esta lendo Pareto... E ele pensava tudo isso enquanto esperava na fila para conseguir o tal ingresso. Ele estava sozinho mesmo rodeado de gente. (Sentiria saudades da Mayara? Ela que foi a antiga baby dele... Uma aluna da Pedagogia, segundo ele me disse uma vez...)

Ele continuava, como bom leitor de Sociologia. Na França, os nobres e o clero foram derrubados pela burguesia e pela plebe não-burguesa; enquanto na Rússia czarista, os nobres e o clero derrubados pela burguesia, principalmente os intelectuais, e os plebeus comunistas, e depois os comunistas do Partido-Estado derrubaram a burguesia. Ele repassava toda uma aula, ali na fila do ingresso, convenhamos.

Então o rodízio de elites, quando a elite A não sustenta o poder, perde a seriedade e a dignidade, e então é substituída pela elite B, e antes irônica, sarcástica, crítica mesmo, então torna-se base da 'nova ordem', da nova moral e das novas leis. A elite precisa se levar a sério – senão quem vai levá-la a sério? Ou os dominantes acreditam em si mesmos ou são derrubados pelos dominados. Thalis esboçava uma aula excelente ali, sério.

Entrou para ver o documentário, mas não tinha mais cabeça para isso. Não que o tema não fosse interessante. Literatura africana, por exemplo. Os autores africanos não separavam escrita de ideologias, não viviam em torres-de-marfim, mas descreviam as realidades de seus países colonizados pelos europeus, e o triste cotidiano com lutas de classes, guerras civis, preconceitos, apartheids, massacres, limpezas étnicas, etc, coisa triste mesmo. Como ele poderia ficar ali a digerir tudo aquilo? A ideia do Denio fora boa, excelente até. Mas o humor de Thalis não ajudava.

O jeito seria se explicar com Denio depois. Afinal, o amigo era da pós-graduação e sabia tudo de África e Ásia, e descolonização pós-Segunda Guerra, e novas Elites, e estatismos e comunismos, e totalitarismos. Ainda mais sobre colonização portuguesa na África. Leitor assíduo de Mia Couto e Agostinho Neto. Um sujeito e tanto, o Denio. Muito cabeça! Mas não tem a sedução do Thalis, claro.

Então o Thalis voltou para casa. Só fui encontrar o professor no dia seguinte, mas ele continuava ruminando o lance todo. Volta pra casa sem carro em Belo Horizonte é um drama. Belorizontinos que o digam. As meninas que o digam, é o sufoco! Primeiro sair em busca do ponto de ônibus perdido, e do ônibus perdido. E tropeçando na escória noturna – gente oferecendo coisas, ou o próprio corpo. Mendigos, ambulantes, poetas, ladrões, loucos, policiais, seguranças, porteiros, famílias que voltam para casa, e famílias que perderam o rumo de casa, traficantes, jovens sem eira nem beira, mocinhas sem rumos, travestidos em busca de parceiros, em suma, uma galera de refugos que a noite revela.

Thalis chegou em casa após uma hora de perambulações e se jogou na cama. Vestido e etc. A meditar: como fazer uma sociedade melhor com tanta indignidade? Com um povo que não se percebe explorado? Como criar um socialismo digno não totalitário? Um socialismo edificado de baixo para cima? Como educar o povo? Quem educaria o povo?

E como converter os cultos burgueses sem revolução? Como salvar a civilização pela educação? Como evitar os conflitos que derrubam as melhores mentes aprisionados em masmorras e torturadas até a morte? Como fazer? Thalis, segundo ele dormiu pensando nisso. De jeans, colete e tudo. Com o fardo da noite e do mundo nas costas. Como criar um novo sistema se as pessoas esquecem de algo vital : a própria dignidade?


No dia seguinte chamei o professor para sair. Ele todo desanimado. Nem escrevia, queria que eu escrevesse. Que eu encontraria as palavras. Não sou uma boa aluna? E só agora tive tempo. Vou ouvir mais Smiths e relaxar. Depois termino isso. Ele não terminou. E a História ainda não teve um fim.



mai/12

[primeira versão: nov/08]



Leonardo de Magalhaens






Um comentário:

  1. Ótimo conto! Como sociólogo por formação acadêmica, e como interlocutor com Leonardo de Magalhaens na vida real, este texto soou mais próximo de mim do que talvez para outra pessoa. Imagino perfeitamente as circunstâncias biográficas, teóricas e ficcionais que possam ter ensejado o conto com uma vivacidade particular, embora o texto esteja perfeitamente inteligível àqueles e àquelas que não conhecem de perto o autor e sua literatura. Comunicativo, intelectualista, irônico-humorado-sarcástico como é típico nos textos deste jovem autor brasileiro. Parabéns! Vinícius

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