Sociologias
(ou: Conversa com meu professor)
Isso foi o que o Thalis
me contou. Vou anotar tudo. Ele fala demais, eu vou resumir. Vou
ouvindo “Everyday is like
Sunday” do Morrissey. Vai ser um conto. Isso. Ordenar as
ideias, direto ao ponto. Para ele não dizer que mulher é que fala
demais.
Thalis
recebe um telefonema de um amigo. O Denio. Sobre um documentário lá
no Palácio das Artes. Sobre a África, cultura africana, literatura.
Era
uma noite chuvosa. E Thalis está sem carro, logo vai de ônibus. E
ele vai e erra o ônibus, não era o itinerário da Afonso Pena, mas
o da Amazonas. Foi isso. Quando ele percebeu ele já estava ao lado
da praça Raul Soares. Desceu. Tratou de atravessar a praça, sozinho
sozinho, a admirar o chafariz, as silhuetas dos edifícios, o
letreiro no alto do Edifício JK, quantas horas,
etc.
Aí
o Thalis segue a Augusto de Lima, e vai que vai, a admirar o ar
greco-romano do Minascentro, os reflexos no lençol d'água,
as palmeiras, etc. E as ladies e os gentlemen junto às
colunas e pilares. Era noite de gala. Formatura, certamente.
Quem
é o Thalis? Um professor de História. Mestrado em História do
Século 20. O chamado 'Era dos Extremos'.
Um sujeito de classe média, solteirão, por mais que tenha alunas de
olho nele. Não gosta de pobreza e despreza a riqueza. Ou melhor, não
quer que os pobres continuem pobres, não quer dever nada aos ricos.
Gostaria que o mundo fosse mais uniforme economicamente. É um
socialista reformista – não apoiaria qualquer revolução.
Entenda-se: algum levante armado, subversivo. Ele acredita nos meios
políticos. É um cara com pé no chão. Seu passado é que é
utopista.
Pois
o Thalis seguia a Augusto de Lima, avenida da Imprensa
Oficial, e do Edifício Maletta, por
isso ele olha ao redor, procura conhecidos nos bares. Algum boêmio a
iniciar a jornada noturna de bar em bar. Do Edifício Maletta ele
poderia chegar à Rua da Bahia, aos bares, a ladeira que sobe para a
Praça da Liberdade, passando pela porta da Academia de Letras. Mas
ele segue rumo a Faculdade de Direito,
passa diante do 'Castelinho', hoje um Centro de Cultura. Algo de
gótico e exagerado no mini-castelo que já foi Câmara Municipal e
Museu de Minerologia. Cartão-postal, claro.
Thalis
passa diante da Faculdade de Direito, e desce na lateral do Automóvel
Clube. Ali estão mais ladies e mais gentlemen,
sim, damas e cavalheiros andando sobre tapete vermelho, ao som de
orquestra, não!, de uma bossa nova, e lá estão os porteiros,
corvos elegantes, enormes afro-descendentes mal-encarados, os
homens-guarda-roupas, sim!, ali os pobres a protegerem os privilégios
dos ricos. Palavras de Thalis, que acrescentava, Agora os burgueses
estão mesmo posando de nobres, o que mais tem é madame com pose de
Maria Antonieta, “que comam brioches”!
Ele
seguia e seguia, passou assim diante da figura neo-clássica do
Conservatório de Música. Diante
do Palácio das Artes. Enfim, o
Palácio. O centro da Arte burguesa, ele dizia. Ali a fila
para os ingressos. Aquelas figuras de nobres, de burgueses e de
plebeus. Alguns proletários e estudantes desgarrados. Uma
classificação não apenas sócio-econômica, ele se dizia. Um tipo
pode ser pobre, mas carregado de um ar, digamos, aristocrático. E
outro sujeito pode ser rico, e ser um tremendo de um vulgar.
E
os burgueses podem ser de dois tipos, ele dizia. Aqueles integrados,
de família tradicional, em pena carreira. E aqueles descolados, que
são mais jovens, com dinheiro mas aparentam um ar marginal, como se
fossem todos uns artistas boêmios, afro-culturalistas ou
neo-hippies, ou neo-beatniks, sabe-se lá.
Já
os nobres, Thalis assim dizia, bem, estes são os de porte nobre,
óbvio assim! Mantêm um ar digno, olham de cima para baixo, são
superiores, independentes, não ficam se mostrando como os burgueses,
mas preferem perambular, observando, sim, apenas observam. Enquanto
os plebeus são os inquietos, os irônicos, os que chamam atenção –
junto com os jovens burgueses descolados. Uma teoria e tanto, a do
Thalis. Ele amava as aulas de Sociologia, percebe-se.
Assim
a tipologia social e assim a decadência, ele continuava, sem se
empolgar, como se fosse uma aula. Os nobres são motivos para
ironias, os burgueses dispensam a dignidade, pensam apenas em
ostentar, e os plebeus passam a querer o poder – daí ocorre o
rodízio das elites. Acho que ele esta lendo Pareto... E ele pensava
tudo isso enquanto esperava na fila para conseguir o tal ingresso.
Ele estava sozinho mesmo rodeado de gente. (Sentiria saudades da
Mayara? Ela que foi a antiga baby dele... Uma aluna da
Pedagogia, segundo ele me disse uma vez...)
Ele
continuava, como bom leitor de Sociologia. Na França, os nobres e o
clero foram derrubados pela burguesia e pela plebe não-burguesa;
enquanto na Rússia czarista, os nobres e o clero derrubados pela
burguesia, principalmente os intelectuais, e os plebeus comunistas,
e depois os comunistas do Partido-Estado derrubaram a burguesia. Ele
repassava toda uma aula, ali na fila do ingresso, convenhamos.
Então
o rodízio de elites, quando a
elite A não sustenta o poder, perde a seriedade e a dignidade, e
então é substituída pela elite B, e antes irônica, sarcástica,
crítica mesmo, então torna-se base da 'nova ordem', da nova moral e
das novas leis. A elite precisa se levar a sério – senão quem vai
levá-la a sério? Ou os dominantes acreditam em si mesmos ou são
derrubados pelos dominados. Thalis esboçava uma aula excelente ali,
sério.
Entrou
para ver o documentário, mas não tinha mais cabeça para isso. Não
que o tema não fosse interessante. Literatura africana, por exemplo.
Os autores africanos não separavam escrita de ideologias, não
viviam em torres-de-marfim, mas descreviam as realidades de seus
países colonizados pelos europeus, e o triste cotidiano com lutas de
classes, guerras civis, preconceitos, apartheids, massacres,
limpezas étnicas, etc, coisa triste mesmo. Como ele poderia ficar
ali a digerir tudo aquilo? A ideia do Denio fora boa, excelente até.
Mas o humor de Thalis não ajudava.
O
jeito seria se explicar com Denio depois. Afinal, o amigo era da
pós-graduação e sabia tudo de África e Ásia, e descolonização
pós-Segunda Guerra, e novas Elites, e estatismos e comunismos, e
totalitarismos. Ainda mais sobre colonização portuguesa na África.
Leitor assíduo de Mia Couto e Agostinho Neto. Um sujeito e tanto, o
Denio. Muito cabeça! Mas não tem a sedução do Thalis, claro.
Então
o Thalis voltou para casa. Só fui encontrar o professor no dia
seguinte, mas ele continuava ruminando o lance todo. Volta pra
casa sem carro em Belo Horizonte é um drama. Belorizontinos que o
digam. As meninas que o digam, é o sufoco! Primeiro sair em
busca do ponto de ônibus perdido, e do ônibus perdido. E tropeçando
na escória noturna – gente oferecendo coisas, ou o próprio corpo.
Mendigos, ambulantes, poetas, ladrões, loucos, policiais,
seguranças, porteiros, famílias que voltam para casa, e famílias
que perderam o rumo de casa, traficantes, jovens sem eira nem beira,
mocinhas sem rumos, travestidos em busca de parceiros, em suma, uma
galera de refugos que a noite revela.
Thalis
chegou em casa após uma hora de perambulações e se jogou na cama.
Vestido e etc. A meditar: como fazer uma sociedade melhor com tanta
indignidade? Com um povo que não se percebe explorado? Como criar um
socialismo digno não totalitário? Um socialismo edificado de
baixo para cima? Como educar o povo? Quem educaria o povo?
E
como converter os cultos burgueses sem revolução? Como
salvar a civilização pela educação? Como evitar os conflitos que
derrubam as melhores mentes aprisionados em masmorras e
torturadas até a morte? Como fazer? Thalis, segundo ele dormiu
pensando nisso. De jeans, colete e tudo. Com o fardo da noite
e do mundo nas costas. Como criar um novo sistema se as pessoas
esquecem de algo vital : a própria dignidade?
No dia seguinte chamei
o professor para sair. Ele todo desanimado. Nem escrevia, queria que
eu escrevesse. Que eu encontraria as palavras. Não sou uma boa
aluna? E só agora tive tempo. Vou ouvir mais Smiths e
relaxar. Depois termino isso. Ele não terminou. E a História ainda
não teve um fim.
mai/12
[primeira
versão: nov/08]
Leonardo
de Magalhaens
Ótimo conto! Como sociólogo por formação acadêmica, e como interlocutor com Leonardo de Magalhaens na vida real, este texto soou mais próximo de mim do que talvez para outra pessoa. Imagino perfeitamente as circunstâncias biográficas, teóricas e ficcionais que possam ter ensejado o conto com uma vivacidade particular, embora o texto esteja perfeitamente inteligível àqueles e àquelas que não conhecem de perto o autor e sua literatura. Comunicativo, intelectualista, irônico-humorado-sarcástico como é típico nos textos deste jovem autor brasileiro. Parabéns! Vinícius
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