quarta-feira, 24 de abril de 2013

2 poemas de Affonso Romano de Sant'Anna






OS POEMAS QUE NÃO TENHO ESCRITO


Os poemas que não tenho escrito
                                                 porque
trabalhando num banco me interrompiam a toda hora
ou tinha que ir à venda e à horta
                      — quando o poema batia à porta,
os poemas que não tenho escrito
                                                 por temer
descer mais fundo no escuro de minhas grotas
e preferir os jogos florais
                 de uma verdade que brota inócua,
os poemas que não tenho escrito
                                                porque
meu dia está repleto de alô como vai volte sempre obrigado
e eu tenho que explicar na escola o verso alheio
quando era a mim próprio
                                     que eu me devia explicado,
os poemas que não tenho escrito
                                                porque gritam
ou cochicham ao meu lado
                        ligam máquinas tocam discos e ambulâncias
passam carros de bombeiro e aniversários de criança
                                   e até mesmo a natureza solerte
se infiltra entre o papel e o lápis
                          inutilizando com sua presença viva
                          minha escrita natimorta,
os poemas que não tenho escrito
                                                                    porque
na hora do sexo jogo tudo para o alto
e quando volto ao papel encontro telefonemas e prantos
a exigência de afetos, planos e reencontros
me deixando lasso o pênis e um remorso brando no lápis
esses poemas que não tenho escrito
como um ladrão escapando pelas frestas
ou covarde devorado por seus medos
                                                     e persas
esses poemas que não tenho escrito
                                                      esses poemas
estão lá dentro
                      me espreitando
alguns já ressecados
                               outros ressuscitando
outros me acudindo
                             muitos me acenando
                                                            batendo à porta
                                                            — me arrombando
                             me invadindo a sala
                             com falas corretoras
                             enciclopédias e planos
esses poemas estão lá dentro
                                            latentes
                                            me apertando
                                            atando
                                            sufocando
e qualquer dia me encontrarão
                                            roxo e acuado
                                            senão boiando e afogado
numa sangria de versos desatada.




Affonso Romano de Sant'Anna


...


O HOMEM E O LIVRO


                                               1

Deixando a sala acesa, aberto o livro,
venho para a clara noite escura.

-Quantas horas gastei sobre essas letras?
   enquanto lá em cima se inscrevia o tempo
   no inalcançável sentido dos cometas?

Uma por uma as estrelas me iluminam e me sufocam.
Eu pareço uma traça
                     fazendo furos pelas páginas e trevas
                     para chegar ao branco céu
                                                  -inscrito no papel.

-Quantas manhãs perdidas
                            e dessangrados crepúsculos no mar!

-Quanto tempo esvaído
                        com os olhos na mesa, no livro, na escrita
me furtando ao sol da pele,
                        à luz das montanhas,
                        à vida se escoando entre insetos
                        e águas na ramagem,
                        sem que, na sala,
                        corpos e objetos dialogassem.

Sem que meu corpo e outros se tocassem,
sem que o corpo de si mesmo apercebesse,
só esta cabeça
                      - férvida cratera
derramando lavas frias de um vulcão boquiaberto.


                                               2

Sempre invejei a pedra,
                           a água,
                               as árvores,
                                      as coisas
                                             sobre o tempo.

Estáticas umas,
alheias outras,

                      sorvendo interna-dura-e-eternamente
                      a sua passiva/idade,
                                               enquanto os homens

brotam cogumelos nas peles carcomidas,
mineram seus pesadelos com a garganta ressequida,
desfolham rubra angústia e se esboroam num árido gemido.

Formigas não escrevem poemas para se salvar no tempo.
Por isto as esmagamos com os passos, iguais àqueles
com que nos esmagam os deuses, alheios
aos versos que escrevemos contra a morte na parede.

Não posso dizer que não tenha visto o mundo
a sua sordidez,
                    as flores da manhã,
                                  o estonteante entardecer,
alguns dos mais belos corpos do meu tempo,
alguns dos mais nobres gestos sem história.

Mas às vezes
                     invejo
                            aquele homem de mármore
                                talhado no terno branco,
que só
           na mesa
                         toda  tarde
                                         sorve sua cerveja
                                         como um artesão
                                         ante sua obra,

                                         alheio ao caos da rua,
                                         alheio ao caos do bar,

                                         e alheio ao caos urbano
                                         que nos devora a urbe e o orbe.




                                        3


E noite adentro abro livros de poesias
e pasmo e sôfrego, deslumbrado:
-  esses que ontem (me) escreviam, mortos!
-  esses ignorantes antigos,
como sabiam das coisas!

Já nem me refiro a Empédocles escolhendo a morte num vulcão
ou à invejável intuição de Espartacus
conduzindo milhões de escravos na guerra da libertação.

Olho naquele canto ali
                              - os mestres mineiros
                              e a fina pedra de toque da ironia.

A grande poesia desce as montanhas de Minas:

Murilo, Rosa E Drummond
- meus dispenseiros -
abastecem-me de eternidade.





Affonso Romano de Sant'Anna



in: Que País é Este? e outros poemas / RJ, 1980




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video / entrevista


sexta-feira, 19 de abril de 2013

2 poemas de Claudio Willer






Claudio Willer


A Palavra
(de 'Estranhas Experiências')


vocês não entenderam nada, vocês não sabem nada
poesia não é querer escrever bem
poesia é o que eu ainda irei relatar em prosa
poesia é o que ainda pretendo escrever
para depois reler e dar risadas, imaginando o espanto de quem vier a ler o que
escrevi
poesia é velocidade
do disparo de revólver verdadeiro, da janela, no automóvel que ia passando
por aquele alvo escolhido ao acaso,
poesia é som,
o áspero ruído do gume de diamante sendo testado por dois especialistas em
arrombamento na vitrina daquela loja de armas a 80 m. de distância de uma
delegacia (eu esperava no carro) (se houvesse cedido, levávamos tudo)
poesia é luz
daquelas janelas abrindo-se todas ao mesmo tempo, todo mundo acordando
para ver que espécie de confusão era essa, o que aquele bando de malucos
fazia na rua àquela hora
poesia é noite
a outra noite, aquela (no HC, minha pressão caiu, e depois ainda tive que dar
a notícia aos amigos)
poesia é dizer
é ela dizer: "como você me revoluciona por dentro"
poesia é escrever
com um cuidado enorme, pesando cada palavra, para não me declarar réu
confesso
poesia é névoa
de fumaça enchendo o quarto, todo mundo a dar risadas sem conseguir parar
poesia é porrada
algo bem melhor do que briga de
scholars, aqueles da outra universidade
contra esses desta,
poesia grossa (cacete rombudo, que tal esta imagem?)
poesia é isso, é isto, também é aquilo, é agora
poesia é o que sempre soubemos
o conhecimento animal
um núcleo raivoso anterior à Queda
- Gnose
estou falando de filosofia, de essência,
uma exploração do desconhecido pelo corpo, através do corpo,
o Marquês de Sade nem precisava daquele teatro todo
o que sei é onde penetrei,
- o telefonema que me traz lembranças de trinta anos atrás, de ontem, de agora, seu
som a vibrar neste ar parado de noite antes de mais uma tempestade -
nada me interromperá
sempre usei uma linguagem direta,
Prometeu, Fausto
não quero falar, quero ser dito
sejamos densamente humanos
como a chuva
no ar saturado de excesso
parto ao encontro do núcleo selvagem de qualquer coisa
diamante ou lágrima perdida no fundo do bosque
ex-deusa
assim me despeço
mas eu a reencontrarei
lunar
resta saber o sonho, parábola da vida







POÉTICA


1

então é isso
quando achamos que vivemos estranhas experiências
a vida como um filme passando
ou faíscas saltando de um núcleo
não propriamente a experiência amorosa
porém aquilo que a precede
e que é ar
concretude carregada de tudo:
a cidade refletindo para sua hora noturna e todos indo para casa ou então
marcando encontros improváveis e absurdos, burburinho da multidão circulando
pelo centro e pelos bairros enquanto as lojas fecham mas ainda estão iluminadas,
os loucos discursando pelas esquinas, a umidade da chuva que ainda não passou,
até mesmo a lembrança da noite anterior no quarto revolvendo-nos em carícias e
expondo as sucessivas camadas do que tem a ver – onde a proximidade dos
corpos confunde tudo, palavra e beijo, gesto e carícia
TUDO GRAVADO NO AR
e não o fazemos por vontade própria
mas por atavismo


2
a sensação de estar aí mesmo
harmonia não necessariamente cósmica
plenitude muito pouco mística
porém simples proximidade
da aberrante experiência de viver
algo como o calor
sentido ao lado de uma forja
(talvez devesse viajar, ou melhor, ser levado pela viagem, carregar tudo junto,
deixar-se conduzir consigo mesmo)
ao penetrar no opalino aquário
(isso tem a ver com estarmos juntos)
e sentir o mundo na temperatura do corpo
enquanto lá fora (longe, muito longe) tudo é outra coisa
então
o poema é despreocupação


...

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Claudio Willer

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quinta-feira, 11 de abril de 2013

4 poemas de Geraldo Carneiro





GERALDO CARNEIRO



in: Poemas Reunidos – RJ, 2010




balada do impostor


sou um impostor, um dia saberão
que simulei tudo o que sempre fui.
sou uma ficção, meu sangue é só linguagem
meu sopro é uma explosão que vem de dentro
em forma de palavra.
quando já não foi mais, serei eu mesmo.
enquanto tardo, trapaceio contra o tempo,
a máquina que vai me devorando,
e vou passando como tudo passa
em busca de uma graça que ultrapasse
o círculo da minha circunstância
o espelho que não seja senão o outro
esse que me habita e que me espreita
e, não sendo eu, me acata os meus espantos



in: balada do impostor [2003-2006]


...


a penúltima fantasia


como dizia o Frederico Nietzsche,
falando a propósito de si mesmo,
sou uma nuvem que navega a esmo,
cheia de relâmpagos que dizem sim.
às vezes sou cumulus-nimbus,
às vezes desço ao rés-do-chão dos limbos,
onde me embriago de ópios e cronópios;
às vezes desço mais, até os infernos
e provo dos horrores pós-modernos;
outras vezes, enfim, ascendo ao empíreo
sob o império do amor e vejo estrelas,
sonho vias-lácteas, tantas coisas belas;
nesses instantes, minha caravela
parece navegar por ultramares
as velas enfunadas pelos olhos teus
ou pelo sopro de um provável Deus.




In: lira dos cinquent'anos [1996-2002]






abaixo a realidade


já recebi a safra da poesia
que me cumpria receber da vida.
vivo instalado no meu minifúndio
(o João Cabral é um latifundiário)
tramando extravagâncias que ainda hei
de cometer ou não,
depende só das dúvidas dos deuses,
por que uma coisa é líquida e incerta:
não há razão por trás da natureza.
Camões falava já do desconcerto
diante das coisas podres deste mundo,
destes poderes ainda cá prestantes
pra nos prestar serviços tão infames.
não vou gastar a minha poesia
celebrando os canalhas do poder.
as musas foram feitas para o sonho,
a dança, a escultura, as coisas belas,
no máximo a volúpia da epopeia.
o resto é resto, terra devoluta
onde esses vermes nunca se revoltam
mas se revolvem nessa lama abjeta.



In: lira dos cinquent'anos [1996-2002]





Maldoror


a dor do mundo dói dentro de mim.
ressoam no meu céu todas as dores
de torturados e torturadores.
a dor do amor perdido e reencontrado
as dores do futuro e do passado.
o fado, o enfado, o fardo da existência,
a dor do bardo, a dor de W. Shakespeare,
a dor imensa de Isidore Ducasse,
o espanto de seus cantos Maldoror.
a dor de Dante, da pátria perdida,
o horror supremo de Edgar Allan Poe,
o horror da dor, o horror do nevermore.
o horror de Conrad, pós-apocalíptico,
o horror do crítico, o horror do político.
o horror devastador e democrático.
o horror da acrópole, do bar e dos bas-fond
eu sinto o horror e sei qual é o seu som.




In: lira dos cinquent'anos [1996-2002]





GERALDO CARNEIRO


in: Poemas Reunidos – RJ, 2010




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