segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Gota a Gota (conto by LdeM)


 

Gota a Gota


LdeM


Seria um dia comum para Otoni não fosse a falta de água. Isto nunca acontecera antes! Não por tanto tempo! Pois se a companhia de água fosse interromper o fornecimento, para melhorias no abastecimento, segundo informavam, ele sempre estocava água nos galões sob a pia. estavam os 20 litros de água para as necessidades mais urgentes. Reserva para emergências mesmo.

Estendeu a roupa lavada no varal, nos fundos, onde brilhava o sol antes de se ocultar detrás das mangueiras do quintal vizinho. Depois resolveu aproveitar para tomar um banho caprichado. Otoni percebeu de fato a falta de água quando, despido sob a ducha, esperou o jato morno e relaxante e ... nada. Abriu toda a torneira, desconfiado, e somente sentiu gotejar uns pingos poucos. Então ele percebeu: não é que havia gasto o resto da água para lavar aquele aconcágua de roupas? Que vacilo, brother!

Depois restou estranhar quando passou a tarde e nada do murmurar da água na caixa d'água ao anoitecer. Como passaria agora sem os 20 litros? Afinal, foi o suficiente para fazer o almoço e ele passou longe de lavar talheres e pratos. Queriam deixar o cidadão mais de doze horas sem água? Ah, era pra processar! Ligou logo para o Rubens, ali ao lado. O quê? Desde a madrugada? Daqui a pouco 24 horas sem uma gota!

E o encontro com a Patty? E aquele banho especial? E a geral atrás das orelhas? Ora, que sacanagem, brother! Será o bairro todo? A cidade toda? Não! Era ligar pro Roney! Eis a solução! Afinal, o encontro com a Patty na Praça era às oito horas...

-Ei, Roney! Sabe da última? Estou sem água aqui! Sério! Desde manhãzinha... E vou sair com a Patty... Acredita? Logo hoje! Pode? Sei... Não, é que preciso de um banho, cara! Pode ser...? na sua casa... Rapidão...

Gente boa, o Roney. Um banho, ao menos! Era descer até a avenida, pegar um ônibus... Tomar um banho... E de lá, da casa do Roney, tinha um coletivo até o centro...

A operação foi um sucesso. Banho tomado, orelhas lavadas, roupa limpa. Rumo a Praça. E depois um modesto motel, claro! pois como receber sua querida num barraco sem água? Passar esta vergonha... E se ela vai achar que não paguei a conta de água...?

Okay. A noite no motel seria melhor se tivesse água em abundância. Mas parece que até o pessoal estava racionando água... Impressão? Mas, de qualquer modo, tinha mais água do que em casa... Por uma noite ele passou longe do pesadelo...

Na manhã seguinte, de volta, a primeira coisa que Otoni fez foi abrir as torneiras. Foi que bastou para voltar ao pesadelo! Nem uma gota! Seria assim o seu fim de semana? Estaria no polígono da seca? Não era possível...!

Ainda bem que água, pura e fresca para beber, ainda tinhamas por pouco tempo. Era preciso ir até a padaria e comprar mais uns cinco litros. Foi o que fez de imediato. Não sem antes passar na casa do Rubens, onde o pessoal arrumava as malastodo mundo pro sítio! Boa ideia! Não tem água no bairroentão vamos para o campo... Ah, por que não um banho de cachoeira?

Mas Rubens, apesar de grande amigo. não fez qualquer convite, e Otoni não se convidou. Afinal, era um passeio de família, até a vovó seguiria no banco de trás, saudosa dos rios de águas cristalinas na área rural, pros lados de Brumadinho. Daí, para de frustrado, Otoni resolve comprar logo dois galões de 5 litros na padaria mais próxima. E assim pelo menos pode encher o filtro e fazer uma sopa... Ou seria melhor almoçar em restaurante? Mas, os dois restaurantes mais próximos estavam fechados... Afinal, faltava água em todo o bairro, melhor: em toda a região...

Cozinhou o que podia cozinhar. Almoçou contrariado. Ligou para a Patty para saber se estava tudo bem. Não estava. A sua querida também estava sem água! E ela mora em outra regional ! Que conspiração era esta?! E se a gente visitasse a Paloma? Que tal? A gente passa a tarde e aproveita para tomar um bom banho!

Ideia concebida, plano tramado, foram Otoni e Patrícia fazer uma visita a amiga Paloma, que mora com o namorado na área central, diante da praça circular ao estilo mandala, com arbustos globulares, onde os passantes e mendigos se refrescavam junto a fonte esguichante. Alguns mais enlouquecidos se jogavam dentro da fonte, apenas para serem prontamente expulsos por guardas de uniformes azuis, aqueles que zelam pelo patrimônio municipal.

-Oi, Paloma! Tutto bene? Viemos jogar conversa fora. Mas é que estamos com um problema com a água... quero dizer, estamos sem água desde ontem... A gente aqui... eu e a Patty... se não for abusar muito... a gente poderia tomar um banho? Coisa rápida...

-Claro, claro! Mas que história é esta? Não tem água no seu bairro? - A amiga Paloma não acreditaria que algo assim ocorresse em pleno século 21, certamente.

Banho tomado, cocktail servido, bebida para refrescar. Assim passou a tarde e tardezinha bem agradável. Novamente Otoni esqueceu seu drama. Bastou chegar em casanoitinha de domingo! - para sentir o fardo do tempoe da seca.

Ah, o domingo! carrega aquela ameaça de segunda-feira! Pelo menos otoni poderia ir para o serviço em outra região e ficar sossegado. E assim aconteceu. Ele trabalhou o dia todo, digitando listas e relatórios, lavou o rosto à vontade no WC, nunca idolatrou tanto a água.

Ao voltar para casa sentia ainda mais a falta. Como fazer a janta? Como tomar um banho? Como se mostrar apresentável no serviço na manhã seguinte? Ligou para Roney e explicou a estranha situação. Sim, que ele ficasse à vontade para passar cedinho cedinho e tomar um bom banho. Gente boa, o Roney! Sem palavras para agradecer.

Assim se resolvia a vida de Otoni, sem a água. Durante dois dias cuidou do banho, como se fizesse um ritual, na casa do amigo. Até que a água acabou também lá! Toda a cidade estava sem água! Foi assim na manhã de quarta-feira! A água acabou geral ! rumores de catástrofe. Rompimento da adutora? Poluição dos mananciais?

Ninguém sabia ao certo... Alguns corriam aos supermercados para comprarem os estoques de água mineral em galões... Em breve a água seria artigo de luxo? Seria o fim da civilização? Era o que faltava: afinal, ele não vivia no 'planeta água'?

Pelo menos, água corrente faltava. Quem tinha cisternas poderia se salvar... Quem tinha um reservatório no quintal... O prudente morreu de velhice, non è vero? Pois é... Quem pode corre logo ao supermercado e compra água... Antes de começarem os saques e quebra-quebras...

Otoni estava pensando em fugir com um casaco, um edredom e um saco de dormir, rumo às montanhas e aos mananciais, quando ouviu no rádio a informação oficial sobre a falta d'água. Sempre o governo querendo manter o controle ao sonegar detalhes do painel dramático. Conversa fiada, of course! Baboseira!

Melhor dar o fora antes que a cidade vire um caos! Sem uma gota de água para beber! Sem água para tomar um banho decente! E agora? Onde estavam os inteligentes que lavavam a calçada com a mangueira esguichando? Onde os gênios que davam descargas com água limpa? Onde os sábios que davam banho no cachorro justamente com a água de beber?

Mas quem paga a conta sou eu!grunhia o cidadão, a despejar água na calçada, a dar banho no cãozinho, a dar descarga a cada mijada! E agora? Nem uma gota na cidade toda... Vamos beber a água dos bueiros, das privadas, dos córregos... Quem mandou poluir tudo? Emporcalhar tudo?

Otoni decidiu não ficar na cidade para ver como as pessoas se comportariam meio às depredações, meio à violência, meio ao caos. Como viveriam agora sem o precioso líquido? Como lavar o rosto logo de manhã ao se levantar? Como se refrescar com um banho caprichado? Como aguar as rosas do jardim?

Em breve um copo d'água estaria valendo mais que ouro, mais que petróleo! As pessoas começariam a se matar por um copo de água para beber! Pai contra filho! Vizinho contra vizinho! Bandidos controlariam uma máfia de contrabando deágua! Seria um novo tipo de crime organizado!

Não, ele não esperaria. Não queria ser trucidado por uma gangue de caçadores da água perdida, nem obrigado a matar seus semelhantes para matar a própria sede! Virou as costas para a cidade e seguiu a estrada de asfalto para o campo, onde poderia beber água fresca junto a uma cisterna ao lado de um modesto casebre de adobe, graças a generosidade de um camponês.

Assim Otoni seguiu sem olhar para trás, para a cidade que morria de sede, que ressecava-se desde as entranhas, incapaz de valorizar a água limpa e fresca antes de perdê-la irremediavelmente, no mundo de asfalto e concreto, agora cativo de uma sede monumental num crepúsculo de barbárie.



versão: out/11

jun/12



Leonardo de Magalhaens