quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Fernando Pessoa : Faces e Sombras



Fernando Pessoa: Faces e Sombras
  


(sobre a escrita heteronômica de Fernando Pessoa – breve ensaio)



Um dos temas mais inusitados da literatura moderna é o dos heterônimos de Fernando Pessoa, o célebre poeta lusitano que foi reconhecido depois de morto. A condição fragmentária, de muitas perspectivas, de seus 'outros autores' tem importunado os bons literatos desde o momento em que o baú do poeta foi aberto em pública exumação.
 
Pois enquanto vivo Fernando Pessoa somente foi reconhecido pela obra Mensagem, publicada em 1934, quando de um concurso a nível nacional, sendo os demais poemas publicados com frequência em revistas literárias, a saber, Orpheu, Centauro, Portugal Futurista, Atena, Presença, Momento, Sudoeste, Seara Nova, dentre outras, desde 1915, quando levou a público poemas que escrevia desde 1911/12, com inspirações ora clássicas, ora ocultistas.
 
Para lidar com suas múltiplas influências, Pessoa passou a ser 'pessoas', cada uma com características próprias e estilos peculiares. Faces múltiplas para melhor apreender o mundo, uma vez que não existe uma perspectiva ideal para se enxergar tudo. Então - semelhante ao deus dos gnósticos - Pessoa resolveu se 'despedaçar', se fragmentar para melhor sentir de todos os modos em todos os momentos. Mas para isso - para tornar-se mais 'futurista' - ele precisou 'matar' o seu eu mais naturalista, mais agrário, mais 'sossegado', o seu mestre Alberto Caeiro.
 
Quem é Alberto Caeiro? Ele diz, "Sou um guardador de rebanhos. O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações." Ou seja, ele logo diz que é mais sensações, mais emoção do que razão, enquanto sabemos - bons leitores que somos - que Pessoa é do tipo racionalista, mesmo com suas lições de astrologia... Em contrapartida, Álvaro de Campos é emoções em torvelinhos, mas ainda muito erudito, muito culto, muito cheio de conhecimentos, os mesmos que Caeiro não detém. Então como poderia ser Caeiro e Campos ao mesmo tempo?
 
Caeiro é reconhecido como 'mestre', mas deixado à beira do caminho. Não lugar para o seu olhar de girassol, ainda mais num mundo tecnocrata a sempre cobrar informações, conhecimentos enciclopédicos, miríades de filosofias e dogmas, pois Caeiro tem mais é sentimento, "Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, Mas porque a amo, e amo-a por isso,", ou seja, ele ama SEM SABER, sem ficar se explicando, sem ficar se justificando.
 


Logo Caeiro morre e sobra o desassossego. Morre o lado positivo de Whitman em Pessoa, e sobra o Bernardo Soares a querer se explicar. Aquele livro indigesto, O Livro do Desassossego. Amontoado de desculpas e falências. Mas é que Pessoa ele-mesmo vivia em atribulações emocionais e deixa-se seduzir pelos ocultismos disponíveis e obscuros, em visitações com Aleister Crowley, em consultas com teosofias outras, sem encontrar um lugar no mundo, sem saber quem ele realmente era. Ele era muitos, como se dizia Whitman. Mas Whitman tinha se livrado de seu lado sombrio (seu lado Poe, digamos) enquanto Pessoa ele-mesmo era o pessimista leitor de Baudelaire, de Poe, de simbolistas decadentes, enquanto buscava um classicismo régio inexistente, em odes (as de Ricardo Reis) que mais evocavam um passado de planícies romanas e rios povoados por ninfas e faunos. Uma idealização da "calma e do sossego", uma vez que o "calmo e sossegado", o finado Caeiro, não poderia mais ser o homem natural.
 
Então daí o "o poeta é um fingidor", pois Pessoa era consciente de sua obra de 'fingimentos' para expressar exatamente quem ele era - um homem em fragmento, um 'pessoas'. Lendo Whitman - e desejando ser Whitman - e lendo Horácio e Virgílio - e querendo ser um poeta latino, e lendo e traduzindo Poe (The Raven e Annabel Lee) e Crowley (Hino a ), o 'lado sombrio' que nem toda a tecnocracia do mundo poderia sufocar (vide a alta tecnologia alemã envolta em paganismo nazista!) Ou melhor, o 'lado sombrio' é impossível de ser sufocado - por mais que as odes sejam 'singelas' ou 'puras' todo um rancor - que é próprio de um Baudelaire! E em Caeiro um ideal de progresso -bem ao gosto dos futuristas - mas um rancor com o progresso!
 
Um auto-deprezo (demonstrado em "Poema em linha reta"!), o sentimento de não ser moderno o suficiente (o que é ser moderno? Vide um Rimbaud, por exemplo!), um imolar-se em emoções (que as odes sejam triunfais ou ébrias-marítimas são sempre um esfaquear-se lírico!), onde não lugar para um (digamos) homem ÍNTEGRO?
 
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode
haver tantos!

(Tabacaria, Álvaro de Campos)
 
Não um homem natural, mas máscaras. Não há uma integridade mental, mas construtos de personalidade que vazam em versos num papel. Daí a morte do 'eu natural', o rural Alberto Caeiro, o simples, a face PANTEÍSTA, de amor com tudo, o lado positivo que encontramos num Whitman, e se conservam a face OBSCURA, dele mesmo, fã de Poe, Baudelaire e Crowley, lado a lado com a face FUTURISTA, Álvaro de Campos, cantando e regurgitando o progresso, e a face PESSIMISTA, do tipo clássica, um Ricardo Reis, sóbrio e intimista, afogado em odes; e do tipo urbana, um Bernardo Soares, apagado cidadão, a rabiscar notas dignas de um Schopenhauer.
 
Quem é Fernando Pessoa? Certamente o homem que matou Alberto Caeiro. O mestre que ele carregou pela vida toda - e nunca conseguiu ressuscitar. O olhar de girassol que todo menino tem e que se perde num mundo de mascaramento e espelhos disformes. Um saudosismo do "ser íntegro' quando adultos somos chamados a adotar papéis sociais, de estudante, noiva, marido, empregado, patrão, desempregado, viúva, cidadão, moça de família, prostituta. E onde a 'integridade', ou a 'autenticidade' ?
 
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.

(Tabacaria)
 
Num mundo de máscara não lugar para a autenticidade. E hipócritas entre hipócritas vamos seguindo a vida. Fernando Pessoa consciente desse 'teatro' ainda ironiza a própria cons-ciência derramada em seus "versos inúteis",
 
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

(Tabacaria)

A Escrita, assim, é vista como uma referencial para o sujeito que se expressa, pode desabafar, pode se fazer valer por sua Arte. Ele diz nada ser, mas é alguém que é capaz de escrever sobre este sentimento de nulidade. Sem este testemunho de auto-consciência nossas vidas seriam ainda mais vazias.


Jun/08

revsd: dez/12

 
Por
Leonardo de Magalhaens






Poemas traduzidos por F. Pessoa