segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O GUARDA-ROUPA (conto)

O Guarda-Roupa


Certos fenômenos desafiam até os dias atuais os mais dedicados pesquisadores das ciências naturais ou ocultas, os devotos leitores de estatísticas, os exibicionistas das probabilidades, os acadêmicos mais exaltados, os colecionadores de fatos bizarros, em suma, todos aqueles que querem explicar o mundo (...se é que o mundo tem explicação). Grande mentes, assim, se debruçaram sobre os fenômenos das coincidências, das correlações, das telepatias, das sincronicidades, das simpatias, das rotinas viciadas, dos números repetidos da mega-sena, contudo essas grandes mentes nada anunciaram de definitivo.


É de se pensar se faltaram os dados, ou empenho e dedicação, horas de insônia pra se catalogar e classificar todas as bizarrices nonsenses que habitam nosso planeta.


Certos cidadãos jamais experimentaram certos tipos de fenômeno que inquietam os nossos pesquisadores a ponto de alterarem as rotinas diárias. Devido ao fato de não se encontrarem em situações estranhas muitas pessoas acreditam na normalidade e se sentem inseguras por imaginarem uma vida normal.


Acreditam, os incautos, que ao chegarem no ponto de ônibus encontrarão o ônibus, que ao chegarem ao ponto de táxi encontrarão o táxi, que ao chegarem ao aeroporto encontrarão o voo para a próxima escala, além de esperarem encontrar o vestido dos sonhos ou encontrar a cara-metade nos sites da internet. Vivem de esperanças aguardando o nascer do sol, a ascensão da lua, conferindo o saldo do cartão, jogando na mega-sena, preparando o enxoval de noiva, esperando a promoção para a chefia, fazendo planos para as próximas férias, em suma esperando que suas vidas durem mais de uma semana, que o Juízo Final seja no próximo século. Não sabem se despertarão no dia seguinte, não sabem a data do próximo tsunami ou terremoto fatal. Ou da enchente ou do deslizamento.


A simples saída de casa até a prosaica esquina para comprar um maço de cigarros pode se tornar um enredo de filme de espionagem ou terror urbano. Ser assaltado e sequestrado é tão comum que nem é mais manchete de sensacionalistas... Ser abduzido por ETs talvez mereça alguma menção... Nunca se sabe o que pode acontecer. Mas as pessoas agem como se tudo fosse previsível. Acreditam que o sol vai nascer na manhã seguinte...


Mas quando menos esperam – o mundo revela-se mais bizarro. Do mais simples surge o complexo. Por exemplo. Comprar um eletrodoméstico. Mil e tantos são produzidos por dia, e centenas são vendidos para várias lojas de uma rede atacadista. Vários produtos passam por controles de qualidade, mas em alguns pode acontecer de uma peça ou fiação não ser testada. Pior: pode não funcionar.


E um cidadão vai simplesmente comprar um liquidificador ou lava-louças. Pois bem, ao chegar em casa o aparelho não funciona. Ora, dentre milhares, eis um danificado... e precisava ser o dele?! Ele se acredita vítima de um destino cruel e funesto... mas é apenas uma coincidência. Afinal, alguém teria que comprar algum dos aparelhos danificados.


Mas aí o cidadão desabafa em impropérios, briga com o vendedor, até com o gerente da loja, e pior, destila mau-humor com a esposa, deixa de contar piadinhas pras crianças, perde-se em recriminações, reclama do jantar, sente-se perseguido, resolve trocar de carro.


Culpa dele? Culpa de quem fabricou o aparelho? Culpa de quem não testou o aparelho? Culpa de quem transportou o aparelho? Vá saber. Culpar o destino, o acaso, as Potências superiores, a Providência, o Demônio geralmente é mais fácil. O consolo vem seguramente mais rápido. Sofremos por causa do capricho dos Deuses...


O fato é que J. Lee não pensaria qualquer coisa assim senão fosse o problema com o guarda-roupa. Roupas demais e ele precisava de um guarda-roupa novo. Coisa pra ontem, pra anteontem. Ele passou a transitar pelas ruas do centro, de olho nas lojas de móveis. É que ele resolvera fazer um série de orçamentos. Ficou duas semanas nessa jornada.


Ora o móvel era caro, ora era barato demais (...assim logo suspeito de pouco durável). Demorou duas semanas para encontrar um no preço médio. E descobriu que entregavam dentro de cinco dias úteis. E a montagem? Dentro de outros cinco dias úteis. Mas ali na loja ao lado me disseram que no dia da entrega eles montavam... Ah, mas vá o Sr. confiar, né? O vendedor não confiava muito (talvez nem em si mesmo, dava por perdida a venda). Mas era o preço que pesava na decisão de J. Lee. Assim a compra foi realizada. Para o alivio de ambas as partes. (Alívio?)


Causas mínimas desencadeiam efeitos máximos: não fosse o guarda-roupa e ele ainda seria um cidadão ingênuo. Aquele a espera de alguém para solucionar seus problemas. Não fosse o guarda-roupa, ele não teria decisão, não teria discutido, não teria tomado atitude, e causado tudo o que causou. E como causou.


Justamente no momento da compra o vendedor confirmou que a montagem seria agendada para no máximo cinco dias após a entrega do móvel. Montagem que seria rápida ? Não mais que duas horas para montar o guarda-roupa. Assim J. Lee ficou boquiaberto: montar um guarda-roupa de quatro porta em duas horas... que profissionais...! mas tomara que não sejam os mesmo montadores deste aí de amostra: uma das portas já se soltava...


Era só o começo. Começo de que? Nem J. Lee sabia. Nem sequer pressentia. Algo de imprevisível poderia advir de... Deixa pra lá. Nem ele nem ninguém sabia. O vendedor logo o esqueceu – assim que ele passou o cartão na máquina e recebeu a nota da compra. O vendedor somente o reconheceu uns dez dias depois. É que entregaram mesmo o produto – até antes dos cinco dias úteis – mas ele nada sabia do agendamento da prometida montagem...


O vendedor queria saber qual o problema. Não entregaram o produto? Ah, sim... Então? O modelo estava errado? Não foi aquele que o Sr. escolheu? O que mais precisava? J. Lee olhava do vendedor para o gerente (que já aparecera) e do gerente para o vendedor. Ambos se olhavam. O problema era a montagem do guarda-roupa. Não era pra agendar em cinco dias? Já passou uma semana... Vendedor e gerente se revesavam nos sorrisos amplos e hipócritas.


Para resumir: J. Lee foi levado na conversa e carregou no bolso outra bela promessa. Receberia uma ligação e em dois dias eis o belo guarda-roupa montado... Claro que J. Lee saiu meio arrasado. Brigaria com os funcionários, dinamitaria a loja? Claro que não. Ele é um cidadão pacato, evita a violência. Nem eleva o tom de voz... Também o que adiantaria apontar uma arma para o gerente? Era um cidadão honrado, cumpridor dos deveres, pagava os impostos, atravessava na faixa de pedestres, deixava o assento livre para as senhoras de terceira idade...


Mas pior que implorar é ser ignorado. Fingem que dão atenção, ele sabe (ou antes: ele descobre...). Tudo fingimento. Querem apenas o seu dinheiro, otário! Aí, finalmente, ele percebe que a maioria das soluções para seus problemas vem da ajuda de terceiros... ele precisa do eletricista, do encanador, do gerente, do burocrata da prefeitura... ele mesmo não pode resolver os problemas?


Da última vez que tento consertar a ducha, esta quase explodiu... a pia está vazando até hoje... mas ele tinha tomado uma decisão (até sem consultar a esposa...). Era a seguinte decisão: ele mesmo montaria o tal guarda-roupa.


Falar é fácil... vai fazer então! Disseram que os dois montadores gastariam cerca de duas horas, non è vero? Será mesmo? Ele gastou duas horas só para desembalar os três pacotes de papelão que agasalhavam as tábuas do móvel. Duas horas se passaram e ele se sentou para ouvir um som. Acabou dormindo...


Depois J. Lee passou a gastar pelo menos três valiosas horas do seu curto dia para arrumar o tal guarda-roupa. Olhava as peças, comparava com o desenho esquemático, media os parafusos, discutia com a mulher, Mas desde quando você monta guarda-roupas, homem? Hein? Ele seguia em frente... Será que colocava o casamento em risco? Não chegaria a tanto... Mas que enfiou na caixa craniana a decisão de montar o troço, isso com certeza... A decisão entrou e não saiu mais.


Nem depois de marretar o dedão três vezes, nem depois de esmagar o dedinho do pé com uma das tábuas laterais, nem depois de rachar a unha com uma porta mal encaixada... Três horas num dia, dormia, no outro umas duas horas de manhã, e chegava cansado do escritório, teorizava sobre a divisão do trabalho, ele intelectual podia muito bem montar um guarda-roupa, um montador é que não poderia escrever sobre Shakespeare... E ficava mais duas horas, até os olhos pregarem, e no dia seguinte economizava tempo para encaixar outra gaveta... foi assim durante umas (vamos somar tudo...) umas vinte e três horas...


Depois disso, J. Lee viu-se um novo homem. Decidiu que conserta tudo ele mesmo, chega de intermediários. Chega de divisão de trabalho. Ele poderia ir pra Cuba e ser um intelectual marceneiro. Que tal um economista ser entregador de pizza? Que tal um professor ser varredor de ruas? Eis uma good idea. Ele se converteu. O mundo dividido em departamentos, em celas estanques desfez-se em ruínas. Ele rompeu seu gabinete, derrubou o madeirame e resolveu fazer a instalação do gás no fogão. Até lidar com os botijões ele topava.


E o guarda-roupa? Bem, não era lá grandes coisas, mas ao menos servia para … guardar roupas. Quanto ao J. Lee ele aprendeu a lição. Ele até fez um bom trabalho. Gastou bem as 23 horas. Descobriu que podia fazer. Fez e aprovou. Aquele imenso caixote pra guardar roupas. Nem mais nem menos. Quem diria... o óbvio às vezes é a coisa mais estranha.




22e26/27jan12




Leonardo de Magalhaens


http://leoliteraturaescrita.blogspot.com



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