Uma leitura da Obra de LIMA BARRETO
A Escrita enquanto superação
Dono de uma escrita realista, sem preâmbulos. Realista no sentido de denunciar uma “realidade” diante dos olhos, mais do que retratar esta “realidade”. Uma obra que não é retrato, mas ironia com as imagens que alguns julgam ser o “retrato”. Assim, trataremos aqui da obra de Lima Barreto (nascido Afonso Henrique de Lima Barreto, em 13 de maio de 1881)
Se leitor de um Aluísio Azevedo (como ele mesmo se dizia),(1) Lima Barreto sabia das abrangências e limites do chamado ‘Naturalismo’, que visava um retratamento da “realidade”, com que havia de mais ‘natural’, ‘popular’ e ‘deselegante’.
Para entender Lima Barreto, precisamos voltar o olhar até os escritos de Aluísio Azevedo, diante do leitor com “sede de verdade” de fins do século 19. Pensava-se então que o romance não poderia ser mais um ‘passatempo’, mas uma forma de ‘retratar’ a “realidade” psíquica e social da época. Pretensão que encontramos num Émile Zola, com seu “Germinal”.(2)
A escrita enquanto “retrato” é limitada no sentido de que é limitada uma foto – o artista só pode escolher o ângulo e a incidência luminosa, no mais a foto diz tudo. O artista só escolhe o alvo e o momento, no mais a foto que se expresse. Assim, a literatura ‘naturalista’ não permitia muitas inovações estéticas por parte do escritor. Assim, a obra fundamental “O Cortiço” ser lembrada mais pelo enredo, o “conteúdo”, do que pelo estilo, a “forma”. Fenômeno contrário acontece com Machado de Assis. Onde os enredos parcialmente são esquecidos, mas nunca deixamos de lembrar o estilo, os labirintos da linguagem. (No século 20, o mesmo acontece com o autor Guimarães Rosa)(3)
Se um Aluísio Azevedo tinha fome da “verdade”, um Machado de Assis tem necessidade de “estilo”. É no estilo que Machado de Assis se realiza, é na metalinguagem, na conquista da cumplicidade do leitor. Trata da realidade como fantasia, e vice-versa, com seu “defunto autor”, numa antecipação do “realismo-fantástico”, para um leitor com “sede de fantasia”, numa tradição de Edgar Allan Poe, que se tornaria famosa na Literatura Latino-Americana (4)
Para Lima Barreto, a escrita é uma forma de aprisionar os seus fantasmas no papel, deixar na folha as inquietações e frustrações de toda uma vida, que nem o abuso de álcool conseguiu fazer esquecer. Perambulando em fantasias e atmosferas ébrias, tal um Poe, Lima Barreto deixava o seu olhar descer sobre a miséria e a indignidade em busca de uma pérola lírica, um momento que pudesse ser ‘redenção’ de uma existência degradada.
Sua obra mostra isso. Personagens que desejam ir além de seus limites sociais e culturais, querem melhorar suas vidas, querem mudar o mundo, querem construir novos sistemas sociais, querem ser maior que suas condições. Se os escritores naturalistas, numa tradição de Taine, com seus determinismos de raça, época e cultura, (5) com as personagens limitadas ao natural e ao fisiológico, as personagens de um Machado de Assis e de um Lima Barreto fogem às convenções e até se colocam contra as convenções, fugindo de ‘determinismos’ e pagando caro por essas ‘transgressões’.
Não se pretende aqui uma crítica do ‘realismo-naturalismo’, apenas apresentar um painel da época, e do ‘Zeitgeist’, o “espírito da época”, com suas características de objetivismo, descrição e explicação, além de uma ousada crítica social, num período de decadência monárquica e ascensão republicana. (6) Sejam anti-clericais e anti-escravismo, os autores naturalistas buscam formar um grupo de leitores mais à vontade num mundo pleno de avanços da ciência, com ideias de “ordem e progresso”, ao estilo positivista de Comte. Contudo, por mais que sofra a “síndrome de influência”, Lima Barreto diverge em pontos fundamentais, dos seus predecessores. Principalmente que Lima Barreto nada defende, nenhum “ismo” é por ele exaltado. Pretende fazer sua denúncia, ironizar seus desafetos, desabafar suas frustrações,mas nunca ‘doutrinar’ ou ‘converter’. Para o autor, certezas são como ‘camisas de força’. Sua crença na literatura se encerra nela mesma: nada além. Não se pense que literatura educa: literatura é para deseducar. Quem educa é o Estado e seus professores (se possíveis, laicos), dentro de padrões sócio-econômicos.
A Literatura, se tem utilidade, é para ampliar horizontes, destruindo padrões. E nesse quesito Lima Barreto se esforça. Ainda que sua obra tenha muito de biografia, ‘auto-biografia’, como acusam muitos, tem algo de superação, quando pretende mostrar personagens ousados, que não se conformam.
No primeiro romance, publicado em 1909, o irônico “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, há um mulato que no desejo de superar sua classe social, e sua cor, ao ocupar espaços que muitos julgam não serem destinados a ele, numa ânsia de ascensão, nutrindo um “complexo de superioridade” devido a consciência da inferioridade social de cor e classe.
“A tristeza, a compressão e a desigualdade de nível mental do meu meio familiar, agiram sobre mim de um modo curioso, deram-me anseios de inteligência.”
Em suas recordações, o escrivão Isaías Caminha apresenta as frustrações colhidas no entrechoque com as várias esferas da sociedade que se encontram de portas fechadas para ele, devido ao preconceito de cor e de classe. Isaías quer estar além do mundo que reservaram para ele: um mundo encolhido, submisso. Isaías não se sente bem meio aos seus, e se sente deslocado meio aos outros, de ambiente mais refinado. É um descontente que, distanciado, se contenta em observar, analisar o comportamnto alheio. Assim, “fora do jogo”, sente-se “acima”, superior.
“Acentuaram-se-me tendências; pus-me a colimar glórias extraordinárias, sem lhes avaliar ao certo a significação e a utilidade. Houve na minha alma um tumultuar de desejos, de aspirações indefinidas. Para mim era como se o mundo me estivesse esperando para continuar a evoluir...”
Um processo ‘compensatório’, quando da consciência da inferioridade social, Isaías desenvolve seu “complexo de superioridade”. A sua narrativa nasce desse descompasso, e se desenvolve em espirais, tudo num redemoinho de percepções, onde ele nunca é bem-vindo, onde ele nunca se sente em casa.
Na cena, em que descreve uma sessão da Câmara dos Deputados, podemos notar em Lima Barreto (tentando se ocultar atrás da pena de Isaías Caminha) toda uma perspectiva de ironia diante das autoridades e dos conceitos que estas fazem de si mesmas, mesma ironia que encontraremos depois no “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, coma s figuras mais esdrúxulas se fazendo em autoridades e ditando o futuro da Nação.
Na Câmara, Isaías nota o contraste entre a idealizada ‘grandiosa representação’ e a realidade ‘espetacular’, de espetáculo mesmo, de “arquibancada grosseira”, onde Isaías se vê adentrar à procura do Deputado Castro, “representante da grande nação brasileira”, mas sempre distante, inabordável, como sabemos ser característica dos políticos, que somente se aproximam da população em épocas de eleições.
Frustrado com o ‘espetáculo’ da Câmara, Isaías Caminha deixa-se perambular pelas ruas centrais do Rio de Janeiro, em observações um tanto irônicas sobre os diversos tipos que cruzam o seu caminho. Aqui observar é “analisar à distancia”, pois o escrivão não se identifica com os populares, ele apenas mergulha na multidão para continuar ainda mais solitário. Assim um olhar ao estilo Baudelaire (como bem notou Walter Benjamin, em suas “Passagens” (“Passagenwerk”) sobre o ‘spleen de Paris’), que caminha meio ao povo para melhor se perceber sozinho. “É solitário andar por entre a gente”, escreveu um Camões. (7) Assim também o conto “uma Noite no Lírico”, no último livro publicado por Lima Barreto, “Histórias e Sonhos”, em 1920 (portanto, dois anos antes de sua morte, em 1922, ano simbólico na Literatura Brasileira). No referido conto, encontramos um irônico observador que vai, certa noite, a uma peça no Teatro lírico, onde se reúnem as figuras mascaradas da high society, a fina flor da aristocracia fluminense. Para o protagonista, o espetáculo não é tão somente a ópera no palco, mas também os ‘tipos’ na platéia. E se observa é por não se identificar,é por se deixar na companhia de outros irônicos, que não perdem a oportunidade de ‘desmascarar’ a bela sociedade dos ‘ricaços’.
Em suas recordações, o escrivão Isaías Caminha apresenta as frustrações colhidas no entrechoque com as várias esferas da sociedade que se encontram de portas fechadas para ele, devido ao preconceito de cor e de classe. Isaías quer estar além do mundo que reservaram para ele: um mundo encolhido, submisso. Isaías não se sente bem meio aos seus, e se sente deslocado meio aos outros, de ambiente mais refinado. É um descontente que, distanciado, se contenta em observar, analisar o comportamnto alheio. Assim, “fora do jogo”, sente-se “acima”, superior.
“Acentuaram-se-me tendências; pus-me a colimar glórias extraordinárias, sem lhes avaliar ao certo a significação e a utilidade. Houve na minha alma um tumultuar de desejos, de aspirações indefinidas. Para mim era como se o mundo me estivesse esperando para continuar a evoluir...”
Um processo ‘compensatório’, quando da consciência da inferioridade social, Isaías desenvolve seu “complexo de superioridade”. A sua narrativa nasce desse descompasso, e se desenvolve em espirais, tudo num redemoinho de percepções, onde ele nunca é bem-vindo, onde ele nunca se sente em casa.
Na cena, em que descreve uma sessão da Câmara dos Deputados, podemos notar em Lima Barreto (tentando se ocultar atrás da pena de Isaías Caminha) toda uma perspectiva de ironia diante das autoridades e dos conceitos que estas fazem de si mesmas, mesma ironia que encontraremos depois no “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, coma s figuras mais esdrúxulas se fazendo em autoridades e ditando o futuro da Nação.
Na Câmara, Isaías nota o contraste entre a idealizada ‘grandiosa representação’ e a realidade ‘espetacular’, de espetáculo mesmo, de “arquibancada grosseira”, onde Isaías se vê adentrar à procura do Deputado Castro, “representante da grande nação brasileira”, mas sempre distante, inabordável, como sabemos ser característica dos políticos, que somente se aproximam da população em épocas de eleições.
Frustrado com o ‘espetáculo’ da Câmara, Isaías Caminha deixa-se perambular pelas ruas centrais do Rio de Janeiro, em observações um tanto irônicas sobre os diversos tipos que cruzam o seu caminho. Aqui observar é “analisar à distancia”, pois o escrivão não se identifica com os populares, ele apenas mergulha na multidão para continuar ainda mais solitário. Assim um olhar ao estilo Baudelaire (como bem notou Walter Benjamin, em suas “Passagens” (“Passagenwerk”) sobre o ‘spleen de Paris’), que caminha meio ao povo para melhor se perceber sozinho. “É solitário andar por entre a gente”, escreveu um Camões. (7) Assim também o conto “uma Noite no Lírico”, no último livro publicado por Lima Barreto, “Histórias e Sonhos”, em 1920 (portanto, dois anos antes de sua morte, em 1922, ano simbólico na Literatura Brasileira). No referido conto, encontramos um irônico observador que vai, certa noite, a uma peça no Teatro lírico, onde se reúnem as figuras mascaradas da high society, a fina flor da aristocracia fluminense. Para o protagonista, o espetáculo não é tão somente a ópera no palco, mas também os ‘tipos’ na platéia. E se observa é por não se identificar,é por se deixar na companhia de outros irônicos, que não perdem a oportunidade de ‘desmascarar’ a bela sociedade dos ‘ricaços’.
Fora as ‘figuras’ que aparecem na narrativa, as personagens caricaturais que Lima Barreto soube criar com ironia e amargura. Seja o jornalista Floc, desfilando com um saber que é um mero adorno, ou o talento multilingüístico do Dr. Ivã Gregoróvitch Rostóloff, a escrever em vários jornais nos mais variados idiomas. Tipos assim que usam o ‘saber’ tal uma alavanca de Arquimedes para deslocarem o mundo social. (8) Assim podem participar e atuar do ‘espetáculo’, com talento performático, mesmo sem os recursos ‘financeiros’ dos burgueses, que muitas vezes precisam comprar os ‘recursos intelectuais’ dos homens de talento. Assim é o que notamos no famoso conto “O Homem que sabia Javanês”, escrito em 1911, e publicado no volume “Clara dos Anjos e outras histórias”, em 1948 (!). no conto, o protagonista narra suas aventuras com seu ‘pseudo-saber’. Alega ser professor de ‘javanês’ e consegue encontrar gente singela o bastante para acreditar. E agraciado assim com a confiança de outrem, vai se aproveitando das circunstancias, as lacunas que surgem no jogo do poder consegue assim sua ascensão social.
As cenas do romance “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” são antológicas pela amostra (quase estatística) das várias circunstancias de preconceito sofridas por um ‘homem de cor’, desde sua humilhação, como suspeito de furto vulgar, o desprezo dos ‘figurões’, até o desrespeito a sua pessoa, em via pública, quando é incomodado, e o cidadão inconveniente não pede as devidas desculpas, como é o caso do bonde.
“Senti-me humilhado, esmagado, enfraquecido por uma vida de estudo, servir, de joguete, de irrisão a esses poderosos todos por aí. Hoje que sou um tanto letrado sei que Stendhal dissera que são esses momentos que fazem os Robespierres.”
No entanto, lembramos, serem estas as ‘recordações’, logo memórias de Isaías Caminha, quando de sua chegada a cidade, aos dezoito anos, com esperanças de deixar reluzir seu “brilho intelectual” para ‘compensar’ a ‘cor’ e a classe social (que segundo Taine – citado pelo próprio Lima Barreto – são determinantes para a formação do indivíduo), para ousar sua ‘ascensão social’ meio aos jornalistas, aquela gente respeitada por polícia e políticos, classes temerosas do papel de ‘publicidade’ da Imprensa, a tornar-se um verdadeiro “quarto poder”. Os jornalistas que atuam na caricatural Redação de “O Globo” (um nome fictício para o “Correio da Manhã”, fundado no RJ em 1901), farta de jornalistas-especialistas, com suas erudições vazias, feitas de fórmulas e lugares-comuns, mas vaidosos como se fossem gênios, segundo critica uma personagem, “os jornalistas dominam, querem ser adulados, chamados de gênios”. Gênios? Não mais do que ‘fazedores de notícias’ que confundem figuras e fatos históricos, citam obras universais que desconhecem, “A gente dos jornais do Rio só tem idéias feitas e clichês de opiniões de toda natureza incrustadas no cérebro.”
Toda uma arrogância que nasce desse “quarto poder”, como se os jornais fossem uma “espada de Dâmocles” suspensa por um fio sobre as cabeças dos poderosos, políticos e demais autoridades (in) competentes. Mesma idéia que é o germe do clássico “Ilusões Perdidas” (“Illusions Perdues”) de Honoré de Balzac, no seu ciclo “Comédia Humana” (“Commédie Humaine”), onde o ambiente de gráfica de província mostra a formação do jovem poeta que, chegando em Paris, descobre o jogo dos ‘talentos’. (9)
Isaías Caminha é um autor em formação, tem lá o seu esboço d romance na gaveta, igualmente chamado “Clara dos Anjos”, tal o autor Lima Barreto (assim a ‘identificação’ do autor com o protagonista ), ideia esboçada em conto (denominado igualmente “Clara dos Anjos” e publicado em “Histórias e Sonhos”), que precisa de sua dedicação, mas é sempre interrompido e importunados pelas turbulências sociais. Teme decair de sua sofrida ascensão, e voltar a condição humilde. É assim que o autor, o próprio Lima Barreto, revela no prefácio, que o Escrivão acabou se adaptando’: o antes sofrido Isaías Caminha agora aceita vestir a “túnica de Nessus” da sociedade, a prometida comodidade e felicidade. (10) Onde a alternativa seria o permanecer à margem,ou auto-destruir-se para não ‘jogar’ o jogo.
A idéia de ‘jogar o jogo’, essa de que a vida social é um jogo, e somos todos uns ‘homo ludens’ (11) é visível em outros contos de Lima Barreto, com destaque para o “Numa e Ninfa”, publicado em “Marginalia” (1953), que reúne crônicas, cartas, textos avulsos. O conto é uma sátira aos políticos, essa ‘corte de bajuladores’,na figura de Numa Pompílio de Castro (um eco do Dr. Castro de “Escrivão Isaías Caminha”?) (12) que, sem talentos, precisa aparentar os mesmos caso queira ‘subir na vida’, na conquista de cargos políticos.
“Aos poucos, com aquele seu faro de adivinhar onde estava o vencedor – qualidade que lhe vinha da ausência total de emoção, de imaginação, de personalidade forte e orgulhosa – Numa foi subindo.”
O político preocupado com a imagem, os discursos – que o apavoram! Então consegue com que a mulher escreva seus discursos – que passam a ser famosos! Depois, o político descobre não ser a mulher a autora dos discursos, mas um primo, um “poeta sem poesia”, mas talentoso quando se trata de discursos... A mulher pode até trair, mas não podem saber, lá na Câmara, que ele, Numa Pompílio de Castro, não escreve os seus discursos!
É uma ironia corrosiva a de Lima Barreto – onde respinga deixa marca. Sua crítica à imprensa, à política enquanto ‘encenação’, à incompetência das autoridades, à burocracia (onde se pode comparar ao clássico Franz Kafka), aos preconceitos de classe (no que se assemelha a um Gogol, no famoso “O Capote”), à própria literatura enquanto ‘idealização’. (13)
A crítica de Lima Barreto nasce de seu deslocamento no meio social, pouco à vontade entre os populares, atrasados quanto aos ‘quesitos’ consciência, e dignidade, e exilado da ‘alta sociedade’, por sua condição humilde. Asim, se um Machado de Assis conseguiu se impor e ascenderà um nível superior, Lima continuou preso à miséria, caindo literalmente à sarjeta. É sensível o ressentimento de Lima Barreto, mas não diminui sua obra – ajuda a comprndê-la. Assim, também a obra de Machado de Assis, se ousarmos uma comparação – visto ambos serem díspares. Se Machado foi para os bairros elegantes, erguido por seu ‘estilo’ à la Swift e Sterne, (14) “escrevendo para inglês ver” e “francês elogiar”, Lima Barreto nunca conseguiu livrar-se de seus espectros, e pagou caro por essa inadaptação.
Também pagou caro o Major Quaresma, fuzilado por traição. O agora clássico “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, escrito em 1911, e publicado em 1915, mostra o choque entre o idealismo e a “realidade”, em denuncia do fracasso do nacionalismo, do “idealismo patriótico”, nesse “Estado que não é Nação”chamado Brasil.
Policarpo Quaresma, o funcionário público eficiente como um relógio, é o nosso “Dom Quixote” nacional ( o primeiro a apontar tal analogia foi o crítico Oliveira Lima, o mesmo que compara o romance de Lima Barreto aos clássicos “O Mulato” e “Memórias de um Sargento de Milícias”, dentre outros).(15) ‘Quixote’ no sentido de vivenciar uma ‘idéia’. Relembramos um conto, em “Marginália”, onde um gênio incompreendido é vítima de seu excesso de idéias, algumas até boas, outras, nem tanto. “Ele e suas idéias” é um conto que resume, de certo modo, o enredo de “Policarpo Quaresma” – ampliado, no romance, pelos projetos de “reforma”.
O Brasil, o “país dos Bruzundangas”, como vemos em metáfora, mais conhecido (e explorado) por europeus, os primeiros exploradores, que descrevem a terra e suas exuberâncias, os franceses e os alemães, vide Léry ou Saint-Hilaire, ou Hans Staden, Humboldt, Handelmann, von Martius, M. Zu Wied-Neuwied, von Eschwege, den Stein, dentre outros. (16) Uma terra para os outros, nunca valorizada pelos próprios ‘brazucas’, que se deixam fascinar pelas ruínas de Roma ou pelos jardins parisienses.
Que Brasil é este? O “real” ou o do Major Quaresma? Que país queremos? O país da cartografia alemã ou dos clássicos que enfeitam a estante do nacionalista-falante-de-tupi-guarani Major Quaresma? O que pretende o nacionalista internado como louco? Sua reforma pela cultura, pela agricultura, pela política, é mero devaneio? É construto insano de um outro “Quixote”?
Em “Triste Fim de Policarpo Quaresma” é o indivíduo que pensa coletivo que sofre o peso da ignorância coletiva. Um povo guiado por corruptos, por preguiçosos (‘macunaímas’ antes do “Macunaíma” de Mário de Andrade, publicado uma década depois), por traidores-da-pátria. Militares sem escrúpulos, sedentos de poder, ou políticos que só pensam em suas carreiras sem contato com o povo, exceto em época de campanha eleitoral; funcionários públicos que cinicamente desempenham seus papéis de ‘paus mandados’. Jornalistas que fingem ler e fingem escrever, mantendo suas rações diárias de mentiras e falsificações. Eis o elenco deste triste romance. Nomeio de todos, hostilizado por todos, o Major Quaresma.
Qual o pecado do nacionalista Quaresma? (Certamente não é o de ser precursor de um Plínio Salgado, líder do movimento integralista, com ideologia pro-fascista.) (17) Será então a sua preocupação, a sua dedicação? A sua procura pelas “raízes do Brasil” (como também se dedicou um Sérgio Buarque de Hollanda)? (18) O seu excêntrico “requerimento” em vista da mediocridade do funcionalismo? Sua reforma agrária a partir do seu quintal? O que mais irritou Floriano, o Marechal-de-Ferro: a coragem de Quaresma ou a sua denúncia dos abusos do poder? (19)
Sempre Policarpo Quaresma é o excêntico. Só tem a admiração de sua afilhada Olga (que é nome de revolucionária, como registrará a História !), (20) uma jovem de pensamento e ação, que sabe como funciona o ‘teatro’ e tenta, em vão, abrir os olhos do padrinho idealista. Todos os demais, ao redor, têm é pena ou inveja do eficiente funcionário. Os demais ‘patriotas’ são caricaturas, aqueles pseudo-militares, aqueles senhores das letras que cortam e osturam frases para serem ‘clássicos’. É tudo uma falsificação – e o Quaresma vem como autêntico “realista”! pois o problema dos Brasil não é apenas as formigas saúvas, (21) mas os porcos gorduchos que se alimentam dos recursos da ‘máquina estatal’, movidos por suas ambições – e nunca por ‘interesse coletivo’. (22) Tudo isso já sabemos, leiamos ou não os jornais, atentemos ou não aos noticiários televisivos, sai governo e entra governo e não há mudança – é um problema estrutural e institucional, nascido do personalismo, do fisiocracismo, do coronelismo, da falta de ética, da falta de pensamento coletivo, de um plano de “Nação”.
O que é Nação ou nacionalismo além de uma ‘idéia’? afinal, “Estado” é estabelecido e delimitado por um “ordenamento jurídico”, uma Constituição, Lex Maxima, e possui um território e uma organização das forças de segurança. Mas uma ‘nação’, o que será? Uma etnia, um idioma, um sentimento de ‘pertença’? Deixamos o problema aos antropólogos, etnólogos, sociólogos. Descrevemos a ‘atmosfera temática’ do romance. Será que nosso nacionalismo nasceu com a Inconfidência Mineira? Ou com a Independência por capricho do Príncipe? Ou com as revoltas provinciais? Ou com a Guerra do Paraguai (a maior guerra da América Latina)? Por que somos um país ‘inteiro’ e não uma ‘colcha de retalhos’ como aconteceu com a América hispânica? Por que o tabu constitucional da “indivisibilidade territorial” e da “indissolubiliade da Federação”? (23)
O objetivo do presente Ensaio não é repassar os pontos e cenas do enredo, que seria tema para uma crítica literária, e um tanto exaustiva aqui. Este ensaio visa situar a obra de Lima Barreto na Literatura Brasileira. Estamos a analisar e repensar os temas de sua obra – a solidão, o preconceito, o nacionalismo-idealista, a burocracia labiríntica, o jornalismo mascarado. Assuntos e figuras que já encontramos na literatura européia (particularmente a francesa e a russa), desde Balzac, ou Maupassant, ou Zola, ou num lusitano Eça de Queirós. (24)
Desde o escrivão Pero Vaz de Caminha (25) estamos encantados com a exuberância da terra. O “onde se plantando tudo dá”, embasbacados, enquanto outros cuidam em extrair as preciosidades. As políticas de extrativismo se chocam com as políticas de preservação ambiental, as políticas de reservas indígenas se chocam com as políticas de reforma agrária. Nunca um projeto é levado até o fim, cada governo que sobe ao poder, desfaz os projetos e ações do anterior.
Para melhor apresentar sua crítica, o escritor Lima Barreto usa e abusa da ironia, das personagens caricaturais, que causou ‘mal-estar’ na época, e crítica nos meios literários. Acusam que o Autor não descreve ‘psicologicamente’ as personagens, como esperam os leitores acostumados com um Dostoiévski. (26) Na verdade, Lima Barreto deixa que o leitor ‘monte’ a personagem, nas próprias vicissitudes da narrativa. Deixa ao leitor a tarefa de apreeender os detalhes – as personagens que merecem nossa atenção. Lima Barreto não é um “anarquista individualista” somente por ter intitulado seus romances com os nomes dos protagonistas (Isaías Caminha, Gonzaga de Sá, Policarpo Quaresma, Clara dos Anjos, Numa – assim também um Machado de Assis, com Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Helena), e muito menos um autor de “coletivistas” (era um socialista, mas duvido que tivesse, se sobrevivido, elogiado a literatura do “realismo soviético”), uma vez que sua preocupação é o choque entre a “idéia” e a “realidade” (sem ‘platonismo’ aqui, pois o choque se realiza a nível de “matéria”, num materialismo cru, não apenas na linguagem). (27)
Assim é que concebeu “Clara dos Anjos”, numa ampliação do conto publicado em “Histórias e Sonhos” (1920), onde a protagonista é apagada, se comparada com o ‘algoz’, o ‘antagonista’, o sedutor, que está apenas um degrau acima na “escada social”, com arrogancias de descendente de aristocratas decadentes. A mulatinha cai submissa aos encantos do músico, rapaz de assaz irresponsabilidade, e ela acaba por pagar o preço, descobre a sua ‘infeioridade social’, o preconceito de ‘cor’ – “Não somos nada nesta vida”. Lembramos, a propósito, que desdeo início de “Escrivão Isaías Caminha” encontramos referências às condições das moças mulatas. (Hoje elas são ‘estrelas’ na passarela de Carnaval...)
Clara dos Anjos é ‘apagada’ ? na verdade, Clara dos Anjos está à margem e lá permanece. Sofre as ações e se resigna. Está distante de qualquer poder ou decisão. Até o seu corpo pertence a outro. A condição da mulher, ignorante e indecisa, a menos que aprenda a ‘jogar o jogo’. E sempre aprende tarde demais – quando já perdeu. E Clara dos Anjos perde tudo – até a sua dignidade, ao implorar a consideração da mãe do rapaz sedutor.
Contrariando os críticos que encontram na obra de Lima Barreto apenas “caricaturas”, encontramos neste romance “Clara dos Anjos”, o poeta Leonardo Flores. Um descontente, um frustrado, mas preocupado com o coletivo,com algo além dele mesmo. Sua frustração nasce de não ser reconhecido ou de “jogar pérola aos porcos” – omo fazem muitos poetas que passam a se ‘prostituir’, escrevendo para jornais, recebendo para tecer elogios a alguma efeméride política. Resignado a viver ali nos subúrbios, na periferia d vida social, sem fama e lauréis, o poeta Flores desabafa: “O subúrbio é o refúgio dos infelizes”, quando uma pluralidade de vidas decadentes se unem num mosaico de indignidades e humilhações. Distantes dos centros de poder, afastados dos ambientes de cultura. Criam suas próprias ‘esferas de influências’, cultivam suas culturas populares, marginais (de à margem).
O poeta Leonardo Flores pode certamente conter um ‘traço autobiográfico’ do autor Lima Barreto. Ainda o ‘gênio incompreendido”, o ser afastado do convívio e que cai (literalmente) nas sarjetas do vício, embriagado de talento e álcool. Outra personagem que elabora planos sensacionais e deixa-se perder na mediocridade. Outro que ousou um “salto maior dos que as pernas”.
Essa queda na “degenerescência”, a vertigem do vício, a auto-destruição do homem de talento, é a pesquisa do Dr. Caruru, no conto “As Teorias do Doutor Caruru”, presente em “Marginália”, onde o referido doutor pouco deve a um Simão Bacamarte de “O Alienista” de Machado de Assis. O Dr. Caruru quer encontrar sinais de ‘degenerescência’ no aspecto físico dos ‘degenerados’, analisando vivos e mortos, atrás de provas para a sua teoria.
A crítica de Lima Barreto não é contra a Ciência, mas contra a pseudo-ciência, o cientifismo já reinante, a “Razão Instrumental” (como entendemos pela análise de Adorno e Horkheimer), (28) que tudo condiciona ao crivo do “método científico”. Assim a crítica do Autor aos pseudo-literatos, não contra a Literatura, única possível ‘devoção’ do escritor, que esperva que sua escrita pudesse despertar debates e projetos de mudança. (No mais, por que escreve um autor? Por vaidade? Para entulhar as gavetas com idéias materalizadas em papel?)
Lima Barreto acreditava piamente, digamos, na escrita e ono ofício do escritor, qundo diz, “O romancista é de alguma forma um descobridor e melhor tratado de estética é ainda o Discursos do Método, de Descartes” (29) assim, a Estética se elabora na própria “estética” usada, não numa ‘forma’ platônica. Explica-se a não preoupação formal do Autor, que espera antes a compreensão do que ‘floreamentos estilísticos’. Ser compreendido é o que ele espera pelo didatismo que se nota. Uma necessiade de informar, e ‘sacudir’ o leitor, jogando com desassossego e com o humor, mostrando a ignorância e o vício como indignidades patéticas.
Enquanto outros autores, como Manuel Antônio de Almeida, de “Memórias de um Sargento de Milícias”, a incomodar pelo anti-romântico do protagonista ‘peralta’, um verdadeiro ‘pícaro’ brasileiro, ao estilo de Lazarillo de Tormes (30); ou Aluísio Azevedo, autor de “O Mulato” e “O Cortiço”, vem retratar coletivos, através de suas partes (indivíduos) caracterísitticas; a escrita de Lima Barreto procura se equilibrar entre a ironia e a compaixão, quando em algum momento o leitor se indigna junto com Isaías, sofre junto com Policarpo, ou se permite sentir piedade por Clara. Se as personagens representam ‘coletivos’, também são indivíduos “humanos, demasiadamente humanos” (no dizer de Nietzsche.) (31)
Um conto onde é patente essa necesidade de ‘comover’, onde o ‘excêntrico’ busca compreensão, é encontrado em “Histórias e Sonhos”, com o exdrúxulo título “Dentes Negros e Cabelos Azuis”, onde o protagonista é de súbito assaltado nas sombras da noite, mas deixa o assaltante estarrecido, quando o larápio nota o aspecto ‘esquisito’ da vítima, com dentes enegrecidos e cabelos azulados. Pessoa, assim, que é desprezada por seu aspecto físico, a sentir-se hostilizado pelo ‘mundo’ ao redor. Logo, o assaltante está apiedado do sofrimento do estranho protagonista.
Os diferentes, os excêntricos, os loucos fazem parte da longa galeria de personagens do autor Lima Barreto, que sempre acreditouque os ‘deslocados’, os ‘malucos’, eram os ‘criativos’ por excelência, que inquietavam o mundo a ponto de provocar mudanças. “Estou cansado de dizer que os malucos foram os reformadores do mundo”, diz o autor no curto texto “Elogio da Morte”, presente em “Marginália”, onde escreve que é a morte quem nos ‘consagra’, sendo a ‘grande libertadora’, elevando o artista depois de sua morte, “autor bom é autor morto”, diríamos hoje, e finaliza o texto com ironia, em citação machadiana, “Ao vencedor, as batatas!” (32)
O romance “Clara dos Anjos” foi publicado em 1948, a partir de notações e esboços do Autor – é, portnto, obra incompleta. Em seu “Diário Íntimo”, publicado em 1953, encontra-se várias notas sobre oenredo do romance planejado, com um painel da vida marginalizada da população negra, como se vê em trecho do “Diário”, de dezembro de 1904, “A sedução de Clara passara-se no dia 13 de maio.”, uma vez que a Lei Áurea nada mudou quanto a presença do preconceito (a lembrar-se que Lima Barreto nasceu num 13 de maio, sete anos antes da “Lei da Abolição”.)
Sua labuta com a escrita se percebe no “Diário” quando de seus esboços, detalhes de enredos, construção das personagens, a constar datas de nascimento, filiações, carcterísticas físicas e de personalidade. Vê-se bem que Lima Barreto não teve equilíbiro – nem tempo – para melhor elaborar e finalizar suas obras. Sempre escrevia uma, com um pensmento já direcionado a outra, pois idéias não faltam ao Autor (vide o conto “Ele e suas idéias”, onde um homem muito produtivo em idéias, torna-se incômodo.)
Assim, em fevereiro de 1905, Lima Barreto está escrevendo um livro – o “Clara dos Anjos” – e finalizando (também a revisão) de “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, cujo prefácio foi escrito em julho de 1905, com escrita concluída em 1908, finalmente publicado em 1909. Trabalha com esboços para o seu “Gonzaga de Sá”, desde abril de 1906, o distinto “oficial da Secretaria dos Cultos”, o grande reformador, preocupado com a imagem do Brasil, que perde em ‘glamour’ para as belezas civilizadas européias. Encontramos essa ansia de reforma num escrito avulso do Gonzaga, onde espera que se o Rio de jneiro quier ser “grande cidade”, ao estilo europeu, de “arrasar as montanhas” – e aterrar a Baía de Gunabara! E para ser metrópole respeitável, “deve ficar à margem de um rio respeitável” – um Rio Paraíba até que serviria, “para preencher um fim tão civilizador.”
Com o pensamento em “Gonzaga de Sá”, Lima Barreto conclui “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” em 1909, e desabafa, no “Diário”, “obedecer o meu Taine: a obra de arte tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem.”, quando seu obejtivo não é apens ‘retratar’, ccomo pretendem os naturalistas, mas incomodar, ‘fazer pensar’, ao apresentar ao leitor cenas risíveis, que deixam uma pausa para meditar sobre o ridículo e o ‘absurdo’.
O romance “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” foi concluído em 1907 e 1910, e finalmente publicado em São Paulo, em fevereiro de 1919. contudo, não gerou a polêmica de um “Escrivão Isaías Caminha”, cuja presença foi sufocada pela Imprensa, a primeira a sentir-se agredida. Assim, os militares quando perceberam o “Policarpo Quaresma”, onde os homens de farda receberam um ‘tratamento irônico’ (asssim aquele Almirante que, enviado para a Guerra do Paraguai, foi procurar seu navio no Rio Amazaonas!). Não conseguido falar nas entrelinhas, como bem sabia um Machado de Asis, o ressentido Lima Barreto foi colecionando inimizades, inutilmente, quando o que mais precisava era de admiradores e seguidores. Afinal, seu discurso não é egocêntrico, mas coletivo, ele não espera a fama, mas a compreensão.
Hoje, encontramos romancistas que acabam optando pelo ‘choque’ do que pela ‘simpatia’. Apresentam a denúncia que descortina cenários que muitos preferem ignorar, ou até ocultar. Se Lima Barreto hoje tem ‘seguidores’ é na literatura que apresenta a “vida como ela é”, não exatamente um Nelson Rodrigues, no teatro, ou Rubem Fonseca, na prosa, mas a literatura que trata das condições dos marginalizados, que sofrem toda espécie de exclusão, na senzala da periferia e das favelas. Assim um aclamado “Cidade de Deus”, de Paulo Lins, ou um polêmico “Cabeça de Porco”, de MV Bill e colaboradores, que trazem para os meios literários as discussões sobre preconceito, exclusão social, narcotráfico, seguranças pública, todo um drama de violência, estrutural e cíclica, que atordoa atualmente o Brasil, antes cognominado “O país do futuro”. (33)
set/10
revs. Mai/11
Notas e Referências
(1) Lima Barreto ‘leitor de Aluísio Azevedo’. Certos críticos ressaltam este ponto, em flagrante caso de “angústia de influencia” (“anxiety of influence”, segundo o scholar Harold Bloom). Contudo, outros notam que na biblioteca de Lima Barreto não haviam livros de Aluísio Azevedo. E encontraram volumes de Machado de Assis, autor que Lima Barreto não perdia ocasião para criticar.
(2) Émile Zola, autor francês, fim do século 19, é aqui citado por várias referências do próprio Lima Barreto, atento aos panoramas literários cosmopolitas.
(3) A dicotomia “forma” e “conteúdo” continua. Encontramos autores com estilísitcas, mas sem algo a dizer. E autores panfletários, imaginativos, senhores de um enredo inusitado, mas não dominam o estilo, deslizam na gramática, etc.
(4) Edgar Allan Poe é lembrado quando se faz referência à ‘literatura de fantasia’. Uma vez que Poe aproveita fatos cotidianos para encher de ‘terror’ os leitores. Depois a literatura conhecerá um Kafka, um Borges, um Cortázar, um García Márquez, mestres do “realismo fantástico”. Além disso, Poe sofria da mesma obsessão alcóolica, e se auto-destruiu.
(5) Hypolite Taine é um pensador francês que defendia que o indivíduo está determinado por sua raça, condição social, época histórica. E dessa determinação não pode fugir. No século 20, contra tal ‘fatalismo’, Jean-Paul Sartre fala em ‘pré-determinismo’, mas que ‘em situação’ o indivíduo é livre, para fazer algo além do que as condições fizeram dele.
(6) A literatura de transição Monarquia para estruturação da República é muito farta em referências. Basta ver “Esaú e Jacó” de Machado de Assis. O pano de fundo histórico é realçado, as personagens estão mergulhadas nas turbulências da época. E Lima Barreto escreve, não exatamente romances históricos, mas enredos que se referem constantemente aos acontecimentos históricos. O declínio da Monarquia, a Guerra do Paraguai, a Abolição da Escravatura, a república dos marechais, a Revolta da Armada, A revolta da vacina, a política do café-com-leite, a Primeira Guerra Mundial.
(7) As referências á Camões, Baudelaire e Walter Benjamin, podem ser ressaltadas, ou descartadas. É o fenômeno da leitura, quando se pode fazer ‘links’ à outras leituras. A solidão no meio das multidão é encontrada na pena de numerosos autores. Contudo a figura solitária do poeta Baudelaire é ícone. E W. Benjamin confirma. O ‘flâneur’ observa, em suas andanças, um mundo no qual se sente deslocado. É um mundo digno de pena e ironia, um mundo-outro.
(8) Arquimedes é aquele pensador e técnico grego que construiu aparelhos de guerra para quem pagasse mais. E descobriu um princípio sobre flutuação dos corpos. Também mencionou o caso da alavanca, que se lhe dessem uma descomunal alavanca, e um ponto de apoio, ele poderia deslocar o planeta!
(9) A expressão “quarto poder” é aplicada a Imprensa, à Mídia em geral, como a demonstrar o poder da influência sobre os demais poderes, constitucionalmente estabelecidos, por inspiração de Montesquieu. Lembramos logo de “Citizen Kane”, de Orson Welles, filme emblemático. E no mais, temos o caso Watergate, que levou Nixon à renúncia. Tudo começou com uma denúncia de dois jornalistas. A “espada de Dâmocles” é uma referência à mitologia grega, como demonstração do risco iminente, a ameaça da Imprensa, no caso. Quanto às menções clássicas ao poder jornalístico, temos um Balzac, que conhcia muito bem o s bastidores das notícias, a sociedade parisiense e provinciana do século 19.
(10) “Túnica de Nessus” é outra expressão tirada da mitologia grega, por impulso do próprio Lima Barreto. Trata-se da túnica que o centauro Nessus ofertou a Dejanira, esposa de Hércules. Temendo ser traída, ela vestiu a túnica no herói e este morreu dolorosamente. É um metáfora para o presente perigoso, que parece trazer o bem, mas traz uma oculta desgraça.
(11) Referência a expressão “homo ludens” , do livro homônimo, lançado em 1938, pelo filósofo holandês Johan Huizinga (1872-1945), onde argumenta que todas as atividades humanas podem ser vistas como um ‘jogo’, ‘sub specie ludi’ (tipo um jogo)
(12) O nome do protagonista, Numa Pompílio, evoca algo da pompa e grandiosidade da política romana no apogeu. Nem se precisa descrever vidas e feitos de senadores e generais romanos para saber o que representa o “poder”.
(13) A crítica à burocracia encontra sua figura clássica em Kafka, o autor dos labirínticos “O Processo” e “O Castelo”, onde o terror implícito é a máquina burocrática que está em todos os cantos e recantos da existência. Submetido, classificado, catalogado, numerado, vigiado, o cidadão nasce e cresce, e reproduz o fenômeno da catalogação, numeração, submissão, etc. E o escritor russo Gógol, autor de “Taras Bulba” (de ares mais históricos e épicos) escreveu o célebre conto, “O Capote”, onde já antevemos algo de Kafka. As condições que tiram do homem a sua almejada liberdade.
(14) As referências à (Jonathan) Swift e à (Laurence) Sterne, escritores ingleses de fins do século 18, autores de “Viagens de Gulliver”, e “A Vida e Opinião de Trsitam Shandy”, respectivamente, se explicam pelas iniciativas dos próprios críticos (favoráveis ou não) ao clássico Machado de Assis, quando o acusam de “angústia de influência” com relação aos autores citados. Esquecem a amplitude das leituras de Machado de Assis, que conhecia bem os franceses, só para citar, Montaigne, Pascal e La Fontaine.
(15) Os clássicos citados, no âmbito da Literatura Brasileira do século 19, tem por autores, respectivamente, Aluísio Azevedo e Manuel Antônio de Almeida (que usava o pseudônimo de “Um Brasileiro”). No mais, lembramos que Almeida foi o ‘patrão’ do aprendiz de tipógrafo Machado de Assis, na Tipografia Nacional, em meados do século 19.
(16) Os autores franceses e alemães citados compõem um panorama amplo da etnografia, da cartografia analítica e da geografia ‘antropológica’ dos séculos 16 ao 19, com suas viagens de exploração e minuciosas descrições de regiões, ambientes e populações.
(17) A referência ao escritor e líder político Plínio Salgado aqui se explica pela ousadia de sua escrita e sua ânsia de mudança, quando procura conciliar catolicismo e fascismo, disciplina e patriotismo, com uniformes, ícones, emblemas, rituais e saudações – o famoso “Anauê”, advindo tupi-guarani(!) Traz, ou não, evocações de um Major Quaresma? (É de se perguntar se Plínio Salgado leu o romance de Lima Barreto).
(18) “Raízes do Brasil”, publicado em 1936, é um clássico da historiografia nacional, com a autoria do erudito Sérgio Buarque de Holanda, autor de outra obra fundamental, “Visão do Paraíso” (1959). Contudo, hoje em dia, é lembrado apenas como sendo o pai do músico (e também escritor) Chico Buarque.
(19) Floriano Peixoto, o “Marechal-de-Ferro”, que consolidou a República, é uma das personalidades históricas que adentram o universo dos romances de Lima Barreto. Demonstra a importância que o Autor concedia ao ‘contexto’ social da época.
(20) Referência a Olga Benario Prestes que, tal uma Anita Garibaldi, foi “heroína de dois mundos”, atuando na Alemanha, contra os nazistas em ascensão, e aqui no Brasil, apoiando Carlos Prestes na Intentona Comunista de 1935. Com o fracasso da suposta ‘revolução comunista’, com a prisão dos responsáveis, Olga foi extraditada para a Alemanha, onde caiu nas masmorras da Gestapo, até morrer num campo de concentração.
(21) A famosa frase “ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil” é de quem? Do Lima ou do Mário de Andrade? Ou é fala popular?
(22) A referência aos porcos é uma alusão ao clássico “Animal Farm”, do autor inglês George Orwell, onde os porcos se ‘apropriam’ da ‘revolução dos animais’ (contra os humanos), tornando-se os novos ditadores. Crítica ao frustrante episódio soviético, com a ascensão de Stálin e dos burocratas do Partido. Também alusão à canção “Pigs on the Wind” da banda inglesa Pink Floyd, no álbum “Animals”, de 1977, inspirado no clássico de Orwell. Onde o “teatro social” é um imenso zoológico. Os porcos são os políticos; os cães, os que mantêm a ordem (as forças de segurança, os militares, os guardas); e as ovelhas, as massas submissas e manipuladas.
(23) O texto cita incisos da Constituição Federal de 1988, sobre a organização da Federação. Também enumera “marcos” da História brasileira, com revirvoltas e reacomodações sociais e políticas, a indagar em quais dos eventos o povo foi protagonista (aliás, em qual mesmo?)
(24) Autores franceses que demonstram as mesmas preocupações de Lima Barreto, isto é, a literatura deve ter uma mensagem, uma denúncia social, contudo sem cair no panfletário.
(25) Pero Vaz de Caminha, escrivão que relatou, em sua famosa Carta ao El-rei D. Manuel, de Portugal, a chegada da frota de Álvares de Cabral em praias brasileiras. Sua linguagem é pomposa e imagética, idealizada – igual a letra do futuro Hino Nacional - que mostra uma visão sempre desfocada do que seja a Nação, não ‘algo que é’ mas ‘algo a ser construído’.
(26) A referência ao autor russo (Fiódor) Dostoiévski se justifica pelo ‘contraponto’ a Lima Barreto, pois quando o russo analisa as personagens de ‘dentro para fora’, o brasileiro as descreve de ‘fora para dentro’.
(27) A referência aos títulos de Machado de Assis se justifica pelo paralelismo entre os autores, uma vez que nomes de personagens estão em contraponto com adjetivações e nomes de locais. Exemplificando, é diverso intitular como “O Mulato” (A. Azevedo) e “Helena” (M. de Assis), ou ainda “O Cortiço” ( A. Azevedo) e “Clara dos Anjos” (L. Barreto). A ênfase se faz do indivíduo para o coletivo, ou do coletivo para o indivíduo, como em qualquer análise sociológica. Afinal, é discussão inútil, pois toda ‘psicologia’ é ‘social’, o “eu” é um ‘produto’ coletivo, do meio - como sobrevive um indivíduo sem o apoio social?
(28) A referência à obra de Adorno e Horkheimer, “A Dialética do Esclarecimento”(“Die Dialetik der Aufklärung”, 1950) se justifica pela crítica aos ‘ideais iluministas’, com as promessas de uma ‘sociedade racional’, e realizaram apenas uma hegemonia da “Razão Instrumental”, que visa os fins, sem se importar com os meios.
(29) Lima Barreto era um declarado admirador do pensador francês René Descartes, que partia da dúvida para chegar a alguma certeza. Ou então, por usar um “método” que visa duvidar, até que se prove o contrário – “dúvida metodológica”.
(30) Referência ao ‘romance picaresco’ espanhol, séculos 16 e 17, inaugurado pelo clássico “Vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades” ou “El Lazarillo” (1554); autores possíveis (não se sabe ao certo): Diego Hurtado de Mendoza, Sebastian de Horozco (1510-80), Lope de Rueda (1505-65); obra com narrativa em 1ª. pessoa, cheia de alusões, digressões, diálogos jocosos, até obscenos, com um protagonista ‘pícaro’, isto é, um indivíduo maroto, ardiloso, cheio de manhas e em mil aventuras. Possível inspiração para o “Tristam Shandy” de Sterne, publicado em 1759, quando o ‘picaresco’ já era decadente na Espanha. Uma observação aqui é o título da obra de Lima Barreto, “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” (1919) cujo título engana o leitor, pois a narrativa nada mais é do que a exposição das ideias de Gonzaga de Sá. De picarescos, no Brasil, temos um Pedro Malasartes e um Macunaíma, além do Viramundo, do romance “O Grande Mentecapto” de Fernando Sabino (em 3ª. ps), e os clássicos “Grande Sertão:Veredas”, de Guimarães Rosa e “O Coronel e o Lobisomem” de J Cândido de Carvalho (ambas em 1ª. ps.) , que se inspiraram no estilo. Ainda há outro escritor, no Brasil, que explorou técnicas do estilo – personagens excêntricos, marcantes, abusados - e foi Jorge Amado (ver).
(31)A referência ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche se justifica pel importância da “vontade” individual. O ser não é apenas ‘coletivo’ (senão ficaríamos em Marx e Comte), mas reage ao coletivo, e até ‘destaca-se’ do coletivo, para seu benefício ou decadência, punição, mas não é um ‘mero fantoche’. Por mais que esteja ‘condicionado’ ainda há um espaço de escolha e decisão. Sem isso, não seriam seres humanos, mas animais.
(32)A frase famosa, do enredo de “Quincas Borba”, ecoa nas páginas de Lima Barreto, como uma fina ironia a Machado de Assis, que comparado com Barreto, subiu na vida, isto é, conseguiu aprovação social, fundou uma Academia de Letras ao estilo francês, foi respeitado e frequentou a vida elegante na Capital.
(33)Está em voga e na mídia toda uma literatura que é formada nos subúrbios, e que trata da vida na periferia, ou em área de risco social (eufemismo para ‘favelas’, aglomerados sem urbanização), que são as ‘senzalas’ da modernidade. A abolição da escravatura não bastou para integrar o negro e afro-descendentes a vida social. Hoje, a Literatura do “ressentimento” continua borbulhando ao ritmo de um RAP com um mesma carga de racismo, apenas com carga e vetor invertidos. Quando o discurso de integração é fraco, o “sistema de cotas” é inútil, a rebelião do particularismo, do “espírito de gueto” faz-se presente – o que faz um garoto branco subindo o morro, uma menina loira dançando funk? Depende do olhar – e do preconceito.
(4) Edgar Allan Poe é lembrado quando se faz referência à ‘literatura de fantasia’. Uma vez que Poe aproveita fatos cotidianos para encher de ‘terror’ os leitores. Depois a literatura conhecerá um Kafka, um Borges, um Cortázar, um García Márquez, mestres do “realismo fantástico”. Além disso, Poe sofria da mesma obsessão alcóolica, e se auto-destruiu.
(5) Hypolite Taine é um pensador francês que defendia que o indivíduo está determinado por sua raça, condição social, época histórica. E dessa determinação não pode fugir. No século 20, contra tal ‘fatalismo’, Jean-Paul Sartre fala em ‘pré-determinismo’, mas que ‘em situação’ o indivíduo é livre, para fazer algo além do que as condições fizeram dele.
(6) A literatura de transição Monarquia para estruturação da República é muito farta em referências. Basta ver “Esaú e Jacó” de Machado de Assis. O pano de fundo histórico é realçado, as personagens estão mergulhadas nas turbulências da época. E Lima Barreto escreve, não exatamente romances históricos, mas enredos que se referem constantemente aos acontecimentos históricos. O declínio da Monarquia, a Guerra do Paraguai, a Abolição da Escravatura, a república dos marechais, a Revolta da Armada, A revolta da vacina, a política do café-com-leite, a Primeira Guerra Mundial.
(7) As referências á Camões, Baudelaire e Walter Benjamin, podem ser ressaltadas, ou descartadas. É o fenômeno da leitura, quando se pode fazer ‘links’ à outras leituras. A solidão no meio das multidão é encontrada na pena de numerosos autores. Contudo a figura solitária do poeta Baudelaire é ícone. E W. Benjamin confirma. O ‘flâneur’ observa, em suas andanças, um mundo no qual se sente deslocado. É um mundo digno de pena e ironia, um mundo-outro.
(8) Arquimedes é aquele pensador e técnico grego que construiu aparelhos de guerra para quem pagasse mais. E descobriu um princípio sobre flutuação dos corpos. Também mencionou o caso da alavanca, que se lhe dessem uma descomunal alavanca, e um ponto de apoio, ele poderia deslocar o planeta!
(9) A expressão “quarto poder” é aplicada a Imprensa, à Mídia em geral, como a demonstrar o poder da influência sobre os demais poderes, constitucionalmente estabelecidos, por inspiração de Montesquieu. Lembramos logo de “Citizen Kane”, de Orson Welles, filme emblemático. E no mais, temos o caso Watergate, que levou Nixon à renúncia. Tudo começou com uma denúncia de dois jornalistas. A “espada de Dâmocles” é uma referência à mitologia grega, como demonstração do risco iminente, a ameaça da Imprensa, no caso. Quanto às menções clássicas ao poder jornalístico, temos um Balzac, que conhcia muito bem o s bastidores das notícias, a sociedade parisiense e provinciana do século 19.
(10) “Túnica de Nessus” é outra expressão tirada da mitologia grega, por impulso do próprio Lima Barreto. Trata-se da túnica que o centauro Nessus ofertou a Dejanira, esposa de Hércules. Temendo ser traída, ela vestiu a túnica no herói e este morreu dolorosamente. É um metáfora para o presente perigoso, que parece trazer o bem, mas traz uma oculta desgraça.
(11) Referência a expressão “homo ludens” , do livro homônimo, lançado em 1938, pelo filósofo holandês Johan Huizinga (1872-1945), onde argumenta que todas as atividades humanas podem ser vistas como um ‘jogo’, ‘sub specie ludi’ (tipo um jogo)
(12) O nome do protagonista, Numa Pompílio, evoca algo da pompa e grandiosidade da política romana no apogeu. Nem se precisa descrever vidas e feitos de senadores e generais romanos para saber o que representa o “poder”.
(13) A crítica à burocracia encontra sua figura clássica em Kafka, o autor dos labirínticos “O Processo” e “O Castelo”, onde o terror implícito é a máquina burocrática que está em todos os cantos e recantos da existência. Submetido, classificado, catalogado, numerado, vigiado, o cidadão nasce e cresce, e reproduz o fenômeno da catalogação, numeração, submissão, etc. E o escritor russo Gógol, autor de “Taras Bulba” (de ares mais históricos e épicos) escreveu o célebre conto, “O Capote”, onde já antevemos algo de Kafka. As condições que tiram do homem a sua almejada liberdade.
(14) As referências à (Jonathan) Swift e à (Laurence) Sterne, escritores ingleses de fins do século 18, autores de “Viagens de Gulliver”, e “A Vida e Opinião de Trsitam Shandy”, respectivamente, se explicam pelas iniciativas dos próprios críticos (favoráveis ou não) ao clássico Machado de Assis, quando o acusam de “angústia de influência” com relação aos autores citados. Esquecem a amplitude das leituras de Machado de Assis, que conhecia bem os franceses, só para citar, Montaigne, Pascal e La Fontaine.
(15) Os clássicos citados, no âmbito da Literatura Brasileira do século 19, tem por autores, respectivamente, Aluísio Azevedo e Manuel Antônio de Almeida (que usava o pseudônimo de “Um Brasileiro”). No mais, lembramos que Almeida foi o ‘patrão’ do aprendiz de tipógrafo Machado de Assis, na Tipografia Nacional, em meados do século 19.
(16) Os autores franceses e alemães citados compõem um panorama amplo da etnografia, da cartografia analítica e da geografia ‘antropológica’ dos séculos 16 ao 19, com suas viagens de exploração e minuciosas descrições de regiões, ambientes e populações.
(17) A referência ao escritor e líder político Plínio Salgado aqui se explica pela ousadia de sua escrita e sua ânsia de mudança, quando procura conciliar catolicismo e fascismo, disciplina e patriotismo, com uniformes, ícones, emblemas, rituais e saudações – o famoso “Anauê”, advindo tupi-guarani(!) Traz, ou não, evocações de um Major Quaresma? (É de se perguntar se Plínio Salgado leu o romance de Lima Barreto).
(18) “Raízes do Brasil”, publicado em 1936, é um clássico da historiografia nacional, com a autoria do erudito Sérgio Buarque de Holanda, autor de outra obra fundamental, “Visão do Paraíso” (1959). Contudo, hoje em dia, é lembrado apenas como sendo o pai do músico (e também escritor) Chico Buarque.
(19) Floriano Peixoto, o “Marechal-de-Ferro”, que consolidou a República, é uma das personalidades históricas que adentram o universo dos romances de Lima Barreto. Demonstra a importância que o Autor concedia ao ‘contexto’ social da época.
(20) Referência a Olga Benario Prestes que, tal uma Anita Garibaldi, foi “heroína de dois mundos”, atuando na Alemanha, contra os nazistas em ascensão, e aqui no Brasil, apoiando Carlos Prestes na Intentona Comunista de 1935. Com o fracasso da suposta ‘revolução comunista’, com a prisão dos responsáveis, Olga foi extraditada para a Alemanha, onde caiu nas masmorras da Gestapo, até morrer num campo de concentração.
(21) A famosa frase “ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil” é de quem? Do Lima ou do Mário de Andrade? Ou é fala popular?
(22) A referência aos porcos é uma alusão ao clássico “Animal Farm”, do autor inglês George Orwell, onde os porcos se ‘apropriam’ da ‘revolução dos animais’ (contra os humanos), tornando-se os novos ditadores. Crítica ao frustrante episódio soviético, com a ascensão de Stálin e dos burocratas do Partido. Também alusão à canção “Pigs on the Wind” da banda inglesa Pink Floyd, no álbum “Animals”, de 1977, inspirado no clássico de Orwell. Onde o “teatro social” é um imenso zoológico. Os porcos são os políticos; os cães, os que mantêm a ordem (as forças de segurança, os militares, os guardas); e as ovelhas, as massas submissas e manipuladas.
(23) O texto cita incisos da Constituição Federal de 1988, sobre a organização da Federação. Também enumera “marcos” da História brasileira, com revirvoltas e reacomodações sociais e políticas, a indagar em quais dos eventos o povo foi protagonista (aliás, em qual mesmo?)
(24) Autores franceses que demonstram as mesmas preocupações de Lima Barreto, isto é, a literatura deve ter uma mensagem, uma denúncia social, contudo sem cair no panfletário.
(25) Pero Vaz de Caminha, escrivão que relatou, em sua famosa Carta ao El-rei D. Manuel, de Portugal, a chegada da frota de Álvares de Cabral em praias brasileiras. Sua linguagem é pomposa e imagética, idealizada – igual a letra do futuro Hino Nacional - que mostra uma visão sempre desfocada do que seja a Nação, não ‘algo que é’ mas ‘algo a ser construído’.
(26) A referência ao autor russo (Fiódor) Dostoiévski se justifica pelo ‘contraponto’ a Lima Barreto, pois quando o russo analisa as personagens de ‘dentro para fora’, o brasileiro as descreve de ‘fora para dentro’.
(27) A referência aos títulos de Machado de Assis se justifica pelo paralelismo entre os autores, uma vez que nomes de personagens estão em contraponto com adjetivações e nomes de locais. Exemplificando, é diverso intitular como “O Mulato” (A. Azevedo) e “Helena” (M. de Assis), ou ainda “O Cortiço” ( A. Azevedo) e “Clara dos Anjos” (L. Barreto). A ênfase se faz do indivíduo para o coletivo, ou do coletivo para o indivíduo, como em qualquer análise sociológica. Afinal, é discussão inútil, pois toda ‘psicologia’ é ‘social’, o “eu” é um ‘produto’ coletivo, do meio - como sobrevive um indivíduo sem o apoio social?
(28) A referência à obra de Adorno e Horkheimer, “A Dialética do Esclarecimento”(“Die Dialetik der Aufklärung”, 1950) se justifica pela crítica aos ‘ideais iluministas’, com as promessas de uma ‘sociedade racional’, e realizaram apenas uma hegemonia da “Razão Instrumental”, que visa os fins, sem se importar com os meios.
(29) Lima Barreto era um declarado admirador do pensador francês René Descartes, que partia da dúvida para chegar a alguma certeza. Ou então, por usar um “método” que visa duvidar, até que se prove o contrário – “dúvida metodológica”.
(30) Referência ao ‘romance picaresco’ espanhol, séculos 16 e 17, inaugurado pelo clássico “Vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades” ou “El Lazarillo” (1554); autores possíveis (não se sabe ao certo): Diego Hurtado de Mendoza, Sebastian de Horozco (1510-80), Lope de Rueda (1505-65); obra com narrativa em 1ª. pessoa, cheia de alusões, digressões, diálogos jocosos, até obscenos, com um protagonista ‘pícaro’, isto é, um indivíduo maroto, ardiloso, cheio de manhas e em mil aventuras. Possível inspiração para o “Tristam Shandy” de Sterne, publicado em 1759, quando o ‘picaresco’ já era decadente na Espanha. Uma observação aqui é o título da obra de Lima Barreto, “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” (1919) cujo título engana o leitor, pois a narrativa nada mais é do que a exposição das ideias de Gonzaga de Sá. De picarescos, no Brasil, temos um Pedro Malasartes e um Macunaíma, além do Viramundo, do romance “O Grande Mentecapto” de Fernando Sabino (em 3ª. ps), e os clássicos “Grande Sertão:Veredas”, de Guimarães Rosa e “O Coronel e o Lobisomem” de J Cândido de Carvalho (ambas em 1ª. ps.) , que se inspiraram no estilo. Ainda há outro escritor, no Brasil, que explorou técnicas do estilo – personagens excêntricos, marcantes, abusados - e foi Jorge Amado (ver).
(31)A referência ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche se justifica pel importância da “vontade” individual. O ser não é apenas ‘coletivo’ (senão ficaríamos em Marx e Comte), mas reage ao coletivo, e até ‘destaca-se’ do coletivo, para seu benefício ou decadência, punição, mas não é um ‘mero fantoche’. Por mais que esteja ‘condicionado’ ainda há um espaço de escolha e decisão. Sem isso, não seriam seres humanos, mas animais.
(32)A frase famosa, do enredo de “Quincas Borba”, ecoa nas páginas de Lima Barreto, como uma fina ironia a Machado de Assis, que comparado com Barreto, subiu na vida, isto é, conseguiu aprovação social, fundou uma Academia de Letras ao estilo francês, foi respeitado e frequentou a vida elegante na Capital.
(33)Está em voga e na mídia toda uma literatura que é formada nos subúrbios, e que trata da vida na periferia, ou em área de risco social (eufemismo para ‘favelas’, aglomerados sem urbanização), que são as ‘senzalas’ da modernidade. A abolição da escravatura não bastou para integrar o negro e afro-descendentes a vida social. Hoje, a Literatura do “ressentimento” continua borbulhando ao ritmo de um RAP com um mesma carga de racismo, apenas com carga e vetor invertidos. Quando o discurso de integração é fraco, o “sistema de cotas” é inútil, a rebelião do particularismo, do “espírito de gueto” faz-se presente – o que faz um garoto branco subindo o morro, uma menina loira dançando funk? Depende do olhar – e do preconceito.
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Por Leonardo de Magalhaens
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