terça-feira, 26 de agosto de 2014

Literatura e o irracionalismo em Onde vais, drama-poesia?




Literatura e o irracionalismo / surrealismo
na obra Onde vais, drama-poesia?
de Maria Gabriela Llansol (1931-2008)


Leonardo de Magalhaens


Fale/UFMG


Introdução


       Ao relacionar sonho e ficção, Sigmund Freud, o fundador da Psicanálise, em seu artigo Escritores Criativos e Devaneios, se pergunta sobre o efeito das obras de ficção/fantasia sobre os leitores, o modo como as fantasias e devaneios dos autores atuam sobre os leitores, sobre as relações entre as fantasias e os desejos ocultados, sobre a fantasia enquanto reconquista do mundo da infância. Qual o padrão egocêntrico nas fantasias? A narrativa pode desvelar o/a autor/a? A biografia ilumina os meandros da criação artística? O efeito sobre os leitores advém da identificação com os biografemas? Ou é devido às fantasias compartilhadas?
Freud argumenta que as fantasias fazem efeito sobre os leitores pois não são apenas as fantasias do autor, mas ocorre uma confluência de fantasias, em suas sublimações e deslocamentos, quando a partir da fantasia do Outro há uma aceitação da fantasia do Eu. “Em minha opinião, todo prazer estético que o escritor criativo nos proporciona é da mesma natureza desse prazer preliminar, e a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma liberação de tensões em nossas mentes.” Aqui uma verdadeira catarse ocorre quando tomamos contato com uma fantasia alheia reelaborada de modo estético. Assim é a literatura enquanto tentativa de dizer – e assim desvelar - o mais profundo Eu.
       Então como a literatura, e mais especificamente o surrealismo e o realismo-mágico, liberta – ou possibilita a libertação de – os conteúdos inconscientes nas elaborações das obras? Como se apresentam os conteúdos de fantasia e de devaneio nas obras dos surrealistas ou dos realistas-mágicos, dedicados ao desvelamento de absurdos? Será o transbordar do mundo onírico o modo mais comum de apresentação dos conteúdos inconscientes? Tanto a poesia quanto a prosa poética são modos ideais para manifestações do recalcado, ou se equivalem às obras plásticas, como pintura e escultura? Imagens ou palavras são os elementos ideais para expressão do não-racional? Ou a linguagem ainda carrega racionalidade suficiente para bloquear o indizível? A loucura, tão idealizada e elogiada pelos surrealistas, seria o estado-limite para a expressão? Ou a loucura seria um incomunicável e, assim, o louco um alienado da linguagem? O surrealista simula ser louco, uma vez que a loucura seria improdutiva?

O surrealismo, também o realismo mágico, o drama do absurdo, na poesia e na prosa, e outras estéticas (pintura, teatro, cinema, música), é evidente em autores os mais diversos, de várias épocas e nacionalidades, são autores não apenas contadores de estórias alheias, inventadas ou fábulas, mas falam de seus dramas, desvelam suas inquietações e desassossegos, de modo original, singular e revelador. Não que seja compreensível, pois trata-se do mundo interior, profundo de quem escreve. Uma profundidade complexa não comunicável, não representada, mas apresentada. Não se espera compreensão. Que o leitor adentre o absurdo e se identifique no teatro de espelhamentos.




O irracional na obra Onde Vais, Drama-Poesia?


Encontramos na Escrita da autora portuguesa Maria Gabriela Llansol (1931-2008), tradutora de Arthur Rimbaud, Paul Verlaine, Charles Baudelaire e Paul Éluard, dentre outros; alguns traços deste irracionalismo, ou mesmo surrealismo, como modo de explicitar o mundo enquanto indizível, mesmo incompreensível. Pois a vida não pode ser explicada, e a literatura revela este sentimento de incompreensão por parte do Autor/a, ou sujeito textual/eu lírico.
Podemos destacar alguns trechos de Onde Vais, Drama-Poesia? enquanto amostra de uma Literatura além do entendimento, de uma Escrita a partir do corpo, a partir de uma apreensão / vibração corporal do vivido e que deve se mostrar no escrito na forma de um 'fulgor', 

-->
Nenhum de nós estava a imaginar. Estávamos a conjecturar fisicamente no escuro. As imagens sabem que têm de caminhar para nós com o seu sexo de ler. Sem ele, são propriamente sem texto. Sabem? Sim, sabem. Utilizamos pouco o nosso sexo próprio pra fazer. Utilizamo-lo, sobretudo, para sentir e sondar. Como crianças em perpétuo crescimento, nunca estáveis numa única imagem. O que sentimos fisicamente com o sexo que temos, o que as imagens vêm procurar em nós, não é o sexo que praticamos,
é a vibração pelo vivo e pelo novo. Chamei-lhe fulgor porque é assim que sinto. [p. 33]
 

Qual a utilidade racional da obra poética? A quem interessa a poesia? Apenas ao sujeito que se expressa, ou ao menos tenta? A poesia não é interessante aos 'construtores e formadores', aqueles que racionalizam, que planejam, que “algarismam as manhãs” (em verso de Mário de Andrade, poeta brasileiro modernista) e a autora se pergunta: “por que querem submeter a visão à razão?” [p. 47]

        Pois é no âmbito do sonho o lugar da metáfora num tentativa de se expressar, num embate mundo onírico versus realidade, com suas contradições e interferências, no que pode ser descrito ou simbolizado, se possível em metáforas,

              
escrevia um sonho que tivera_____
os sexos não podem ser trocados. Era uma espécie de segredo
metafísico.
É possível, pensei, mas qual é a realidade que essa metáfora teme? [p. 54]



A dor não pode ser pensada, mas pode ser simbolizada na Escrita, pode ser aliviada pela expressão, pela tentativa de uma figuração, a partir dos manifestos nos sonhos, do que interrogamos enquanto conscientes, quando nos acreditamos donos de uma razão,


a sua dor é demasiado pura para poder ser pensada, é certo; o
texto decide oferecer-lhe um princípio de palavra, um isco,
uma hipótese,
a figura ouve-a,
envolvida numa recordação que parece gozar de uma completa autonomia 
[p. 88]



       Quando somente sobram interrogações depois que o sonho se vai, se esvanece, então eis que a razão tenta explicar aquele outro mundo “muito longe” onde o irracional viceja sem amarras da consciência, 
               
quase todos os nossos sentimentos, deus meu!, vem de muito
longe, ainda nem sequer o ser humano fora imaginado,
se o efeito é sonhado pela causa, ainda os humanos não haviam
sido sonhados,

e continuamos,
a interrogarmo-nos sobre quem nos sonhou
porque deus é palavra demasiado grande e complexa para o
efeito,
e explosão inicial demasiado impessoal para as pessoas sonhadas
que somos, [p. 114]
 


       Há um Eu que escreve sobre um Eu que sonhava, e há um desnível entre o 'vivido' no mundo onírico' e que se busca recuperar no mundo do Real, com a mediação da linguagem – um desnível que é impossível de ultrapassar, de superar, então sobram imagens desfocadas, e sem-sentido (em nonsense) para a compreensão não-onírica.

Em Busca da Troca Verdadeira
XL

Os cogumelos são, de facto, nus e, na orla do bosque, confundem-se
com o que eu não gostaria de ser; este cogumelo sonha,

a Sulamita fechou-o numa gaiola e, posto em pássaro, começou
a fenecer, e tornou-se pálido; mais tarde, lembrou-se dele
e ele rapidamente voou para uma nascente a alimentar-se de
água, de insectos e de perfumes;

[…]


se o seu sonho fosse colhido, e perdesse o seu significado,
seria a morte do meu micorizo; corram arbustos, vejam na su-
perfície da
água,
atentem nos ramos,

[…]
[p. 146-148]



O possível e explicitado entrelaçar de Poesia & corpo & fantasia na manifestação da Escrita, tentativa de expressão ainda que incompreensível, como notamos em poemas de Arthur Rimbaud (1854-1891) poeta simbolista (e também pré-surrealista?) francês, como bem sabe a autora Llansol, tradutora do autor de O Barco Bêbado, e de outros autores franceses, tais como Paul Verlaine, Charles Baudelaire, Paul Éluard, dentre outros.

Apoptose
VI

já vos falei de Rimbaud, já vos li poemas seus,
enquanto dormitais, de olho aberto e cauda repousada; é, na
paz momentânea que nos envolve, que mais se apura o grito
que lhe estilhaçou o peito:

É nos odores que se realizam as trocas, sobretudo, nos sa-
bores incomunicáveis;
'faz o texto',

dizeis, faz o poema ________________________ chorar

dentro das paredes da Casa, com a certeza de que a Casa es-
cuta musicalmente o choro,
sendo as lágrimas, na voz que murmura o texto,
um simples som; [ p. 176]


Em que nível o texto é compreensível ? O que o texto comunica? Se é que é possível comunicar. A Escrita pode ser desconhecida para o/a autor/a, que pode ignorar se o/a compreendem, se conseguem apreender os meandros da expressão,

ofereço-lhes o texto que escrevo, ignoro se o entendem, como
ignoro se a minha presença activa bate asas como a borboleta
que causa um tufão sobre o Pacífico
'é para si', e concluo 'é para nós',

exactamente como acontece ao texto que ouve o mar bramir
na copa das árvores,
a dança frenética dos elementos,
as folhas voam em sopro e em escrita ______________ os
corpos, nus, repousam como falésias,
os corpos nus das flores rasteiras
em pleno esplendor. Não sabem o que o despertar lhes trará,
sob a lei da refulgência da natureza. [VII, p. 179]


         A presença do corpo, dos elementos da natureza, das relações / correspondências entre o natural e o irracional aprofundam os laços entre o ser que escreve e o ser que sofre / vivencia, num elo de imagens que tentam reproduzir sensações, não pensamentos, ousar contatos, não conceitos. Sua voracidade de Escrita tira as cascas e mostra os cernes, sem pudores. Há corpos nus, há plantas rasteiras, há fendas não penetradas, na dança frenética da vida inexplicável. Somente uma linguagem sem-racionalidade, ou surreal, pode ousar uma fala, um testemunho, não só de Escrita, mas de Vida.

       O fato de a autora Llansol não se deixar na superfície do texto, mas sondar meandros outros numa Escrita-fulgor evidencia sua importância como porta-voz de uma interpretação não-racional, até surreal, da vida que não nos concede qualquer explicação, uma vez que vivemos sem-sentido e no absurdo, sem nada que seja amparo a não ser nossas próprias ficções, de deuses e anjos, de avatares e entidades, aguardando uma vida no além sem saber como viver esta vida em que ora nos encontramos.




REFERÊNCIAS


BRETON, André. Manifesto Surrealista [1924]. Disponível online em http://www.marxists.org/portugues/breton/1924/mes/surrealista.htmAcesso em 08.10.2013.
FREUD, Sigmund. Escritores Criativos e Devaneio. 1908 [1907] In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume IX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
_______ . Interpretação dos Sonhos, A [1900] In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volumes IV e V . Rio de Janeiro: Imago, 1976.
LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais, Drama-Poesia? Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2000.












terça-feira, 19 de agosto de 2014

Sujeito e ficção em Ode Fragmentária de Hilda Hilst


 








Presença e Ausência: Sujeito e ficção de Sujeitos 

em Ode Fragmentária de Hilda Hilst


Leonardo de Magalhaens

Fale / UFMG


     A importância da autora Hilda Hilst (1930-2004) tem se evidenciado após a publicação de suas obras completas, pela Globo Livros, nos anos 2000, quando a Crítica, dentro e fora das universidades, passou a analisar não apenas a fase mais polêmica, de caráter erótico-pornográfico-sarcástico, mas aquela de temática metafísica, confessional, afetiva que vem a religar a autora a uma fala feminina (não feminista) a marcar a nossa literatura nas obras de Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Clarice Lispector e Ana Cristina César, dentre outras.

     Assim as baladas e as odes da autora puderam ser mais contempladas e contextualizadas no conjunto da obra, ao se tratarem de poemas fáceis e, ao mesmo tempo, herméticos, em diálogo entre o confessional e o metafísico, com a condição do Ser Humano diante nos Deuses, ou do Demiurgo, ou da Divindade, na consciência da mortalidade, da impermanência e da finitude, na grande ausência do Eu que se entrega/ dissolve na Morte. Comecemos aqui pelas Heroicas, com um tom épico de várias vozes que são todas projeções do sujeito ficcional.


     Pois, no âmbito da poética de Hilda Hilst podem ser feitos questionamentos sobre a condição da própria poesia lírica. Poesia enquanto arte ou confissão? Um artifício ou testemunho? Onde acaba o sujeito autoral e começa o(s) sujeito(s) ficcional(is) ? Como se situa o poeta diante de seu cotidiano? Inventar/ criar a partir da dor vivida? Ou da dor imaginada? A morte pode ser simbolizada? Como a subjetividade textual mascara o medo da Morte?

Se há muito o que inventar por estes lados
O que sei com certeza são meus fados
Exigindo verdades e punindo
Os líricos enganos da beleza


     Há uma voz, um sujeito lírico, que se posiciona ao apontar para si, a reivindicar um espaço, com seus demarcados pronomes pessoais e possessivos (meus ares, meu quarto, etc) pois no texto dilui sua dor e angústia, mas também contentamento (“um todo me angustia”, “se em nada me detenho”, e “contente de mim mesma me inauguro sonora”), e mesmo se dissociando, enquanto ser múltiplo,

Bastasse o confessar-me e assim punir-me
De toda intemperança dos humanos.
Bastasse o que não sou e o refluir-me
Longínqua na maré desordenada.

     Existem, coexistem, muitas imagens – ou paisagens – dentro do sujeito lírico, que se divide num diálogo consigo mesmo, ou dá voz aos Deuses, aos seres da Transcendência, não submetidos pela sombra da mortalidade. Deus que são interlocutores, mas entes inalcançáveis, excelsos e intocáveis, a olharem os Homens como inferiores, em suas efemeridades,

Vós, humanos,
De gesto tantas vezes suplicante.
De coração ardente, dizeis?
A nós parece exangue
Esse pulsar contínuo
E tarefa insensata
Porque nós, divinos,
Temos no peito a força
O altar
A lança
E um todo movediço nos contém.


     A posição dos Deuses é contraponto à condição humana mortal, e a ressaltá-la, a torná-la marcante e dolorosa, quando seres mortais se confrontam com seres doadores da vida. E a mortalidade é melhor concebida (ou simbolizada) quando se dá voz aos mortos, como fazem (e prometem) as religiões, como ousam os esoterismos, ao verem um mundo espiritual além do fim do invólucro corpóreo,

Os mortos ressurgiram e cantaram:
Se a perfeição é a morte
Talvez por isso imortais
Há muito que existimos.
Mas se algum dentre vós
É de sopro divino,
Encantai-nos:

     É como se fosse uma ladainha de falecidos, ou um coro de tragédia grega, com as vozes desafortunadas, submetidas por um Destino inclemente, ou indiferente, num clamor coletivo de anseios incompletos (“Ai de nós, peregrinos, / Antes do amanhecer / Sonhando eternidades! / Não é nosso o destino / De amar e florescer. / Antes vertiginosos / Tateamos na sombra / A laje dos abismos.”), como seres numa beira de abismo a contemplar os Mestres (ou o vulto do Demiurgo) no topo da montanha. Esta separação cria mais angústia e mais consciência da precariedade humana.

     É voz coletiva que amplifica apenas o desassossego íntimo do Eu, ainda muito presente meio ao coro de peregrinos, ou mutilantes, ou ausentes, ou falecidos, todos projeções do desarranjo existencial do Ser consciente da mortalidade, pois este é o tema aqui. Um nunca contentar-se, um sempre desviar-se, um viver sem rumo até que a morte nos separe e disperse,

Ai de nós, mutilantes,
De afetos imprecisos,
[…]
Estuários frequentes
Desviam nossas velas.
[…]
Muito ausência...
em que montanha azul a nossa meta?


     Outra figura tem referência no coro dos desassossegos, outro vulto é elencado para a condição de voz, de testemunha da condição humana, um ser entre a memória e a imaginação, aqui a personagem do poeta, um ser predestinado, em suas alegrias e temores, “guardou-se amante, iluminou-se crente / Cobriu-se de ternuras e de lendas / Não conheceu prazer ilimitado / Que suportasse o humano e suas penas.” Poeta que recebe referência também em Quase bucólicas, onde adentra com seu cavalo, “amáveis mas indomáveis”, vulto entre a palavra e o silêncio, o testemunho e a solidão,

O poeta – e seu vocábulo.
O cavalo – e seu pedaço de terra
Mais nas alturas

De brisa,

De solidão e hortaliças.

Entrelaçadas aspiram
Respiram juntos

 
    O poeta que presentifica a própria condição da autora, que ousa o poetizar, que ousa testemunhar seu (nosso) “mundo oscilante”, que viveu entre bonanças e vendavais, que “tribulações e medo padeceu”, que sabe-se clarividente, mas que de fato “canto o que vejo mas antes / Canto o que a alma deseja”. A poeta fala do poeta como num processo de dissociação, de separação de eu autoral e eu ficcional. Pode, assim, adquirir novas identidades, cavalgar na fantasia, ao tentar contemplar a vida e simbolizar a Morte. Morte: tema por excelência aqui (e na obra da autora, conforme ela mesma evidencia em entrevistas). Morte que dá sentido ao viver? Ou morte que é completo absurdo? Morte em-si ou a consciência de ser finito? Novamente: a Morte pode ser simbolizada? Imagens, cenas de luto, melancolia e perda, apenas rituais para apaziguar a dor: não explicá-la. Não pode se explicar o sofrimento.

     Eu ficcional que caminha entre perdas e perdidos, que procura um caminho num mundo sem rumos, marcada pela infância, confundida pela maturidade, tendo apenas o recurso do poetizar o vivido e o imaginado, “Eu caminhava alegre entre os pastores / E tatuada de infância repetia / Que é melhor em verdade ter amores / E rima transitória para o verso.” E caminhando, só em seu percurso, outras vozes, geradas pela própria voz lírica, consigo mesma, “eu senhora de vaidades”, vem partilhar a condição de ser no Tempo, na impermanência, com a corrosão e o fim da infância, e a necessidade de assumir a maturidade, mesmo com certa desesperança e niilismo,

Tempo não é, senhora, de inocências.
Nem de ternuras vãs, nem de cantigas.
Antes de desamor, de impermanência.

Tempo não é, senhora, de alvoradas.
Nem de coisas afins, toques, clarins.
Antes, da baioneta nas muradas

 
    Há todo um mal-estar com a passagem do Tempo, um ser simbolizado pela corrosão, no movimento sem volta de nascer e morrer, “à medida que o tempo nos desgasta”, num processo onde se entrelaçam amor e morte, Eros e Thanatos, pois “amor, o que renasce. / Voltando sempre.”, a tornar o sujeito lírico um ser submisso à perenidade, desejosa do amor, e temendo, sim, “tornou-me submissa e receosa”, pois há anseio e temor, uma culpa por querer, sempre em vão, “persegues / te persigo / vais e vens”.

      Assim, sempre a oscilar entre o desejo de viver e a consciência do morrer, o sujeito lírico cria possibilidades de si mesmo, outras variantes em vozes distintas, e até dissonantes, para representar sua clivagem interior. Do eu autoral, o qual não temos acesso, vários outros eus ficcionais têm nascimento, ao proliferarem textualmente, ao se contraporem, Homens e Deuses, Desejo e Fuga, Amor e Tempo, todos íntimos, mas demasiado estranhos, um verdadeiro Unheimlich freudiano, ou seja, o que é familiar e estranho ao mesmo tempo.

     É dessas ambiguidades íntimas que surgem as imagens fundidas, bizarras, entre a celebração e a lamúria, ora niilista, ora bailante, ora acreditando no Amor, ora sentindo-se corroer pelo Tempo, que evidenciam a fragmentação das justamente intituladas Odes fragmentárias. O sujeito lírico tenta se encontrar, mas o que consegue é dar voz a outros Eus possíveis, é se distanciar do Eu autoral, é não ser mais Hilda Hilst, ser finito, mas um ser diante do Demiurgo, das Divindades, do Criador.

     Um sujeito feito de palavras a indagar, entre angustiado e ousado, sobre a condição humana, simbolizada nas imagens poéticas, deslocadas e condensadas, como um sonho dado em pedaços de vivências estilhaçadas, numa tessitura de ode em fragmentos, assim como fragmentária é a identidade, enredo montado pelos retalhos da memória. Não é a autora que tem a palavra final, ou a rota a ser seguida. Então cabe aos leitores acharem o fio da meada, e adentrar um labirinto, sim, um “sofrido caminho”.




REFERÊNCIAS


COELHO, Nelly Novaes. A poesia obscura/luminosa de Hilda Hilst; A metamorfose de nossa época; Fluxo-floema e Qadós: a busca e a espera. in: _____. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano, 1993


Fico besta quando me entendem. Entrevistas com Hilda Hilst. Celestiano Diniz (org.) São Paulo: Globo, 2009.

HILST, Hilda. Ode fragmentária . São Paulo: Anhambi, 1961.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

As Cortinas / O Espelho / O Cenário -- de Floriano Martins





FLORIANO MARTINS



AS CORTINAS

 
Os passos correm de um lado para outro do cenário a preparar as sombras para um próximo ato. Confundem-se na marcação e as cortinas se põem a rir. Ouço teu corpo por toda noite, a inventariar os modos com que nos desfizemos uns dos outros. A memória postergada pelo bailado sibilante do sangue arrebatando a beleza das mãos dos barbantes que prendiam uma vítima à outra. Como seguir a rota de seus desvãos? Como abrir covas no alongamento de tuas quedas? O que fizeram do adeus que não demos a todos os nossos vícios? As vozes iam chegando para o ensaio. As cortinas vigiavam os improvisos com um olhar enfeitiçado. As falhas se punham imóveis. As sombras se engrenavam em círculos, repetições que se tornam pegajosas em meio a uma sentença: o texto não te salva.

Pequenas fraudes de enumeração. Ruídos girando em sentidos confusos. Corpos embaralhados com as sombras que representam. Meus dedos foram deglutidos por teus seios como um metal que se liquefizesse em nome do desejo. Tua felicidade se disfarça em peixe no vestíbulo de meus sonhos. Uma mesma chama viola nosso tormento. Onde foram recolher essas frases? As cortinas mal disfarçam a dúvida de que esse abuso transborde. O cenário ainda não pôs a roupa devida. Há um excesso de sangue em relação ao quinhão de corpos de que podem se valer os atos. São bocados de dramas desencontrados. Não se sabe se houve crime ou festa. Os hábitos são capazes de tudo. Meu corpo não sabe viver sem teus particípios. Não devo socorro ao encaixe de tua pele em meu desejo. És testemunha de tudo quanto me sangras. As cortinas confabulam o imaginário. Riem porque sabem que são fantoches que podem ser retirados de si.

Tudo é muito fácil no balcão dos feitiços. Umas sombras rasgadas, símbolos com ar fatal de enigmas insolúveis, testemunhas improváveis. Tudo em nossa vida se repete de maneira tão maçante que nos fechamos para a intromissão do encantador. Os barbantes amarravam os fantoches em uma combinação de elementos palpitantes no encaixe. A morte aprisionada por suas razões de ser. Mesmo o corpo quebrado da cena ainda suspirava. Havia lugar para tudo. As feridas se viciaram em recursos fáceis. Uma orgia de fantoches, uma matança de títeres. Os passos correm de um lado para outro do cenário a preparar as sombras para um próximo ato.

[Floriano Martins]




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O ESPELHO

 
Um espelho caminha por entre as ruas, atormentado por imagens que insistem em acusá-lo de demasiada passividade. As sombras projetadas sobre sua angústia tricotam um manto de luxuriosas figuras em transe. Nada comparte a metafísica frustrada dessa realidade desfeita em síncopes aparentes. O espelho sabe que recai sobre si o embaraço de estampas que flutuam no sentido suspenso de suas representações. Como explicar agora o tráfico intenso de inversões? Hesita em seu caminhar. Os passos começam a jorrar uma torrente de vultos que se dispersam assustados. Saltam do restante do corpo emblemas, fotocópias, figurações agônicas. Incontáveis rostos salpicam do olhar aturdido. A esta altura o poema não pensa senão em uma maneira de retirar de cena a ruinosa aparição do espelho em sua escritura automática.

O palco terá que ser refeito em destroços? A arte evapora-se em aposentos vulgares rendida por uma transcendência que a torna ausente de si. O espelho já não recusa a desigualdade de seus modelos. As imagens são inconstantes, é da natureza delas, confessa cabisbaixo sem reter uma imitação que seja do que andara ressoando. Diante de todos insiste que não alonga cenas, que a plateia se encanta pelo quadro real que ele próprio configura. E enquanto depõe fac-símiles se agitam como se garantissem a permanência da realidade.

Já não olha para parte alguma. Reflete um vazio ainda mais carente de sentido. Diante de tudo, qual a extensão de nossa reação elementar? E já de tal maneira decaído no abalo de sombras decompostas, o espelho se retrai, e toda forma se cala. A plateia vocifera, desambientada. Qualquer que seja a maneira com que o espelho prove sua humanidade, jamais será aceito se recusar espelhá-la. A ilusão não teria outra dieta mais favorável à sua gula.


[Floriano Martins]


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O CENÁRIO

 
Ao afastar a cômoda uns dias retidos caíram por trás como fulgores que fossem reencontrados. Lâmpadas disformes soletravam bosques por todas as ranhuras de seus corpos desconhecidos. Ramagem de objetos acariciados pelo esquecimento. Por onde cai uma imagem de nossa angústia, os fogos-fátuos se constrangem. Deixamos escapar alguns segredos da rivalidade entre esses monstros que se confundem com o eterno. Por vezes o visível não passa de seios arbitrários entalhados em uma madeira apodrecida. Este é o traje com que abençoamos o carvão orgulhoso da existência. Não vestimos senão uma combinação de naufrágios. E a mobília se ri da maneira como a utilizamos para disfarçar a inaptidão para o abismo.

Peças instáveis, que a todo instante requerem um reflexo distinto de sua utilidade, ensaiam efeitos sonoros, dissimulações de trevas, afiam sombras que possam projetar ao menos uma interrogação presumível. Uns poucos objetos resmungam, não aceitando que a realidade se conforme com o entendimento. Os móveis então começam a afastar-se das paredes. A casa inteira entreabre seus lábios para um novo sobressalto. Vasculham as gavetas do tempo. Não querem mais sonhar conosco. Rejeitam o mistério que impusemos a cada um deles. Por entre uns trapos inseguros de sonhos e o bailado descompassado de fantasmas, as mesmas fugas ensaiadas. Estes são os primeiros véus que o tempo leva para dentro de si. Quando me tocas, não penso no que pode estar se passando comigo. Se a tua pele descobre o fogo no contato com a minha, não te amo mais por esta compreensão. A mobília não festeja as chamas na casa como se um novo quadrante fosse instaurado em sua visão de mundo. Não há magia sem a consciência de seus ingredientes? Quanto custa sonhar contigo?

Faço os apontamentos em suspiros, devaneios, vômitos, desarmonias, masturbações. É fácil levar um texto a recorrer a seu equipamento de incêndio. Presumimos uma saída de emergência para tudo, considerando a existência de uma queda unida. Os móveis ensaiaram repetidas vezes o mesmo procedimento. Para o caso de quem desistir de si? Tratemos de prever os deslocamentos improváveis do passado. Não cabem argumentos em favor da transparência. As películas a que submetemos nosso tráfico entre visível e invisível denunciam que somos infratores da substancialidade. Os meus sentidos são tão confiáveis quanto os teus. Toda realidade se evapora na medida em que é considerada.

[Floriano Martins]


fonte: facebook do autor / 
 
jun / jul 2014








mais em http://www.revista.agulha.nom.br/fmartins.html





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